O tema das dragagens no rio Sado já fez correr muita tinta, levou pessoas à rua em manifestação e provocou um tumulto nas instituições públicas envolvidas no processo. A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) será a personagem principal desta história, mas a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS) não tem um papel menos relevante. Foi criada uma espécie de elefante branco em que a balança do ganha-e-perde fica muito desequilibrada.
O objetivo das dragagens no Sado é ganhar profundidade e largura para que barcos de maior dimensão possam entrar no porto de Setúbal e, se possível, para criar duas vias de transporte marítimo. Neste caso, os objetivos passaram por cima dos passos obrigatórios ao começo das obras.
Primeiro é necessário ter um estudo de impacte ambiental (EIA), que foi entregue pela APSS e aprovado pela APA. Depois é assinada uma declaração de impacte ambiental (DIA) pela APA. Mas desde 2016, ano em que foi elaborado o estudo de impacte ambiental, têm vindo a ser anexados documentos e mais documentos ao referido estudo e, apesar de ainda não estarem esclarecidos todos os pontos, tudo indica que a obra começará em breve. O impacte ambiental desta empreitada tem sido recorrentemente referido, quer pela associação SOS Sado, quer pela comunidade científica, que garante haver estudos que não foram feitos e são necessários.
Em 2016, a empresa Egis foi responsável por realizar um “Estudo de Viabilidade Económica e Financeira do Projeto de Melhoria dos Acessos Marítimos ao Porto de Setúbal”. E esse estudo é parcialmente citado no EIA e no parecer da comissão de avaliação em 2017, onde surge no ponto de “justificação do projeto” e nas respostas dadas pela comissão sobre a viabilidade económica. “No entanto, esse estudo não integrava a documentação submetida pela referida Administração Portuária para efeitos de instrução do procedimento de AIA [Avaliação de Impacte Ambiental]”, lê-se num dos emails da Agência Portuguesa do Ambiente em resposta à Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação, em março deste ano.
O estudo não foi entregue, mas ia surgindo nas respostas da APSS. Por exemplo: “No estudo de viabilidade económica e financeira do projeto de Melhoria dos Acessos Marítimos ao Porto de Setúbal foi identificada uma solução ótima em termos de desenvolvimento comercial do porto, correspondente à Fase B, na medida em que permitiria a entrada a navios da tipologia 4000-6000 TEU, alargando a oferta portuária ao mercado de linhas regulares com navios maiores”, refere a entidade à comissão responsável pela avaliação do EIA. O parecer da comissão de avaliação teve o resultado de favorável condicionado, baseado num estudo ambiental em que os únicos pontos considerados benéficos são económicos, com referência a um estudo que não fazia parte dos documentos entregues.
No portal Base, onde constam os contratos públicos celebrados, há apenas um contrato entre a APSS e a empresa Egis, com o nome “atualização do Estudo de Mercado e Viabilidade Económica e Financeira do Projeto de Melhoria dos Acessos Marítimos ao Porto de Setúbal”, assinado no dia 3 de novembro de 2013 – ou seja, três anos antes da entrega do estudo de impacte ambiental –, no valor de 38 400 euros.
Pedra furada A parte subaquática do geomonumento com cerca de dois milhões de anos, de nome Pedra Furada, foi destruída em abril – entre os dias 1 e 13 –por uma obra relativa às dragagens no Sado. O alerta foi dado pela SOS Sado, que considerou este procedimento ilegal, apesar de a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra referir que o procedimento estava autorizado pela APA.
Segundo emails trocados internamente pela APA, a 11 de março deste ano, houve uma reunião entre a APA, a APSS e o ICNF em que foi decidido que os trabalhos de construção da estrutura de contenção do aterro poderiam avançar – a obra foi feita na zona adjacente ao Terminal Ro-Ro. Dias depois, a APA recebe informações da Direção-Geral do Património e Cultura (DGPC) em que é referido que “as dragagens previstas para esta fase deverão, por um lado, ocorrer em zonas afastadas dos pontos de monitorização previstos (…) e, por outro, assegurar previamente o reforço da direção científica de arqueologia”. Mesmo assim, é dada luz verde à APSS para avançar com a obra.
A própria APA reconhece que a 11 de março estavam “garantidas as condições para ser concretizada a construção da estrutura de contenção do aterro na zona adjacente ao Terminal Ro-Ro, bem como a primeira fase desse aterro e a dragagem relacionada, pelo que deveria ser apresentada informação relativa à data de início dos trabalhos, o cronograma das principais ações e a carta com a localização das dragagens a efetuar”. A 26 de março, a APA recebeu as informações da APSS para parecer e, “face ao exposto, solicita-se a análise da documentação e a emissão do parecer até dia 12 de abril de 2019”, pediu a APA ao ICNF e à DGPC.
A 29 de maio, a APA recebeu “um conjunto de informação relativa aos trabalhos preparatórios de obra, nomeadamente o cronograma com as principais atividades e a memória descritiva e justificativa dos trabalhos passíveis de serem realizados nesta fase”, disse a APA.
Ainda no mesmo documento é referido que, no dia 15 de abril, a APSS enviou informação adicional e que esses documentos ainda estavam em análise. “No entanto, após análise preliminar verificou-se que não foram contempladas todas as medidas de minimização para esta fase, nomeadamente as medidas de minimização 4, 6, 7, 9, 10 a 18, 20, 22 a 40, 44 a 50, 52, 54 a 63 e 66 a 74”, referiu a APA, pedindo à APSS que enviasse a informação de forma mais detalhada. E até deu exemplos: “(…) Através de uma tabela onde estejam todas as medidas de minimização (…) juntamente com os respetivos comentários quanto ao seu cumprimento”. Os pontos 6 e 9 referem-se precisamente à ausência de autorizações por parte da DGPC. Além disso, as dúvidos do ICNF relativamente ao ponto 8 das medidas que deveriam ter sido apresentadas previamente à obra não voltam a ser referidas e não existe qualquer indicação de que tenham sido esclarecidas.
Relativamente à reunião que deu ordem para avançar com a obra, só existem emails que comprovam a veracidade da mesma pois, quando questionada pela SOS Sado sobre a ata da reunião, a APA respondeu que “não foi realizada”.
Em maio de 2019, no âmbito de uma providência cautelar, há emails trocados internamente entre a APA que dão conta da ignorância do que se passava em relação à Pedra Furada. Aliás, num dos emails é dito: “Penso que as ações previstas nesta intervenção inicial devem ter sido descritas na reunião e aprovadas pelos presentes”. Uma das perguntas era “se a remoção do afloramento arenítico estava previsto no EIA ”. E dizem: “Não consta, no entanto, de acordo com uma análise muito breve e pouco aprofundada do EIA, referência específica ao afloramento arenítico em causa”. Ainda nessa pergunta é dito que “não se encontra referência no EIA ao ‘Bico da Parvoiça’” e que “a avaliação de impactes na geologia é muito generalista e não refere a questão específica da afetação, ou não, do afloramento arenítico”.
Sobre este assunto, a SOS Sado, que tem vindo a analisar os documentos referentes aos trabalhos de dragagem no Sado, referiu que “o local aparece, efetivamente, identificado no aditamento ao EIA, na página 37, como um ponto de sondagem que terá sido perfurado a 4m por uma broca de -16mZH, o que significará que estava a uma profundidade de 12m e, portanto, acima da cota de profundidade pretendida”. No entanto, refere a SOS Sado, esta questão não invalida todas as irregularidades que têm vindo a ser praticadas, já que, no fundo, a obra avançou sem parecer e sem documentação.
A Associação Dolphincaravel apresentou uma queixa-crime junto do Tribunal da Comarca de Setúbal contra Luís Lavrador, capitão do porto de Setúbal, devido aos trabalhos “com o objetivo de remoção de um afloramento granítico conhecido como ‘Pedra Furada’”, lê-se nos documentos entregues no tribunal. Para esta associação, os “trabalhos, pretensamente preparatórios do projeto de melhoria da acessibilidade marítima ao porto de Setúbal, foram levados a cabo sem licenciamento”.
O i tentou contactar a Agência Portuguesa do Ambiente, mas até à hora de fecho desta edição não foi possível obter qualquer resposta.