Sabia que todos os tecidos no corpo humano têm um mecanismo capaz de detetar os níveis de oxigénio? A pergunta no site do Prémio Nobel resume o tópico da investigação distinguida este ano pelo Instituto Karolinska e as opiniões divididas mostram como os mistérios da vida passam despercebidos. Os laureados do galardão que abre a temporada Nobel são os nova-iorquinos William Kaelin e Gregg Semenza e o britânico Sir Peter Ratcliffe. Cada um com a sua equipa, ajudaram a desvendar os “sensores” de oxigénio nas células, uma peça da ciência básica com interesse na biomedicina, já que estes processos moleculares acabam por ter papéis importantes em várias doenças, do enfarte do miocárdio ao cancro.
O resumo do trabalho deste trio foi feito ontem pelo comité Nobel: “A necessidade de oxigénio para sustentar a vida é conhecida deste o início da biologia moderna, mas os mecanismos moleculares subjacentes à forma como as células se adaptam às variações de oxigénio eram desconhecidos até aos trabalhos que recebem o prémio.”
E se em 1931 e em 1938 o Nobel da Medicina já tinha sido atribuído a investigadores que se debruçaram sobre os segredos do oxigénio na biologia – Otto Warburg desvendou o processo através do qual as células usam oxigénio para converter alimento em energia e Corneille Heymans identificou o papel de sensores junto à carótida, que regulam a respiração, – os laureados deste ano completam o quadro.
Estudaram a forma como o corpo se adapta a mais ou menos oxigénio, partindo do trabalho dos seus antecessores. Sabia-se que baixa concentração de oxigénio (hipoxia) estava ligada a um aumento dos níveis da hormona eritropoetina (EPO). Foi em torno do gene associado a esta hormona que Semenza e Ratcliffe desenvolveram os seus trabalhos e descobriram que havia “sensores” de oxigénio não apenas nas células dos rins, onde esta hormona é normalmente produzida, mas em todos os tecidos.
A partir daí começaram à procura de novas pistas sobre este mecanismo e descobriram, já nos anos 90, um complexo de proteínas, chamado fator indutor de hipoxia (HIF, na sigla em inglês) que se revelou um elo de ligação. Quando os níveis de oxigénio são elevados, as células contêm níveis baixos de um tipo específico destas proteínas e, quando falta oxigénio, aumenta a HIF, o que regula a produção da hormona. Os trabalhos em torno desta molécula acabariam por cruzar-se com a investigação de William Kaelin, que estava a estudar uma doença genética que aumenta o risco de cancro, associada a mutações no gene VHL. Kaelin descobriu que este gene interage também com este complexo de proteínas, acabando por perceber-se que todas estas peças faziam parte do mesmo puzzle que permite ao organismo reagir a mais ou menos oxigénio, por exemplo quando se está em altitudes elevadas ou a fazer exercício. “Os sensores de oxigénio permitem às células adaptarem o seu metabolismo a baixos níveis de oxigénio, por exemplo nos nossos músculos durante exercício intenso”, descreve o comité Nobel, dando outros exemplos de processos controlados pelos sensores de oxigénio, como a criação de novos vasos sanguíneos, a produção de células vermelhas ou mesmo etapas do desenvolvimento fetal.
No campo das doenças, o comité destaca a intervenção destes mecanismos na anemia, infeções, regeneração de tecidos e cancro: A maquinaria regulada pelo oxigénio, por exemplo, estimula a formação de vasos sanguíneos e leva a uma proliferação das células cancerígenas.
Perceber em detalhe como tudo funciona permitiu, assim, novas linhas de investigação, com o comité Nobel a destacar estudos farmacológicos que tentam aumentar a função da HIF – para melhorar a resposta imunitária e a ajudar feridas a sarar melhor – ou inibi-la, o que poderá trazer benefícios terapêuticos a alguns cancros, mas também doenças cardiovasculares.
Os investigadores vão dividir o prémio de nove milhões de coroas suecas, cerca de 871 mil euros, e tornam-se parte da história do galardão que, 118 anos depois, continua a ser o coroar da carreira científica. William Kaelin, investigador no Instituto do Cancro Dana-Farber, em Boston, confessou ontem que quando atendeu a chamada da Suécia, às 5 da manhã, pensou que estava a sonhar. E deixou um apelo para quem não vê interesse em ciência básica. “É um tipo de investigação cada vez mais ameaçada. É mais fácil para os financiadores e políticos dizerem que vão apoiar cientistas, mas ‘digam-nos como é que vai melhorar os resultados em cinco anos’. Quando fazemos ciência, temos de estar preparados para seguir a estrada onde quer que nos leve. E quando fazemos ciência, é difícil prever para onde a estrada nos vai levar.”