“É impressão minha, ou está tudo cada vez mais maluco lá fora?” Isto é Arthur Fleck para a sua psicóloga, uma psicóloga que lhe foi atribuída por uns serviços sociais moribundos, numa Gotham City à beira da rutura. Arthur está ali mas sente que é como se não estivesse. “Todas as semanas me pergunta se tenho pensamentos negativos. Ainda não se deu conta de que a única coisa que tenho são pensamentos negativos?” Ainda assim, Arthur tenta. Continua a tentar. “A minha mãe sempre me disse para sorrir e pôr uma cara feliz”. Happy, chama-lhe a mãe que, como ele, faz parte dessa enorme massa daqueles para os quais, mais do que para outros, a felicidade parece impossível de alcançar.
Mas Arthur tenta. Passo a passo, degrau a degrau, mesmo que sejam pesados aqueles sapatos. Como se, para cada passo, tivesse que carregar o peso do mundo consigo. Com o sonho de um dia se tornar comediante, Arthur lida todos os dias com o desprezo de quem, nas ruas de uma Gotham decrépita, se cruza com um palhaço contratado. Desprezado, humilhado, irremediavelmente perdido, Arthur fará, degrau a degrau, e é importante que se diga, o seu caminho até à descoberta de que, não, a sua vida não é afinal uma tragédia, mas uma comédia.
“Apresente-me como Joker”, pedirá a Murray Franklin (Robert De Niro), o apresentador de um talk show com o qual, ao lado da mãe, sonha acordado a cada noite, nesse dia em que nasce Joker. É sobre isso Joker, o filme de Todd Phillips que foi a Veneza vencer o Leão de Ouro em setembro e que acaba de chegar às salas. O nascimento de um vilão, como explica o realizador e coargumentista (com Scott Silver) nas notas de produção do filme: “Adoro a complexidade do Joker e senti que a sua origem merecia ser explorada num filme, já que ninguém o tinha feito ainda e que nem a personagem tem um início formal. Por isso, o Scott Silver e eu escrevemos uma versão de uma personagem complexa e complicada, e como pode ter evoluído… e ter-se desenvolvido. Era isso que me interessava — não uma história do Joker, mas a história de como se tornou no Joker”.
Para o papel, um impressionantemente justo Joaquin Phoenix, que não demorou a perceber que, se Joker é um vilão como nenhum outro (costuma dizer-se que, quando os vilões da DC querem assustar-se uns aos outros, contam piadas do Joker), também esse caminho seguiria esta personagem, e a forma como a construiria. “Normalmente é frustrante não compreendermos as motivações das personagens; com esta tornou-se libertador perceber que poderia ir em qualquer direção”, disse o ator nas mesmas notas disponibilizadas à imprensa. “Quando trabalhava com o Todd numa cena, se não encontrássemos uma forma surpreendente de a explorar no momento, aí sim sentíamos que não estávamos no caminho certo”.
Na história de Joker, o mais perigoso vilão que Batman combate incessantemente em Gotham City, apenas o final costuma bater certo. Ou a personagem desaparece ou termina uma vez mais internada no Arkham Hospital, o hospital psiquiátrico aonde em Gotham vão parar os doentes que representam um perigo para a sociedade. Por fixar, ficaram as origens da personagem, como explicou certa vez Jerry Robinson, um dos seus criadores: “Já muitas origens foram dadas ao Joker, à forma como apareceu. Isso já não parece importar — apenas aquilo que é agora. O que tentei foi dar um sentido à sua aparência. Discutimos e o Bill [Finger] e eu não quisemos alterar isso [a ausência de uma história completa]. Pensei – e ele concordou – que isso lhe retiraria parte de um mistério que é essencial”.
E a verdade é que o desconhecimento desse início – que foi tendo, desde que a personagem foi criada, no primeiro número de Batman, em 1940, várias versões; por exemplo, Joker como um homem que trabalha num laboratório e que começa a agir como criminoso; ou que larga o emprego para se tornar comediante para ajudar a mulher grávida, que termina assassinada — tem ajudado a servir a personagem, que parece ir inventando sucessivos passados para si própria. Discute-se até se Joker sofre mesmo de uma perturbação mental, ou se a finge para, como louco, ir escapando à pena de morte. Diz Joker, citado em The Joker: The Nature of Batman’s Greatest Foe (2013): “Às vezes lembro-me de uma forma, às vezes de outra… Se for ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha”.
A questão, e o que esta história de Todd Phillips traz de novo, é que, nesta Gotham do início da década de 1980 – muito ao jeito, até formal, da Nova Iorque que Martin Scorsese retratava poucos anos antes, também com De Niro, de resto, em Taxi Driver — não se apresenta como uma possibilidade a escolha. No final, é como se Arthur se tivesse tornado naquilo que estava destinado a ser. No Joker que nos traz Todd Phillips, as cicatrizes que em O Cavaleiro das Trevas (2008), de Christopher Nolan, marcaram a interpretação de Heath Ledger não estão à vista. Não precisam. É em direção a elas que vamos, degrau a degrau, mais fundo, e cada vez mais fundo, até ao ponto não só da empatia, da compaixão – se heróis e vilões vêm sendo retratados cada vez menos a preto-e-branco, nem absolutamente bons nem absolutamente maus, Joker vem empurrar-nos ainda mais para diante. Não há outro lado aqui: há este homem apenas. Um homem vítima das circunstâncias.
Afinal, desta Gotham em que o homem que um dia será Batman é ainda uma criança, Joker emerge como um quase herói de uma multidão desesperançada. Como se fosse apenas mais um, um dos 99%. Insinuou alguma crítica que no sadismo Phillips foi tão longe que talvez tenha ido demais. O que Phillips fez foi substituir a ação que marca habitualmente o género por uma dose acima da média de realismo social. E a realidade é isso. Bem diz Arthur por aqueles dias em que em si começa a ganhar forma Joker: “Durante muito tempo achei que a minha vida era uma tragédia. Agora descobri que é uma comédia”.