Biológico e vegan: a quadratura do círculo?


Até seria possível alimentar toda a Humanidade com agricultura biológica. No entanto, os cenários estudados têm um problema: a fonte de azoto.


Quer a agricultura biológica, quer a alimentação vegan são frequentemente apresentadas como formas de consumo alimentar sustentável. Será que é possível adoptar simultaneamente as duas, isto é, fazer agricultura biológica sem animais? Para saber a resposta a esta pergunta, temos que perceber alguns aspectos fundamentais da alimentação humana e da produção de alimentos pela agricultura.

Simplificando, a alimentação humana tem como função fornecer energia e proteína. É como se o corpo humano fosse uma máquina: precisamos de proteína para fazer a máquina e de energia para a fazer funcionar. É fundamental olhar para o problema da alimentação humana considerando também a proteína (e não só a energia) porque nos foca nos alimentos melhores para fornecer proteína (as leguminosas, como feijão ou grão-de-bico, e os produtos de origem animal, tipicamente com proteína de melhor qualidade). Obriga-nos também a considerar o elemento químico essencial para a proteína (mas dispensável para a energia): o azoto.

A fonte do azoto é a atmosfera, mas a sua obtenção é difícil. Em geral, só as leguminosas é que o conseguem obter da atmosfera através de uma simbiose com microorganismos que formam nódulos nas suas raízes.

Na agricultura tradicional, biológica, o azoto obtinha-se de duas formas. Por um lado, fazendo rotações (isto é, ocupação sucessiva dos terrenos agrícolas) entre leguminosas e cereais, Por outro lado, levando os animais às pastagens e trazendo-os de volta para os estábulos à noite, para produzirem estrume (a combinação entre os dejectos dos animais e a cama, feita com palha ou matos), que era depois aplicado nos terrenos dos cereais. No entanto, com o aumento das populações associado à industrialização, estas fontes de azoto deixaram de ser suficientes, levando a alertas dramáticos no início do século XX sobre a incapacidade de alimentar a população humana.

Este problema só foi resolvido com a invenção do processo industrial de fixação de azoto da atmosfera (permitindo o fabrico de adubos azotados), por Fritz Haber e Carl Bosch. Estima-se que, hoje em dia, metade do azoto nos nossos corpos foi obtido da atmosfera através deste processo industrial. No entanto, esta utilização massiva de azoto traduz-se hoje em graves problemas ambientais, nomeadamente de degradação dos solos, poluição das águas e poluição atmosférica.

A agricultura biológica, baseada na proibição do uso de produtos de síntese, “químicos”, nomeadamente adubos, é frequentemente apresentada como uma forma de resolver estes problemas, voltando ao fornecimento de azoto às culturas agrícolas através de rotações com leguminosas e estrume de animais.

Um artigo de 2017 mostra que seria possível alimentar toda a Humanidade com agricultura biológica, desde que a fracção de proteína de origem animal baixasse de 38% para 11%,  e se  reduzisse o desperdício alimentar. No entanto, os cenários estudados têm um problema de fonte de azoto: o azoto obtido através do pastoreio por animais e através de leguminosas não chega para suprir as necessidades. Isto é, devido a restrições de azoto (mas não de área), não é possível alimentar toda a Humanidade com agricultura biológica. Este problema de azoto seria ainda muito mais grave se não houvesse animais no sistema, com capacidade de transformar erva de pastagens e subprodutos (por exemplo, o bagaço de soja que sobra depois de extracção do óleo) em produtos para alimentação humana e em fornecer estrume para a fertilização das terras agrícolas.

Isto quer então dizer que não é possível compatibilizar a agricultura biológica com a alimentação vegan? As evidências disponíveis parecem dizer que é difícil. As necessidades em azoto da agricultura biológica exigem a presença de animais no sistema (e, mesmo assim, poderá não ser possível alimentar toda a Humanidade com agricultura biológica). Há espaço para uma enorme expansão do número de pessoas com uma alimentação vegan, mas, se quisermos expandir fortemente a agricultura biológica, não podemos ser todos vegan.

 

Professor de Ambiente e Energia no Instituto Superior Técnico


Biológico e vegan: a quadratura do círculo?


Até seria possível alimentar toda a Humanidade com agricultura biológica. No entanto, os cenários estudados têm um problema: a fonte de azoto.


Quer a agricultura biológica, quer a alimentação vegan são frequentemente apresentadas como formas de consumo alimentar sustentável. Será que é possível adoptar simultaneamente as duas, isto é, fazer agricultura biológica sem animais? Para saber a resposta a esta pergunta, temos que perceber alguns aspectos fundamentais da alimentação humana e da produção de alimentos pela agricultura.

Simplificando, a alimentação humana tem como função fornecer energia e proteína. É como se o corpo humano fosse uma máquina: precisamos de proteína para fazer a máquina e de energia para a fazer funcionar. É fundamental olhar para o problema da alimentação humana considerando também a proteína (e não só a energia) porque nos foca nos alimentos melhores para fornecer proteína (as leguminosas, como feijão ou grão-de-bico, e os produtos de origem animal, tipicamente com proteína de melhor qualidade). Obriga-nos também a considerar o elemento químico essencial para a proteína (mas dispensável para a energia): o azoto.

A fonte do azoto é a atmosfera, mas a sua obtenção é difícil. Em geral, só as leguminosas é que o conseguem obter da atmosfera através de uma simbiose com microorganismos que formam nódulos nas suas raízes.

Na agricultura tradicional, biológica, o azoto obtinha-se de duas formas. Por um lado, fazendo rotações (isto é, ocupação sucessiva dos terrenos agrícolas) entre leguminosas e cereais, Por outro lado, levando os animais às pastagens e trazendo-os de volta para os estábulos à noite, para produzirem estrume (a combinação entre os dejectos dos animais e a cama, feita com palha ou matos), que era depois aplicado nos terrenos dos cereais. No entanto, com o aumento das populações associado à industrialização, estas fontes de azoto deixaram de ser suficientes, levando a alertas dramáticos no início do século XX sobre a incapacidade de alimentar a população humana.

Este problema só foi resolvido com a invenção do processo industrial de fixação de azoto da atmosfera (permitindo o fabrico de adubos azotados), por Fritz Haber e Carl Bosch. Estima-se que, hoje em dia, metade do azoto nos nossos corpos foi obtido da atmosfera através deste processo industrial. No entanto, esta utilização massiva de azoto traduz-se hoje em graves problemas ambientais, nomeadamente de degradação dos solos, poluição das águas e poluição atmosférica.

A agricultura biológica, baseada na proibição do uso de produtos de síntese, “químicos”, nomeadamente adubos, é frequentemente apresentada como uma forma de resolver estes problemas, voltando ao fornecimento de azoto às culturas agrícolas através de rotações com leguminosas e estrume de animais.

Um artigo de 2017 mostra que seria possível alimentar toda a Humanidade com agricultura biológica, desde que a fracção de proteína de origem animal baixasse de 38% para 11%,  e se  reduzisse o desperdício alimentar. No entanto, os cenários estudados têm um problema de fonte de azoto: o azoto obtido através do pastoreio por animais e através de leguminosas não chega para suprir as necessidades. Isto é, devido a restrições de azoto (mas não de área), não é possível alimentar toda a Humanidade com agricultura biológica. Este problema de azoto seria ainda muito mais grave se não houvesse animais no sistema, com capacidade de transformar erva de pastagens e subprodutos (por exemplo, o bagaço de soja que sobra depois de extracção do óleo) em produtos para alimentação humana e em fornecer estrume para a fertilização das terras agrícolas.

Isto quer então dizer que não é possível compatibilizar a agricultura biológica com a alimentação vegan? As evidências disponíveis parecem dizer que é difícil. As necessidades em azoto da agricultura biológica exigem a presença de animais no sistema (e, mesmo assim, poderá não ser possível alimentar toda a Humanidade com agricultura biológica). Há espaço para uma enorme expansão do número de pessoas com uma alimentação vegan, mas, se quisermos expandir fortemente a agricultura biológica, não podemos ser todos vegan.

 

Professor de Ambiente e Energia no Instituto Superior Técnico