1 de outubro de 1970. Entre o grito no chuveiro e o cigarro apagado  no ovo estrelado

1 de outubro de 1970. Entre o grito no chuveiro e o cigarro apagado no ovo estrelado


Alfred Hitchcock, que os americanos desprezaram ao início – “famed, fat, English” – visto por François Truffaut ao fim de 50 filmes. Deu um livro, Le Cinéma Selon Hitchcock, e um documentário que ficou para a história do cinema.


Quando foi pela primeira vez realizar um filme aos Estados Unidos, a revista Time recebeu Alfred Hitchcock com desprezo: “Famed, fat, English”. Até o “English” tinha o seu toque de desdém.

Alfred, como de costume, esteve-se nas tintas. Depois de A Janela Indiscreta, já estava nos píncaros dos elogios da imprensa. Reagiu ao seu estilo: “Man does not live by murder alone. He needs affection, approval, encouragement and, occasionally, a hearty meal”. E, em seguida, disse o piorio da cozinha americana, aproveitando para promover o seu gosto por aquilo a que os ingleses chamam, com certo descaramento, comida: “Such ice cream I would not trade for a steak & kidney pudding, a boiled silversmith with carrots & dumplings, or a Kentish chicken pudding”.

Quando completou o seu 50.o filme, Hitchcock dispôs-se a rodar um documentário com Truffaut. Com Hitch no protagonista, claro está. Cinquenta horas de conversa. Foi no início de 1970. Explicou-se. Explicou as suas ideias. Explicou a sua ideia de crime. E concluiu: “Não é aceitável para mim que um assassino mate alguém a quem não foi devidamente apresentado”. Impecavelmente britânico, sem dúvida. Questão de sociedade. Ou de snobismo, se preferirem.

Truffaut não teve dúvidas em deixar claro que Alfred ultrapassara a desconfiança de Hollywood com o à-vontade arrogante de um inglês. O documentário tornou-se livro: Le Cinéma Selon Hitchcock saiu primeiro em França e, em seguida, em Inglaterra, numa edição de bolso que vendeu como pãezinhos quentes.

Alfred é apresentado como um malandro. Uma raposa velha que usa argumentos que não demora a esquecer ou mesmo a contrariar. O diálogo entre o velho bonacheirão e o jovem diligente ficou como um dos momentos da história do cinema e da literatura. Mas nada se escondeu da atribulada carreira de Hitch, dos problemas eternos com produtores às dificuldades de relacionamento com escritores, dos seus históricos conflitos com as atrizes preferidas às discussões infinitas com eletricistas, técnicos e figurantes.

Era também Hitchcock por ele mesmo. François Truffaut fê-lo confessar os momentos dos seus filmes de que mais se orgulhava. E Alfred foi falando da lâmpada que colocara no copo de leite que Cary Grant leva à mulher, Joan Fontaine, subindo as escadas em A Suspeita; do grito lancinante de Janet Leigh no chuveiro em Psico; do cigarro apagado num ovo estrelado em O Ladrão de Casaca; o bater de pratos que deveria abafar o som do tiro de pistola durante o concerto em O Homem que Sabia Demais.

Hitch era um homem de pormenores. A começar pelo pormenor de assinar os filmes com a sua presença entre os figurantes nas cenas iniciais. E gostava de gente vulgar porque os seus personagens são sempre gente que leva uma vida normal. Para Truffaut, o segredo de Alfred estava fechado na sua educação religiosa, que o empurrava para determinados momentos de iconoclastia. E três dados fundamentais: medo, sexo e morte.

A simplicidade das obras de Hitchcock era confrontada com a magia de um certo mistério que se revelava geralmente pelos demónios que vivem dentro de todos nós. Havia que ultrapassar a vergonha ou o retraimento de os expor.

O livro de Truffaut não teve sucesso nos Estados Unidos, algo compreensível. Mas a América acabou por se enamorar de Alfred Hitchcock e por transformar algumas das suas películas em obras universais e sempiternas.

Nove anos depois do lançamento de Le Cinéma Selon Hitchcock, o American Film Institute promoveu-lhe uma gigantesca homenagem. O famoso, gordo e inglês não deixou de ser ele próprio no momento do esperado discurso: “Diz-se por aí que chamo gado aos atores. Nunca! Só disse que devem ser tratados como gado”.