Os clichés têm a força da simplicidade na transmissão de informação, dão conforto na identificação imediata de situações, pessoas e territórios. Se os clichés tiverem adesão à realidade têm a eficácia de verbetes de enciclopédia na divulgação de versões simplificadas da realidade. Quando a realidade evolui muito depressa os clichés sofrem com o atraso e podem tornar-se caricaturas. O Reino Unido, prestes a deixar de fazer jus ao nome, tem evoluído muito, desde logo nas respectivas estruturas jurídico-políticas. Muita dessa evolução foi provocada pela “terrível” Europa continental, não por via da invasão e da ocupação física mas por via da pressão cultural. Mesmo que o Brexit venha a acontecer ou, por certo, quando o Brexit se materializar, a herança cultural da Europa continental não deixará de florescer no Reino Unido. Muitos desses elementos foram impostos por via de uma cultura jurídica mais forte, mais densa e capaz de moldar os modelos tradicionais britânicos. As primeiras arremetidas chegaram por via da Convenção dos Direitos do Homem e das decisões da então existente Comissão dos Direitos do Homem e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). Os lamentos com as imposições da Comissão Europeia (a determinação da curvatura e do tamanho do pepino britânico na imorredoira rábula na série Yes Minister) e do Tribunal de Justiça são mais recentes mas igualmente reveladoras da influência da Europa continental.
Para provar que o RU já não é o que era, servem dois exemplos recentes. Por razões históricas o RU não tinha um Supremo Tribunal autónomo que se ocupasse da interpretação última da Constituição. Esta tarefa estava confiada à Câmara dos Lordes onde se sentavam juízes de carreira promovidos à condição de Lordes togados. Formalmente uma das Câmaras do Parlamento acabava a decidir da constitucionalidade das decisões legislativas desse mesmo Parlamento. À luz da pureza da separação de poderes a coisa era mal vista pela Europa continental, a começar pelo TEDH. Em 2005 o Constitutional Reform Act dotou o RU de um Supreme Court autónomo, em funções desde 2009, como nas nações civilizadas da Europa continental. Não houve coragem para importar o modelo de europeu de escolha mista dos juízes dos tribunais constitucionais (magistrados de carreira e outros) e o Supreme Court manteve em exclusivo juízes de carreira. Esta quarta-feira fizeram-se sentir as consequências da escolha: o Governo perdeu, por 11 votos unânimes, a decisão de suspender o Parlamento.
O segundo exemplo marca o fim de um cliché poderoso: o do parlamentarismo. Em 2011 Westminster aprovou o Fixed-term Parliaments Act que modificou o sistema de governo. Até então o primeiro-ministro era livre para solicitar a dissolução do Parlamento e convocar eleições antecipadas num momento de maior conveniência política. Em 2011 foram introduzidos no sistema de governo elementos de racionalização, concedendo 14 dias para a formação de um Governo alternativo depois de aprovada uma moção de censura. Fora desta circunstância, a convocação de eleições antecipadas terá de ser aprovada por dois terços dos deputados. O parlamentarismo racionalizado, com a quase enxertia do mecanismo da moção de censura construtiva, é responsável pelo bloqueio político actual: ainda não há dois terços dos deputados dispostos a forçar a antecipação das eleições antecipadas e o primeiro-ministro não tem uma maioria que possa votar uma moção de censura.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990