Gémeas Marotas. O caso do livro erótico apreendido pela ASAE

Gémeas Marotas. O caso do livro erótico apreendido pela ASAE


Processo relativo direitos de autor levou ASAE a apreender exemplar de livro editado em 2012. Padre que denunciou obra revelou que queixa partiu da editora holandesa.   


O grafismo e personagens são idênticos aos da coleção infantil Miffy, mas no interior há posições sexuais e textos de teor erótico. O livro As Gémeas Marotas já tinha dado que falar no Brasil este mês, quando um grupo do whatsapp partilhou imagens da edição como estando a ser apresentada na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, que viria a ficar marcada pela decisão do prefeito Marcelo Crivella de mandar retirar o livro de banda-desenhada Vingadores: A cruzada das crianças, com um beijo entre duas personagens masculinas, considerando-o desapropriado a menores. A crítica era igual para o livro das gémeas, mas na altura o fact checking da imprensa brasileira revelou que a obra não era vendida no país mas sim uma publicação portuguesa. A ASAE confirmou esta quarta-feira uma ação para apreensão de um exemplar na Biblioteca dos Olivais, que incluiu também pontos de venda comercial. Em causa está um processo relacionado com direitos de autor.

O caso veio a público com uma publicação feita no blogue Uma Bedeteca Antónima, que revelou a ação da ASAE nas instalações da Biblioteca dos Olivais tendo como alvo uma sátira à Miffy do autor holandês Dick Bruna, considerando-a o resultado de meses de “difamação dos Direitinhas, ultra-católicos e outros elementos burgessos da sociedade laica portuguesa”.

O texto remetia para uma opinião publicada no Observador pelo padre Gonçalo Portocarrero de Almada, do Opus Dei, que teceu duras críticas ao livro, denunciando o conteúdo sexual explícito e o facto de estar disponível nos catálogos da Biblioteca Nacional e da Rede de bibliotecas de Lisboa, considerando a obra um “incentivo à pedofilia”. Segundo o fact cheking da imprensa brasileira, as imagens do livro começaram a circular em 2014, mas a obra permaneceu longe dos holofotes.

Instalada a controvérsia nas redes sociais, com críticas a uma alegada censura, a ASAE esclareceu esta quarta-feira que a apreensão da edição não teve a ver com o teor da obra. Surgiu “no seguimento de uma queixa e no âmbito de um processo-crime por usurpação de direitos de autor”. A mesma fonte confirmou que o exemplar foi “apreendido como medida cautelar e somente para preservação de prova, nos termos processuais penais”.

A queixa foi realizada este ano por parte do representante dos direitos de autor da coleção da Miffy. Remeteu-se ao Ministério Público por se tratar de um processo-crime que delegou a ASAE para as diligências necessárias. A mesma fonte explica que este livro basicamente “aproveitou os bonecos e imagens originais para reescrever a história, dando-lhe um cariz diferente do original, que era um livro infantil”. O processo corre termos no DIAP de Lisboa.

ASA desconhecia recriação erótica Fonte oficial da editora ASA, responsável pela publicação dos livros da Miffy em Portugal desde 2002, confirmou ao i não ter conhecimento desta versão erótica até às notícias na comunicação social e que nada teve a ver com a queixa. Explicou ainda que a editora “remeteu a queixa que foi feita para a editora original na Holanda, a Mercis, para lhes dar conhecimento do sucedido”. No Facebook, Gonçalo Portocarrero de Almada escreveu ontem que a queixa terá partido desta editora holandesa.

“É sabido que, a seu tempo, denunciei no Observador um livro pretensamente infantil que, na verdade, escondia um conteúdo indecente. Houve quem protestasse, dizendo que o livro pura e simplesmente não existia, o que não era verdade; ou que, existindo, não estava à venda, o que também não era certo, porque houve quem o encontrasse à venda, entre outros livros infantis, e até quem o comprasse pela módica quantia de 10 euros”, refere a publicação. “Um ilustre professor da Universidade de Coimbra, depois de ler a minha crónica, decidiu contactar a editora de Dick Bruna, o escritor holandês de literatura infantil plagiado nessa edição pirata portuguesa. Graças aos bons serviços de um ilustre professor da mesma Universidade, que domina a língua holandesa, foi possível estabelecer o contacto com essa editora dos Países Baixos”, continua, referindo que a editora reagiu com “profunda indignação” por o livro se confundir com um original de Dick Bruna e solicitou em 2018 a colaboração das autoridades portuguesas, tendo sido iniciada então a investigação judicial. O i procurou esclarecimentos junto da Mercis, sem sucesso até ao fecho desta edição. Com Marta F. Reis

Um livro polémico e misterioso

Obra foi reeditada em Portugal em 2012. Autor é desconhecido.

O livro foi publicado inicialmente em 1970 e é assinado por Brick Duna, pseudónimo que alude igualmente ao holandês Dick Bruna. O autor não é conhecido. A gráfica Multitipo, responsável pela reedição em Portugal de 2012, indicou ontem ao Expresso que as questões devem ser colocadas à editora. Na ficha disponível no catálogo da Biblioteca Nacional, onde se mantém a referência ao livro, é apenas indicada esta gráfica de Queluz de Baixo, o autor Brick Bruna e a tradução de Maria Barbosa, o que sugere que o livro  poderá ser estrangeiro. Não foi ainda assim possível encontrar referências à obra noutros países.

Nesta versão, as gémeas Gina e Gila descobrem a sua sexualidade. Uma das irmãs gosta de rapazes, enquanto a outra irmã gosta de raparigas. Para além disso, há ainda ilustrações da coelha Miffy a ter relações sexuais. Fonte oficial de Freguesia dos Olivais esclareceu ontem que, no caso da biblioteca local, o livro encontrava-se na sala de reservados, pelo que nenhuma criança ou menor poderia ter acesso à obra. Apenas consoante a requisição de um adulto alguém poderia ter acesso à mesma. 

De resto, este era o único exemplar da obra existente na Rede Municipal de Bibliotecas de Lisboa. Também estabelecimentos comerciais, como foi o caso da Livraria “Ler Devagar”, foram alvo de ações semelhantes. Segundo José Pinho, livreiro neste estabelecimento, estiveram três agentes da ASAE na livraria para confiscar estes livros, mas já não havia nenhum exemplar à venda. “Comecei a vender esse livro há uns anos e foi um sucesso estrondoso. Comprámos a uma empresa que está legalizada, temos faturas, não vejo ilegalidade nisso. Vendi mais de 500 e tenho pena de não ter mais”, disse.