Os padres dispensados do celibato para casar vão poder dar aulas em colégios e universidades ligadas à igreja e participar na vida das suas paróquias. As alterações foram reveladas nos últimos dias pelo portal religioso Religión Digital em dois artigos, que dão conta de uma revisão feita pelo Papa Francisco ao documento que confere a dispensa do celibato para uma tónica de maior acolhimento.
José Manuel Vidal, diretor da publicação, descreve uma mudança “absoluta e radical”, em que os padres dispensados do ministério sacerdotal deixam de ser vistos como “traidores” e passam a ser encarados como irmãos dispensados.
Não houve um anúncio oficial do Vaticano. O portal assenta a informação no “rescrito” recebido este verão por um sacerdote dispensado das funções eclesiásticas, o documento com as normas, publicando a comparação entre a versão antiga e a atual. José Manuel Vidal assinala que a primeira alteração substancial prende-se com a linguagem utilizada, que deixa de referir os termos “secularização ou “redução ao estado laical” para passar a referir-se aos padres como clérigos dispensados.
O portal destaca também o facto de o documento explicitar que a autoridade eclesiástica deve “empenhar-se” em facilitar que o clérigo dispensado desempenhe “serviços úteis” na comunidade cristã, pondo ao serviço desta os dons e talentos recebidos de Deus. O mesmo site salienta que é posto um fim ao “desterro” dos padres nestas situações, que até aqui eram aconselhados a afastar-se das paróquias a que pertenciam.
Há também uma alteração nas referências ao casamento, que na versão anterior devia ser “discreto e sem boato”. O novo rescrito, datado de julho de 2019, reduz a obrigação a “respeitar a sensibilidade dos fieis do lugar.” Em suma, refere o portal, “há um tom mais amável, acolhedor e compreensivo”, com o site a interpretar que o documento deixa ainda em aberto a questão do celibato obrigatório dos padres. Refere que a dispensa do celibato é inseparável da perda de estado clerical, elementos que não podem nunca ser separados, “sendo na prática atual parte do mesmo procedimento.” Na leitura feita por este portal, esta referência à “prática atual” dá a entender que isto seria algo alterável no futuro.
A Associação Fraternitas, que reúne em Portugal padres que pediram a dispensa do celibato para casar, saudou ontem a alteração. Em declarações ao Público, que avançou a notícia, Jorge da Silva Ribeiro, presidente da associação, relatou que há outras alterações a relevar no documento agora tornado público. “O bispo passa a estar obrigado a enviar uma carta assinada pelo solicitante como prova de que este foi informado da decisão. E isso é importantíssimo porque muitos dos meus colegas que pediram a dispensa nunca chegaram a receber o ‘rescrito’ e há bispos que demoram dois anos ou três a informar os padres da decisão, na esperança de que estes mudem de opinião”.
Contactado pelo i, Jorge da Silva Ribeiro recordou que em 2014 este grupo de apoio a padres portugueses casados, situação em que na altura se estimava que houvesse 450 antigos sacerdotes em Portugal, já tinha escrito ao Papa Francisco pedindo um maior acolhimento, considerando “formidável” a formulação agora conhecida.
“Uma revolução na igreja” O padre Anselmo Borges, teólogo e professor, sublinha o “alto significado” das alterações agora conhecidas, concordando com a leitura feita pelo portal espanhol. “Esta nova linguagem significa uma revolução na Igreja”, disse ao i, salientando a substituição dos termos “redução ao estado laical”, as mudanças relativas ao matrimónio e a readmissão nas universidades, nomeadamente para o ensino de teologia e religião.
“Anteriormente um padre era reduzido ao estado laical, como se os leigos na igreja fossem cristãos menores. Por outro lado, como o padre para celebrar o seu casamento devia fazê-lo de forma discreta, significava também algum menosprezo para com o sacramento do matrimónio”. Anselmo Borges reconhece que nos últimos anos já havia uma maior aceitação por parte da Igreja, mas do ponto de vista jurídico o argumentário mantinha-se inalterado, sublinha, o que agora Francisco mudou.
Anselmo Borges destaca também o sinal de abertura para um cenário em que o celibato possa deixar de ser condição para o sacerdócio, salientando que as alterações são conhecidas em vésperas do sínodo dos bispos de outubro, sobre a Amazónia, cujos documentos preparatórios admitem a possibilidade de ordenar homens casados para responder à falta de sacerdotes na região. “Abre-se um espaço para inclusivamente recuperar estes padres que entretanto casaram para o ministério pleno”, conclui Anselmo Borges, uma mudança que antevê que exigirá sempre tempo. “Há muitas forças dentro da Igreja e o Papa Francisco tem de proceder com muita prudência. Estou convencido de que queria avançar mais rapidamente na transformação das estruturas da Igreja, mas não pode fazê-lo”.