Cimabue. Seis milhões pendurados numa cozinha

Cimabue. Seis milhões pendurados numa cozinha


À entrada da cozinha de uma casa no norte de Paris, esteve durante gerações, e sem que a família suspeitasse, uma raríssima obra com 750 anos do pai da pintura ocidental. É a primeira vez que uma obra de Cimabue – o pintor a que, escreveu Dante, Giotto roubou a fama – é levada a…


Há pouco mais de seis meses foi anunciado o leilão de um Caravaggio que em 2016 uma família francesa encontrou esquecido no sótão da sua casa. Agora, a proprietária de uma casa em Compiègne, uma cidade nos arredores de Paris, descobriu que a pequena pintura que tinha pendurada à porta da cozinha é uma raríssima obra de Cenni di Pepo, conhecido como Cimabue (1240-1302), pintor e criador de mosaicos florentino amplamente reconhecido como o pai da pintura ocidental, e ao qual Dante Alighieri faz referência no Purgatório de A Divina Comédia (1304-1321), como o elipsado detentor dos louros que na História da Arte ficariam entregues a Giotto (1266-1337).

Trata-se de uma pintura sobre um pequeno painel de álamo, de 25,8 por 20,3 centímetros de dimensão, que está a ser intitulada de Le Christ moqué – O Cristo zombado, por uma multidão – e escreve o Le Monde que é provável que se trate de uma parte de um políptico datado de 1280, pertencente a uma representação, em oito painéis, das cenas da Paixão de Cristo. Isto porque são conhecidas outras duas cenas daquela que se acredita que seja a mesma série, que estão na National Gallery de Londres e na Frick Collection de Nova Iorque. Também a primeira delas esteve durante séculos perdida: chegou à coleção do museu londrino já neste século, depois de um aristocrata britânico a ter encontrado numa casa pertencente à sua família e a ter doado ao Estado, em 2000.

E se no recente caso do Caravaggio descoberto num sótão o leilão demorou três anos a realizar-se – houve que confirmar primeiro a autenticidade da obra – quanto a esta pequena pintura de Cimabue não há grandes dúvidas, de acordo com os especialistas citados pelo diário francês. A pintura com quase 750 anos será por isso levada a leilão em Senlis, no norte da França, em pouco mais de um mês, já no próximo dia 27 de outubro.

O especialista nos mestres de pintura antiga Éric Turquin, que colaborou com a Actéon, a leiloeira, na investigação sobre a autenticidade da obra, não tem dúvidas em relação a tratar-se de um original. “A atribuição é evidente”, disse ao Le Monde, acrescentando, em declarações ao Figaro, que não há dúvidas de que “foi feita pela mesma mão” que os outros painéis que se conhecem. Citado pela publicação especializada The Art Newspaper, refere-se mesmo ao pequeno painel agora descoberto como “o único trabalho de devoção de pequena escala acrescentado recentemente ao catálogo das obras autênticas de Cimabue”.

Uma obra especial Será a primeira vez em décadas que uma obra da autoria de um dos pintores primitivos italianos é levada a leilão. Mais do que isso: segundo o The Art Newspaper, é a primeira vez que acontece com uma obra da autoria de Cimabue “desde que há memória no mundo do comércio de arte”. Tanto que se estima que a pequena pintura de 25 centímetros venha a atingir em leilão um valor entre os 4 e os 6 milhões de euros.

A descoberta foi feita em junho passado pela jovem leiloeira Philomène Wolf, depois de contactada pela proprietária da casa, que desconhece o caminho que terá feito a pintura até chegar às mãos da sua família. Estava pendurada à entrada da cozinha e era considerada especial pela família, que apesar disso estava longe de imaginar que tinha em casa um raríssimo Cimabue, cuja obra conhecida está hoje maioritariamente exposta entre a Basílica de São Francisco de Assis, a Galeria dos Uffizi, em Florença, e o Museu do Louvre.

A proprietária decidiu ainda assim entrar em contacto com a leiloeira, para que avaliasse a obra, entre outras, quando teve que esvaziar a casa. “Tive muita sorte”, comentou Wolf ao The Art Newspaper. “Estou no início da minha carreira, e esta é uma daquelas descobertas pelas quais se pode esperar uma vida inteira”.

A obra de estilo bizantino, que não estava assinada, foi depois examinada por Turquin, que a identificou como parte do políptico do qual se conhecem os dois referidos painéis: A Flagelação de Cristo (National Gallery) e Nossa Senhora com o Menino Entronizada entre Dois Anjos (Frick Collection). “É o mesmo painel”, garantiu o especialista, explicando que até o padrão das perfurações do bicho-da-madeira que com o tempo acabou por afetar os três é idêntico. “Temos provas objetivas de que é do artista”.

O segundo destes painéis esteve perto de ser levado a leilão pela Sotheby’s, mas acabou por ser adquirido pelo Estado norte-americano através de um acordo de venda privado por, segundo valores avançados pela publicação da especialidade Artnet, 9 milhões de dólares (cerca de 8 milhões de euros). Resta saber se o mesmo acontecerá com a mais recente obra descoberta de Cimabue – a verdade é que também o leilão do Caravaggio anunciado neste ano acabou por nem se concretizar, com a obra a ser vendida em privado ao colecionador J. Tomilson Hill. Ao The Art Newspaper, Wolf insiste: “Só vai ser vendido em leilão. Vai ser o primeiro leilão de um Cimabue”.