O pecado da carne


A concupiscência da carne é muito menos perigosa do que os deleites do proibicionismo.


Vivemos tempos curiosos, caminhando em direcção a uma novíssima Idade Média, alimentada, ironicamente, pela disseminação das novas tecnologias da informação, responsáveis pela verdade única e pela vida dentro de uma bolha opinativa onde se ouve apenas o refrão das verdades que agradam. A velocidade a que a verdade única se propaga pelas redes sociais é extraordinariamente rápida, mesmo instantânea. E da verdade única passa-se logo para a pressão social orientada para a decisão única, simbólica e imediata, também ela quase instantânea.

O direito à informação implica pluralidade de meios de informação, pluralidade de opiniões contraditáveis e contraditadas e possibilidade real de acesso a tais meios. Na vida da esmagadora maioria dos habitantes do planeta não há nem acesso à pluralidade de fontes nem sequer vontade de aceder. A liberdade só faz sentido se for informada. A liberdade para concordar com a ditadura dos likes, trends, influencers e quejandos está prestes a devolver a humanidade ao estado de escravidão.

A perda de liberdade de escolha vai de par com a balcanização da regulação da vida social, seja uma regulação “suave” por via da pressão social da opinião vista como dominante, seja a regulação “dura” com a multiplicação das proibições e dos interditos formais. Cinquenta anos depois do Maio passou a ser proibido não proibir.

Quando o interdito surge dentro da esfera da administração pública, a obrigação de sindicar o bem fundado da proibição de uma determinada actividade passa pelo respeito do princípio da imparcialidade. As escolhas que a administração impõe aos administrados têm de ser imparciais, não podem ser desprovidas de fundamento, de racionalidade ou de utilidade.

Se é a administração pública escolar que está em causa, maior será a obrigação de neutralidade em relação à não limitação de escolhas dos administrados que envolvam opções políticas, filosóficas, religiosas, sociais e económicas.

A decisão, anunciada pelo Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra, de proibir, a partir do início do próximo ano civil, o consumo de carne de vaca nas refeições fornecidas pelas respectivas cantinas traz consigo todos os perigos do feel good elevado a fórmula decisória. A medida não deixaria de ser sindicável se fosse limitada, com respeito pelo princípio da proporcionalidade, à redução do consumo, sobretudo se fosse qualificado por verdadeiros critérios ambientais (natureza extensiva da produção, pequenos produtores, produtores localizados a menos de 100 quilómetros de distância do local de consumo,…). Mas um interdito absoluto soa demasiado a medida panfletária, capaz de contar com o apoio das massas que se movem ao sabor das redes sociais, mas de muito duvidosa utilidade na adaptação ou mitigação dos efeitos negativos das alterações climáticas.

E claro que as novas vacas sagradas continuarão acessíveis àqueles que possam pagar a alimentação fora das cantinas universitárias. Nesta redacção sobre a vaca quero deixar o testemunho da escola de Lisboa onde um colega, recém-licenciado no início dos anos 90 do século passado, foi surpreendido pela progenitora, que lhe mostrava uma caixinha pequenina enquanto lhe perguntava:

– Parabéns, filho! Agora que acabaste o curso, adivinha o que tenho aqui para ti?

– Bifes? – questionou o jovem doutor, frequentador obrigado das cantinas da Universidade de Lisboa.

Para desconsolo do meu colega, a senhora sua mãe mandara imprimir cartões–de-visita.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990