No texto de que este é continuação, a noite era sem sono, e nela tudo era mais escuro, faltava um pouco mais – por exemplo, um pouco mais de carinho, et cetera – e passado e futuro pareciam cheios de encontros desencontrados, que não saciam, e que nunca são no tempo certo (por antecipação ou por atraso). Mas no mesmo texto acabava-se dizendo que há que esperar, para começar esperar pelo clarear do dia, pois a noite pode enganar e sabe-se lá o que virá e o que se verá. Pois bem, a noite nunca engana, mas sempre engana. Mesmo que Melville, em “A Piazza”, não tenha inteira razão quando diz no final que a verdade chega com a escuridão, a noite insone não engana porque o que nela se sente e pensa é verdade, na justa medida em que existe, pelo menos nessa altura, e de algum lado há de vir. Se há dor, há causa; se há sintoma, há doença. Mas ela também engana sempre, porque deforma e hiperboliza, seja a alegria, seja a tristeza, e não permite ver mais largo e mais claro. Para isso é preciso o dia. Melhor, são precisos os dias, o tempo, a vida, a lucidez – talvez o que se chama maturidade ou, pelo menos, experiência.
Não que nos conformemos, não que desistamos, mas podemos ver melhor e mais ao longo do tempo, de preferência sob a luz dos dias. E, com essa visão, podemos talvez melhor saber se, afinal, o que há chega ou não chega, podemos escolher (se pudermos), podemos decidir, e lutar, e trabalhar, seja no “pouco mais” seja na aceitação da sua ausência. Preciso é que não fiquemos amarrados ao negro da insónia ou à fantasia da festa noturna. Os dias ensinam, por exemplo, que o carinho é algo muito relativo, que depende de muitas coisas, desde logo das medidas que cada um tem do que é preciso e do que pode, receber e dar, depende das vivências, depende da biologia, da cultura, de tanta coisa. Até, por exemplo, de se ter ou não um maior ou menor sentido de perda. No recente Sabotagem, de Pérez-Reverte, Maria Onitsha explica sabiamente a Falcó porque é que as mulheres negras são tão carinhosas: “(…) houve um tempo em que vendiam ou matavam os nossos homens, e nunca sabíamos quanto tempo é que íamos estar com eles”. São coisas como estas que se podem aprender quando se relativiza um pouco, ou mesmo se dá as costas à noite sem sono e ao que nela se viu. E se pensa, em silêncio (os silêncios educam o olhar), ou se conversa (os diálogos também o educam).
E não há um tempo certo para os encontros, ou melhor, todos os tempos são certos, porque são assim, são o que são, os pares encontram-se quando se encontram, e não quando se fantasia que se deveriam encontrar. A música é a que é, os passos são os possíveis e os corpos ajeitam-se ou não. E as coisas servem ou não servem, chegam ou não. E nem tudo é como diz o urubu da insónia, nem tudo é tão claro como anuncia o colibri juvenil da fantasia. É o que é, o melhor possível. O tempo é sempre o errado e é sempre incerto, mas é tão certo quanto real. E se serve ou não, cada um saberá, na mestria das suas possibilidades, para as quais a insónia é péssima conselheira e má amiga das coisas vivas. Quando o dia clarear, ver-se-á. E sabe-se lá o quê. Importante é que, ao contrário do protagonista de A Única História, de Julian Barnes, não se fique satisfeito por não repetir os erros dos outros. O que mais importa é não repetir os nossos.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira