O factor Boris


O problema dos políticos que seguem modelos históricos é que têm apenas uma visão parcial e redutora dos seus modelos que não corresponde à personalidade efectiva dos inspiradores.


Em 2014, Boris Johnson, então presidente da Câmara de Londres, publicou um livro que intitulou O Factor Churchill, onde efectua uma avaliação dos vários episódios da vida de Churchill. O episódio que Boris Johnson avalia mais positivamente é precisamente a recusa de Churchill em fazer um acordo com a Alemanha de Hitler quando chega a primeiro-ministro, em 1940. Boris Johnson recorda a este propósito que, nessa altura, grande parte da liderança conservadora pretendia esse acordo e que só a obstinação de Churchill levou à sua não celebração. E Boris Johnson conclui: “If Britain had done a deal in 1940 – and this is the final and most important point – then there would have been no liberation of the continent. This country would not have been a haven of resistance, but a gloomy client state of an infernal Nazi EU”. (“Se a Grã-Bretanha tivesse feito um acordo em 1940 – e este é o ponto final e mais importante – não teria existido a libertação do continente. Este país não teria sido um refúgio de resistência, mas um triste protectorado de uma infernal União Europeia nazi”.)

Logo na altura da publicação do livro, vários analistas salientaram que Boris Johnson pretendia utilizar a vida de Churchill para traçar um paralelo consigo próprio. Afinal, como Churchill, também ele seria um bom escritor, um grande orador e um defensor obstinado das suas posições, mesmo contra os seus próprios companheiros de partido. Mas, neste momento, parece que Boris Johnson julga que a Europa de 2019 corresponde à Europa nazi de 1940 e que a sua tentativa de realizar o Brexit no próximo dia 31 de Outubro, mesmo sem acordo com a UE, corresponde à recusa de Churchill em obter um acordo com a Alemanha nazi, já que o acordo proposto com a UE transformaria também, hoje, a Grã-Bretanha num protectorado europeu.

O problema dos políticos que seguem modelos históricos é que têm apenas uma visão parcial e redutora dos seus modelos que não corresponde à personalidade efectiva dos inspiradores. Churchill obteve uma vitória extraordinária na ii Guerra Mundial mas, antes disso, tinha tido muitas derrotas na sua vida e cometido muitos erros com consequências trágicas. O seu maior erro ocorreu na Batalha de Galípoli, em Fevereiro de 1915, na i Guerra Mundial, em que, com a vaidade de ter sido nomeado primeiro lorde do Almirantado aos 40 anos, se julgou um grande estratega militar e organizou um ataque à Turquia no estreito dos Dardanelos que se saldou numa derrota colossal com 45 mil mortos, que o perseguiu toda a sua vida, praticamente afastando-o da política durante muitos anos. Voltaria a cometer um erro colossal em 1936, quando defendeu contra tudo e contra todos a não abdicação de Eduardo viii, novamente com graves danos na sua reputação política.

Apenas os repetidos avisos de Churchill contra o perigo que Hitler representava lhe permitiram regressar ao poder com o início da ii Guerra Mundial, a princípio novamente como primeiro lorde do Almirantado, e depois como primeiro-ministro. Só que, ao contrário de Boris Johnson, Churchill não tentou suspender o Parlamento britânico, antes obteve o seu apoio com o seu célebre discurso de 13 de Maio de 1940, em que prometeu apenas sangue, fadiga, suor e lágrimas (“blood, toil, tears, and sweat”).

Churchill também não era um opositor da União Europeia, tendo sido até o primeiro a falar dos Estados Unidos da Europa, na sua célebre conferência na Universidade de Zurique em 19 de Setembro de 1946. Não defendeu na altura a integração do Reino Unido na Europa, mas foi o impulsionador inicial da unidade europeia, apelando à reconciliação entre a França e a Alemanha. Dificilmente, por isso, os ataques de Boris Johnson à União Europeia podem ter alguma inspiração em Churchill.

É assim manifesto que o factor Boris não tem qualquer comparação com o factor Churchill em que se pretende inspirar e que as diatribes de Boris Johnson não são apenas um atentado à democracia britânica como também um disparate sem precedentes na história política recente do Reino Unido. Na verdade, um primeiro-ministro, que tem a sua fonte de legitimidade no Parlamento, não pode usar expedientes para desconsiderar a vontade desse Parlamento, especialmente quando está em causa a mais importante decisão da política britânica das últimas décadas.

Na sua obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx comparou a ascensão de Napoleão iii em França com a realizada pelo seu tio Napoleão i, afirmando então que os acontecimentos históricos ocorriam sempre duas vezes, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Se a situação do Reino Unido em 1940 foi uma verdadeira tragédia, resolvida pelo factor Churchill, as confusões que atravessa agora, em 2019, só podem ter o qualificativo de uma farsa, potenciada pelo factor Boris. O problema é que se trata de uma farsa com enormes custos para todos os cidadãos europeus.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990