Antes do jogo de Belgrado, a malta que discute e fala pelos cotovelos sobre a seleção nacional mais as suas virtudes e defeitos, quem deve e não entrar de início, quem tem ou não tem de ser convocado e por aí fora, na lengalenga habitual, andava meio descoroçoada, a matutar nos dois empates caseiros frente a Sérvia e Ucrânia, muito mal digeridos, benza-os Deus, já que pareciam pôr em causa o apuramento para uma fase final de um Campeonato da Europa, estúpida como nunca, se me dão licença, espalhada a trouxe-mouxe por cidades a esmo do Velho Continente. De tudo aquilo que se pôde ouvir, por entre esquinas e mesas de café, nas esplanadas deste país em pleno verão a escorropichar cerveja, voltamos ao mesmo e este mesmo é a teimosia do engenheiro, Fernando Santos de seu nome, que apesar de já ter tratado de ganhar, no comando de Portugal, um título de campeão europeu e uma Taça das Nações, continua a merecer a embirração de um número de portugueses muito razoável.
Eis peditório para o qual há muito deixei de dar. Fernando Santos é assim, continuará a ser assim, que se lixe o futebol de encher o olho, todo ele ofensivo e pleno de habilidades, truques de prestipetação (autorize-se o neologismo) e o diabo a quatro; para ele conta é o resultado, ouvidos moucos às críticas, vamos a isto que se faz tarde, arregaçar as mangas e despachar a Sérvia, logo por 4-2, coisa que não é para todos, bem pelo contrário.
E, de um momento para o outro, o Portugal amordaçado dos empates caseiros está praticamente apurado – não faz mais do que a sua obrigação, acrescente-se –, bastando para tanto quatro vitórias nos jogos frente a Lituânia e Luxemburgo. Lembrei-me logo do Coronel do García Márquez, com a mulher e o galo, aflito de graveto, número 1823 na fila de espera para receber a carta do sistema de pensões que lhe ampare a existência, todas as sextas-feiras à espreita da lancha do correio que não lhe traz novidades. Pois, admita-se. Não vale a pena escrever ao engenheiro. Mesmo que receba de todos aqueles que lhe rogam pela pele uma carta com indicações sobre a maneira como deve jogar e estraçalhar adversários uma seleção que tem no peito o escudo de melhor da Europa, ele não vai sequer abrir os envelopes.
O mantra Ouvi-lo falar é como ouvir um mantra. Ainda ontem foi assim. “É uma final e uma final é para ganhar”, disse ele, que já ganhou duas. “Vamos ter muito respeito pelo nosso adversário, que vai quer fazer um feito frente a Portugal. Temos de estar ao nível da Lituânia em termos de humildade e entrega e fazer o que sabemos fazer. Estou convencido de que vamos ganhar”. E já está. Meteu as mãos nos bolsos e foi à sua vida.
Tem sido assim jogo após jogo. No Mundial, na Rússia, falhou um bocado nas contas, já tinha mandado viajar a família quando se viu enganado pelo Uruguai, mas aceitemos que um Mundial é algo de absolutamente diferente, tem um gigantismo que não se compadece com fés nem com erros inocentes – e a seleção cometeu alguns no jogo de Belgrado, como todos vimos – que não são emendáveis.
Hoje, em Vilnius, não é o relvado sintético que irá preocupar por aí além o (quase) sempre sisudo engenheiro. Acreditem que ele é mais assim para fora do que para dentro, já o vi soltar umas boas gargalhadas e contar pilhérias sorridente e bem-disposto, mas entretanto aferrou aquela cara fechada para as televisões e o banco também não é local onde se descontraia por aí além: “Não há indicações para meter ou não meter o pé. Têm é de jogar e ganhar. Não vamos entrar nessa especulação. A melhor resposta que posso dar é que queremos fazer o mesmo que nas Ilhas Faroé”. Ilhas Faroé que também tinham um campo sintético e que não deixaram por isso de levar seis golos em casa do Portugal do engenheiro.
Convenhamos que, em relação ao jogo frente à Sérvia, só se surpreenderam com a titularidade de Gonçalo Guedes aqueles que têm ansiado pela presença de João Félix ao lado de Cristiano Ronaldo e de Bernardo Silva. Já o escrevi mais do que uma vez, recentemente durante a Liga das Nações, que será inevitável, mais cedo ou mais tarde, conseguir juntar na equipa nacional os quatro mosqueteiros (já com D’Artagnan) – Bruno Fernandes incluído. Mas não seria certamente Fernando Santos, tal como temos obrigação de o conhecer, tantos são os anos que leva como treinador, e eu ainda me lembro bem de o ver jogar e fazer crónicas dos seus jogos, com a camisola do Estoril, a deixar cair para o banco de suplentes o rapaz que nasceu na Benavente da primavera da minha adolescência, ali à beira do Sorraia, que leva o nome de Gonçalo Manuel Ganchinho Mendes e tratou de resolver aquele berbicacho da final contra a Holanda, nas Antas, com um pontapé certeiro que deu a Portugal a Taça das Nações. Ora, tubérculos! Estava-se mesmo a ver. Depois, cada um fizesse as contas que quisesse sobre os que entravam ou ficavam de fora. Guedes tinha de ser titular em Belgrado. E foi decisivo. Por isso, dispenso o desgraçado do peditório. Entrava pelos olhos dentro de um amblíope em grau elevado.
Tal como não me restam grandes dúvidas de que nos apuraremos com facilidade para o Europeu, a despeito dos deslizes iniciais, também estou certo que a malta da crítica escusa de escrever ao engenheiro. Ele não vai mudar. E sempre poupam algum nos envelopes e na saliva…