São três organizações com a mesma causa e histórias com um ponto em comum: combater a cegueira, encurtando a distância entre médicos e doentes. Distância física quando se pensa nas periferias dos grandes centros ou nas comunidades no interior da Amazónia e a distância da pobreza. À 13.ª edição, o prémio Champalimaud de Visão tem como destino o Brasil e foi atribuído esta quarta-feira ao Instituto de Visão – IPEPO, à Fundação Altino Ventura e ao serviço de Oftalmologia da Universidade de Campinas (UNICAMP). Ao i, os vencedores falaram dos projetos iniciais, dos que têm em mãos e do que vão fazer com aquele que é, desde 2007, o maior prémio do mundo nesta área. São um milhão de euros, 333 mil para cada. Mais as portas que acreditam que ajuda a abrir.
Ir à procura dos doentes
A ideia era simples, mas não foi logo consensual: com tantas pessoas na América Latina a cegar por causa de cataratas, porque não sair do hospital e ir à procura dos doentes? Carlos Arieta, em Lisboa para receber o prémio da Fundação Champalimaud, lembra que a proposta foi lançada numa reunião de oftalmologistas nos Estados Unidos mas só um médico brasileiro e um médico peruano a levaram para a frente. Era o final dos anos 80 e o serviço de oftalmologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) tornou-se numa incubadora de um modelo de “oftalmologia comunitária” com o projeto Zonas Livres de Cataratas. “80% das pessoas são cegas por causas tratáveis e percebemos que isto acontecia a 30 minutos do hospital, ao lado do hospital”.
Foram bater à porta de doentes em bairros mais pobres e viram como um par de óculos podia fazer a diferença. “Lembro-me de uma senhora que botou os óculos e começou a chorar. Tinha oito graus de miopia. Tinha de limpar a casa de joelhos porque não via”, continua Arieta. Seguiram-se visitas a cidades mais pequenas, onde explicavam à população o que eram as doenças dos olhos e faziam o rastreio em escolas e postos de saúde. “Se fosse preciso operar, saíam com a operação marcada, quando até aqui tínhamos de passar por oito ou dez atendimentos até chegar ao hospital, uma barreira para pessoas com fracos recursos”.
O modelo alastrou a outros estados e no final dos anos 90 o Governo brasileiro investiu 150 milhões de reais para o tratamento de cataratas, recorda Arieta. “Saímos de 70 mil a 90 mil operações por ano para 450 mil cirurgias. Foi uma transformação muito grande e é um dos maiores orgulhos que temos, de ter desenvolvido o modelo.” Com o dinheiro do prémio, o plano é reforçar a capacidade de resposta. “É um começo, não só em termos financeiros mas pelo reconhecimento, que talvez nos ajude a encontrar mais apoio privado e público”. Os desafios mantêm-se. “Há menos desconhecimento mas a população envelheceu e o envelhecimento é o fator de risco de várias doenças do olho: glaucoma, doença da mácula (a área central da retina), diabetes”.
O furação do zika
Liana Ventura lembra como no início de tudo o que fazem hoje esteve o altruísmo do sogro, o oftalmologista Altino Ventura. “Era um dos médicos mais conceituados em Recife, operava com as duas mãos, o que era muito raro”, recorda a médica. Apesar da clínica cheia, todas as semanas reservava duas tardes para atender doentes pobres. “Ficavam debaixo de uma mangueira à espera da vaga, ainda hoje é uma das imagens que guardamos”.
Em 1986, a família começou a pensar numa forma de dar continuidade ao legado e criou a Fundação Altino Ventura, que se tornou um centro de referência para tratamentos oftalmológicos no nordeste do Brasil. Ao longo de três décadas, somam-se mais de 14 milhões de procedimentos oftalmológicos e 1,6 milhões de doentes tratados. Criaram clínicas satélite em cidades mais pequenas e unidades móveis, inclusive um autocarro com condições para operar cataratas – uma das principais causas de cegueira – e onde já foram feitas 30 mil cirurgias.
Em 2015, surge um novo embate que acabou por tornar-se uma das principais áreas de preocupação. “Tínhamos acabado de lançar um projeto para examinar crianças prematuras em maternidades e a minha filha observou crianças com microcefalia que apresentavam lesões oculares diferentes do normal”. Estavam perante o que viria a ser confirmado como um surto de microcefalia causado pela síndrome congénita do vírus da zika. Em Recife foram diagnosticadas 325 crianças com malformações, o que afetava também a visão, com risco de estrabismo e cegueira. “O zika foi um furação”, diz a médica, na vida das comunidades locais e na própria fundação. “Estabelecemos um programa de intervenção precoce multidisciplinar para reabilitação visual, auditiva, física e intelectual e criámos um grupo de empoderamento para as famílias que de repente ficaram acabadas, para ajudar as mães a lidar com convulsão e com todos os cuidados”.
Neste momento a seguir 156 crianças, querem aumentar a resposta para chegar a todas as crianças afetadas no Estado de Pernambuco, a região com mais casos de microcefalia, e criar uma nova unidade com fisioterapia aquática. Com o empurrão da Fundação Champalimaud, o plano é abrir no final de 2020 e esperam também vir a estabelecer uma parceria científica para estudar o neurodesenvolvimento das crianças afetadas pelo vírus. Já se tinham candidatado ao prémio uma vez há dez anos, mas chega agora em boa hora. “Já tinha quase desistido, mas uma pessoa amiga disse para tentar de novo e fomos atrás. É um sonho tornado realidade, o maior financiamento que tivemos até hoje. Capacitamos médicos que trabalham em toda a América Latina e em Angola, é um prémio que se vai multiplicar”, garante.
A força das parcerias
No Instituto Paulista de Estudos e Pesquisas em Oftalmologia (IPEPO), o objetivo foi desde o início criar parcerias para levar mais longe serviços oftalmológicos de qualidade, explica o presidente Rubens Belfort.
A ONG criada em São Paulo há 25 anos juntou-se a outras organizações e desenvolveu projetos na periferia paulista e em diferentes estados brasileiros, com um total de dois milhões de consultas e 100 mil cirurgias nos últimos cinco anos. Se a Amazónia é a área onde encontram mais necessidades, e desde os anos 90 são feitas expedições oftalmológicas na região, os problemas são semelhantes em todo o território e o gradiente que pesa é a pobreza, diz o médico. “O rico da Amazónia e o pobre da Amazónia são parecidos com o rico de São Paulo e o pobre de São Paulo. Um indivíduo a partir dos 40 anos precisa de óculos para ver ao perto, a partir dos 50 ou 60 tem cataratas, a partir dos 70 anos tem glaucoma e degeneração da retina. Na Amazónia há mais doenças infecciosas, são populações distintas mas com necessidades básicas por atender”.
No mediatismo em torno dos incêndios do último mês, Belfort vê alguma “histeria”, que atribui à distância e ao desconhecimento. “Claro que os fogos têm de ser evitados, controlados, tem de haver uma política ambiental, mas para vocês na Europa a sensação é que o Brasil está pegando fogo, quando os fogos são localizados e não há assim um impacto tão grande”, diz. “Os fogos são um problema importante na Amazónia, mas não podem ser exagerados na sua importância. Existem muitos outros problemas, a pobreza e a falta de uma educação adequada da população está também relacionada com os fogos: muitas vezes o indivíduo põe fogo no mato porque é a maneira de conseguir ter uma agricultura eficiente e depois perde o controlo e torna-se catastrófico”.
Rubens Belfort diz que, em primeiro lugar, são médicos a tratar de doenças dos olhos, mas acaba por estar tudo ligado. Também assim se constrói resiliência. “Já distribuímos mais de 40 mil pares de óculos na Amazónia fazendo com que as pessoas possam voltar a pescar, costurar, artesanar, ler. Temos o relato de uma assistente de enfermagem de 50 anos que nos disse ‘ai doutor, que bom voltar a enxergar de novo e ver onde estou pegando a veia para fazer injeção’. Ou de uma professora que pode voltar a ler a matéria de estudo das crianças.” O prémio vai ajudar a financiar novos projetos, direta e indiretamente. “Contribui para uma credibilidade maior das instituições”, conclui o médico.