Da banqueira dos sultões ao cozinheiro de Saddam. Os portugueses pelo mundo

Da banqueira dos sultões ao cozinheiro de Saddam. Os portugueses pelo mundo


Há portugueses em todos os pontos do globo, e em todos os pontos do globo há portugueses que se destacaram nas mais variadas áreas. As histórias de gente desta e doutras épocas, mais ou menos conhecidas, foram agora reunidas pelo jornalista Leonídio Paulo Ferreira em Encontros e Encontrões de Portugal no Mundo (ed.Chá das Cinco).…


África 

Maria Ramos

O nome desta portuguesa nascida em 1959 deixou há muito de ser discreto. Nas publicações da especialidade, Maria Ramos é muitas vezes retratada como uma das economistas mais poderosas do mundo. Começou a trabalhar no Barclays, em Joanesburgo, aos 18 anos e pouco tempo depois descobre que a bolsa de estudos atribuída internamente aos funcionários poderia ser apenas requisitada por homens. Numa África do Sul pós-apartheid, mostrou que nem raça nem género delimitariam o seu percurso e depois de se formar em Economia e concluir um mestrado na Universidade de Londres assume, em 1996, a chefia do departamento de Finanças do African National Congress, o partido de Mandela. Foi CEO do grupo Transnet e liderou até há pouco o banco Absa. Afastou-se em fevereiro deste ano e em maio participou na toma de posse de Cyril Ramaphosa, “reforçando a ideia de que pode vir a ser chamada pelo Presidente para algum cargo de protagonismo”, conjetura o autor.

Alpoim Calvão

Estratega, destemido, génio militar. Assim é descrito Alpoim Calvão, figura mítica da Marinha e o nome por detrás da chamada operação Mar Verde, uma “incursão militar portuguesa em 1970 na Guiné-Conacri, antiga colónia francesa que fornecia apoio militar aos guerrilheiros que, liderados por Amílcar Cabral, lutavam no território além da sua fronteira norte”. O militar, falecido em 2014, conseguiu com poucos meios “invadir a capital de outro país, resgatar todos os 26 portugueses cativos e ainda destruir vultoso material inimigo”, sintetiza o autor, contando ainda que, durante a operação, Calvão perdeu apenas três militares. Para o comandante Rodrigues Pereira, historiador naval, antigo diretor do Museu da Marinha e autor do livro Homens do Mar, Alpoim Calvão é um dos grandes marinheiros portugueses que, como estratego, estava “ao nível de Afonso de Albuquerque e com menos meios”.

América 

Pedro da Silva

Chamam-lhe o primeiro carteiro do Canadá e a sua história recua ao século XVII. Pedro da Silva, nascido em Lisboa, aparece pela primeira vez em registos do outro lado do Atlântico em 1673. Consta que transportaria cartas e mercadorias com tanto brio que “foi contratado em 1705 pelas autoridades coloniais francesas para entregar correio entre Montreal e a cidade do Quebeque”. Pedro da Silva, entregou também a correspondência ao governador e era conhecido entre os seus contemporâneos como “ Le Portugais”, morreu em 1717 e teve 14 filhos. Em 2003, dedicaram-lhe um selo para assinalar o passado da imigração, “muito prezado num país que se orgulha da sua multiculturalidade”. O autor ‘cruzou-se’ com este português em conversa com Ana Bela Martins da Cruz, correspondente do DN em Toronto, quando a jornalista “se preparava para publicar um artigo sobre Pedro da Silva (também por vezes referido como Dassylva)”.

Annie Silva Pais

A lisboeta Annie chamava-se afinal Ana, mas preferia que a tratassem por Annie. E foi assim que se apresentou em Cuba “quando lá chegou em 1962 a acompanhar o marido, o diplomata suíço Raymond Quendoz”, conta Leonídio Paulo Ferreira. Três anos depois a vida desta “bela mulher” na casa dos 30, filha de Fernando Pais Silva, chefe da PIDE, dá uma volta quase cinematográfica: abandona o marido e junta-se à revolução cubana. “Especula-se sobre uma paixão por Che Guevara (que será só platónica), relata-se um caso com o médico pessoal de Fidel e constata-se uma relação duradoura com José Abrantes, que foi ministro do Interior”. Perante o novo caminho da filha, um conservador e chocadíssimo Fernando Pais Silva pede demissão do cargo, que não é aceite por Salazar. A história aqui recuperada foi primeiramente publicada por José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz numa reportagem no Expresso, em 2002.

Ásia e Oceânia

António da Madalena

Os séculos aplicaram um filtro um pouco difuso à história, mas sabe-se que António da Madalena, um frade capuchinho nascido em Coimbra, foi o primeiro europeu a visitar o templo Angkor Wat, construído no século XII no Camboja. “Sabe-se que António da Madalena (ou Magdalena) viajou de Lisboa para Goa, capital do Império Português no Oriente, e daí para a Indochina. Chegou ao Camboja em 1583 e três anos depois, após ouvir relatos sobre a beleza de Angkor Wat, visitou finalmente o templo no norte do país”, escreve o autor. O fascínio do português perante a arquitetura e o desenvolvimento urbanístico do local foi descrito no ano seguinte por Diogo do Couto, que conta que o frade descreveu Angkor Wat como “a mais formosa, mais bem servida e mais limpa cidade que todas as do mundo”. António da Madalena foi assim o primeiro turista a visitar o templo, como referem os guias de viagem e os livros sobre história do Camboja.

António Sequeira

Treze anos depois da execução de Saddam Hussein, o cozinheiro açoriano António Sequeira, natural de São Jorge, quase não fala sobre a experiência de ter trabalhado para o antigo líder do Iraque, no seu palácio em Bagdade, até porque assinou um contrato de confidencialidade e ainda teme represálias. Mas quebrou o quase inexpugnável silêncio numa reportagem da TVI, onde contou que “Saddam gostava de sopas de galinha, de fígado e carne de carneiro e de cozido dos Açores” e que não era muito esquisito, comendo “tudo o que se lhe punha à frente”. De resto, disse o chefe, Saddam muitas vezes “não comia nada, pois quem luta para não morrer está sempre a mudar de sítio”. De volta à ilha, António Sequeira continuou a exercer a profissão de sempre: é atualmente cozinheiro na Casa do Espírito Santo na freguesia da Ribeira Seca, no concelho da Calheta

Europa

Pedro Julião Rebolo

O nome é praticamente desconhecido, mas quase todos os portugueses saberão que houve um Papa português no ido século XIII: João XXI. Foi o 187.º Papa, tendo ocupado a cadeira de S. Pedro durante uns escassos oito meses: morreu no palácio papal em Viterbo, na sequência de uma derrocada dentro do próprio palácio. Pedro Julião Rebolo nasceu em Lisboa, em 1215. Fez quase todo o seu percurso em Itália e chegou a dar aulas na Universidade de Siena, ele que “era médico, filósofo, teólogo e matemático”, escreve o autor, que entrevistou em 2017 Arturo Sosa, superior-geral dos Jesuítas e que demonstrou interesse por este homem que viveu há 800 anos e que ficou ainda conhecido por outro nome: Pedro Hispano. Em 1273, volta a Portugal para assumir o arcebispado de Braga, mas é de novo chamado para Roma e é nomeado cardeal de Frascati. A partir daí, vai alternando caminho entre Itália e Braga até que é eleito Papa em setembro de 1276.

Gracia Mendes Nasi 

Foi sob o título “A judia lisboeta banqueira de reis e sultões” que o autor inaugurou o capítulo dedicado a esta portuguesa. A história deu mesmo um romance – A Senhora, de Catherine Clémet, traduzido por cá em 1992 e construído a partir de uma investigação do historiador britânico Cecil Roth. Gracia Mendes Nasi nasceu em Lisboa em 1510 e recebeu o nome cristão de Beatrice de Luna – era filha de judeus castelhanos que aqui procuraram fugir à Inquisição e, como tantos outros, foram forçados à conversão. Casou com um tio, Francisco Mendes, um comerciante de especiarias rico, e enviuvou. Aos 25 anos era uma das mulheres mais ricas da Europa e soube gerir e aumentar o seu património – mas em tempos de perseguição religiosa nenhum sítio era seguro o suficiente. Viveu na Flandres, em Veneza e Ferrara até se instalar em Istambul. Pelo caminho, “usou o dinheiro que ganhava a emprestar a reis e príncipes, e até ao Papa e ao sultão turco, para financiar rotas de fuga de judeus perseguidos”.