Os anos passam e as memórias vão-se desvanecendo. Há 20 anos teve lugar um acontecimento raro e que comoveu o mundo: o referendo pela independência de Timor Leste.
Em 1974 Timor era uma colónia portuguesa, onde viviam umas escassas centenas de metropolitanos, militares incluídos, e umas centenas de milhar de habitantes do território.
Para além da capital Dili, um pequeno conjunto de vilas – porque mais não eram, tecia uma escassa trama urbana rodeada de uma quantidade de aldeias primitivas e sem ligação real ao mundo desenvolvido. Uma indústria incipiente, uma agricultura primitiva, condições de saúde, de serviços públicos, de infraestruturas, deploráveis, comunicações deficientes, eram as condições prevalecentes num território atrasado e distante das grandes correntes de mudança do mundo.
O furacão de mudanças trazido pela revolução portuguesa de abril de 74 acabou por chegar a Dili, muito por via de um pequeno grupo de estudantes timorenses em Lisboa e da perda de disciplina de uma tropa colonial cujos oficiais estavam excessivamente politizados.
Em pouco tempo tinha surgido um movimento de “libertação” de cariz marxista a quem o exército português cedeu as suas armas e equipamento de transporte, tal como fez em Angola ou em Moçambique. Em agosto de 1975 a Fretilin, o movimento marxista afilhado da tropa portuguesa, prevaleceu facilmente sobre os seus opositores democráticos que esmagaram em Dili e nos principais centros urbanos e fuzilaram ou prenderam.
Sem surpresa, a pequena classe média e funcional timorense viu-se nas mãos de um bando de marxistas armados e sem qualquer proteção da tropa portuguesa que retirou ignobilmente para a ilha de Ataúro em frente de Dili, de onde podiam ver as colunas de fumo resultantes dos combates.
Vencedora da breve mas violenta guerra civil, a Fretilin instalou o seu governo marxista em Dili e proclamou a independência.
Na vizinha Indonésia, o regime do general Suharto, ferozmente anticomunista e decidido a não permitir a emergência de um regime comunista no arquipélago, ou seja, dentro de portas, depois de obtido o beneplácito dos Estados Unidos e da Austrália decidiu intervir.
O regime de Suharto tinha tentado todos os meios para impedir a proclamação da independência pela Fretilin, incluindo ter pedido ao Governo português que não saísse do território, mas sem sucesso.
A 7 de dezembro de 1975, a Indonésia invadiu Timor Leste, capturou a capital Dili, instalou um regime de ocupação militar e tentou esmagar a Fretilin. O caos instalou-se na meia ilha e os quadros da Fretilin dispersaram-se pelo território, nas montanhas e densas florestas. Começava a resistência e a guerrilha.
Ao longo das décadas seguintes a situação não melhorou, mas Portugal também não desistiu de completar o processo de descolonização e obter uma solução permanente para Timor Leste. Finalmente, com a crise do sudoeste asiático de 1998 e a subsequente queda do Presidente Suharto, a que sucedeu um Presidente fraco e de transição, Habibie, foi aberta a porta para uma decisão da situação.
Portugal e a Indonésia entenderam-se, no quadro das Nações Unidas, para que fosse promovido um referendo pelo qual o povo timorense pudesse decidir se queria uma integração na Indonésia com uma margem ampla de autonomia, ou a Independência.
Portugal organizou de imediato e num muito curto espaço de tempo uma missão de observadores oficiais que veio a ser chefiada com galhardia e competência pelo Embaixador José Júlio Pereira Gomes. A missão, com 30 observadores ocupou todos os principais postos de Timor Leste, desde a ponta oriental em Los Palos, até Maliana a ocidente, com pequenos grupos de 3 e 4 pessoas.
Coube aos observadores estar presentes em todo o processo de recenseamento eleitoral, no processo de esclarecimento das populações e no dia 30 de agosto de 1999, observar o processo eleitoral.
Isto exigiu da parte dos observadores oficiais uma enorme capacidade de sacrifício e de entrega, disposição para abdicar de quaisquer confortos e astúcia e determinação a lidar com as autoridades indonésias.
Com o território entregue à soldadesca indonésia frustrada e furiosa ante a previsível vitória da independência e às milícias pró-indonésias, cuja violência era bem conhecida, a missão exigiu além do mais coragem física e mental para lidar com as mil e uma dificuldades do dia-a-dia.
Os resultados do referendo foram anunciados às 11 horas da manhã de Dili do dia 4 de setembro pelo Secretário Geral da ONU, Kofi Anan e proclamada a esmagadora vitória da opção pela independência, com uma participação eleitoral de 98% do eleitorado recenseado.
Timor Leste colapsou de imediato na maior violência e ao fim desse dia a cidade de Dili, e na verdade toda a ilha, estavam mergulhados no caos.
Os observadores portugueses tiveram de se refugiar, primeiro na sede da Missão e depois nas instalações da Missão especial da ONU para Timor Leste – Unamet. Foi lá que dormi no chão na noite de 4 para 5 de setembro, enquanto a cidade de Dili era sistematicamente esvaziada a tiro pela tropa indonésia e pelas milícias e os incêndios iluminavam a noite.
Dia 6 de setembro, atravessei uma Dili devastada a caminho do aeroporto e do último avião que saiu para Bali. Nas ruas só se viam milícias armadas de catana e cadáveres.
Não valerá a pena, porque a questão foi amplamente noticiada por todos os jornais do mundo, detalhar os acontecimentos desses dias, mas vale a pena aqui dizer que cheguei a Lisboa a 11 de setembro para saber que a Missão tinha sido considerada um fiasco, que tínhamos abandonado os Timorenses e que tínhamos fugido cobardemente.
Confesso que fiquei estupefacto. Ao longo de meses os membros da Missão portuguesa em Timor tinham desempenhado as suas missões com exemplar espírito de entrega e com coragem perante a adversidade. Levámos a nossa Missão até ao fim, assistimos ao referendo, ficámos até onde foi possível ficar sem correr um risco de vida inaceitável e a nossa presença pudesse ser de alguma utilidade. Como já escrevi noutro lado, fomos os únicos portugueses civis que consciente e deliberadamente correram risco de vida ao serviço do Estado Português desde o 25 de Abril.
Acho e sempre achei que um agradecimento público não ficaria mal a ninguém. Afinal, com tanta medalha que ao longo dos anos o Estado Português dispensou a tanta gente, alguma da qual está na prisão, não houve tempo nem disposição para um reconhecimento do mérito da Missão de Observadores oficiais portugueses ao referendo de Timor?
Agora que decorreram 20 anos sobre o referendo, talvez seja tempo de se fazer história.
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade