John-Antoine Nau. Escrever sob a luz de um país perdido

John-Antoine Nau. Escrever sob a luz de um país perdido


A breve novela Os Três Amores de Benigno Reyes marca a estreia entre nós do autor que ganhou a primeira edição do prémio Goncourt e que, desde então, persiste no seu exemplar modo de “cortejar o esquecimento”.


Nau começa por nos mostrar como se soltam as amarras, se impulsiona um bote em águas estranhas, criando logo um ambiente que nos transporta e arranca ao que quer que nos tem manhosamente entretidos. “Nessa manhã, pareceu a Benigno Reyes que acordava não somente do seu longo sono sem sonhos, mas também de um torpor de quinze anos que o tornara indiferente à estranheza dos seres e das coisas. (…) Muito perto de Benigno, um pequeno cais de pedras fendidas esboroava-se entre duas casas baixas de uma deterioração sinistra (…) E o mais lúgubre era que essas ruínas tinham habitantes – deploráveis famílias de cor sépia, adoentadas e esfarrapadas, cujas crianças ulcerosas e raquíticas dormitavam à frente das choupanas, acocoradas na poeira e no lixo, ou lançando pedras a cães inclassificáveis.”

É difícil ir além do primeiro parágrafo da romançada que hoje se nos atravessa no caminho. A primeira frase de tantos desses livros já soa como um tiro ansioso, sem brusquidão nenhuma, e o pó nem chega a elevar-se, desenhando-se a frio uma triste largada que logo nos deixa exaustos. Ainda se fosse um fio esgarçado, esticando-se a custo, um cabelito irregular (um pentelho!), mas essas impetuosidades da prosa que nos vem com a sua banca de truques técnicos só nos dão cabo da paciência.

Quanto a John-Antoine Nau, dele só nos resta hoje um magro mito das letras francesas, o que é bom para o leitor que gosta de alimentar suposições fantasistas. Ler à lupa aquelas frases que ficam burilando numa medida curta um sobressalto da consciência como se isso fosse sinal de um biografismo arremedado. Faz um pouco mais de um século que morreu, tinha 57 anos, e nascido na Califórnia em 1860, chamava-se na verdade Eugène Léon Édouard Torquet. Raramente se fala nele ou na sua obra, e, invariavelmente, as poucas menções que ainda o cutucam no esquecimento devem-se a ter sido o vencedor do prémio Goncourt no seu primeiro ano, 1903. Depois de ter publicado em algumas revistas, tendo-se estreado como poeta com um livro de versos em edição de autor, o romance que lhe valeu o prémio – Force Ennemie – aparecera um ano antes nas páginas de La Revue Blanche. Hoje é tido como um percursor do chamado boom latinoamericano, esse género de narrativas musculadas que arrastam a literatura para fora do sacrário, esforçando a imaginação e movendo perseguição a figuras e noções pasmosas. Se o prémio veio a adquirir um prestígio imenso, na altura nem impulsionou a venda da edição. Isto, não obstante, entre os escritores convocados a realizar o desejo de Edmond de Goncourt, estivessem sumidades como J.K Huysmans, Octave Mirbeau ou J.-H. Rosny Aîné.

Um dos membros do júri, Lucien Descaves, que ficou de tal modo intrigado com Nau que fez questão de conhecê-lo, vindo a tornar-se seu amigo, num prefácio a uma reedição do romance, já após a morte do autor, reconhecia que o desejo de Goncourt não voltou a ser respeitado de forma tão escrupulosa. O propósito deste era ajudar a distinguir uma obra que esporeasse a imaginação, fazendo os possíveis por afirmar um jovem talento literário cheio de promessa.

Com seis votos a favor e quatro contra, Nau ficou para sempre ligado ao prémio, mas de cada vez que isso é lembrado o seu sono nem chega a ser perturbado. Tornou-se um desses autores que, redescobertos por uns poucos a cada geração, apenas serve para frustrar a sua vontade de o darem a conhecer, ficando uma vez mais claro que o sucesso não lhe convém. No prefácio que escreveu para edição póstuma de Force Ennemie, Descaves nota que o desconcerto que esta obra provoca no público não se prende tanto com a amargura da sua ironia nem com as suas desoladoras caricaturas, mas antes com a perfeição de cada linha. “É muito díficil desculpar-se a um romancista um tão extremo cuidado com o seu estilo”, conclui. E Nau é justamente um desses escritores que abusam da prosa, estimam-na de tal modo que o público fica desconfiado. “Porra”, dirá ele, “mas esta merda é poesia!” E, assim, bate a porta com força, como que injuriado.

Depois de ter recebido a notícia de que ganhara o prémio, Nau, que por aqueles dias vivia em Saint Tropez, nem veio a Paris para receber o graveto, pedindo ao irmão que lhe fizesse o favor de lho fazer chegar. Na altura do anúncio, o seu amigo Félix Féneon, autor do maravilhoso Notícias em Três Linhas (Col. Avesso, 2014), honrou-o no jornal com esta breve descrição: “Um rapaz com um cabelo que lhe assenta como uma crina, uma barba emaranhada, nariz romano, olhos como pedaços de carvão, uma máscara de fumo sobre a cara, alguém que esconde a sua timidez enrolando constantemente cigarros que extingue depois de três baforadas…”

A par da existência de perpétuo viajante, sempre foi muito esquivo a tudo o que dissesse respeito a frequentar os salões, andar nessa sonsa campanha que ocupa os literatos, fazendo da escrita quase uma desculpa. O que mais lhe interessava era a eterna evasão, e a escrita parecia um registo de bordo, um relato íntimo desses lugares onde viveu, os portos entre os quais espalhou alguns fantasmas. Alcunhado “o anjo dos trópicos” pelo amigo Jean Royère, a nota editorial da primeira obra que nos chega de Nau – Os Três Amores de Benigno Reyes (ed. VS, 2019) – lembra o que disse certa vez, numa carta a um amigo: “Na verdade, não há nada tão humilhante, tão moldado, tão conquilhesco, como ter um domicílio fixo.”

De acordo com Descaves, o Goncourt encontrou em Nau um formidável exemplo, alguém que nunca quis saber da sua promoção como escritor, mas que continuou a escrever os seus versos, algumas narrativas que deixou espalhadas por revistas, e sempre com a mesma fixação no relevo da frase, que ia limando numa “longa e nunca saciada obsessão”. E a brevíssima novela com que somos apresentados à sua obra, tão perfeita e crua, ainda que imensamente comovente, é toda ela uma lição. Em cada página o autor parece repetir a ideia de que é preciso, acima de tudo, cuidar de cada frase, da sua dolente fluência, trôpega, embalando-nos aqui para, ali, nos aferroar. Há que engravidar cada pausa que o leitor sinta necessidade de tomar, e o grande desafio que o escritor a si mesmo lança passa por questionar quanto tempo se pode dar por bem gasto ficando-se só por uma página. Depois de a termos lido, ainda resta contemplar o acerto de cada linha, a monumentalidade do seu apuro, aprendido, é claro, com Flaubert. São páginas onde uma cena, onde pouco acontece, se estende e se põe a escutar-nos.

No seu desterro chileno, Benigno Reyes começa a sentir na própria pele o cheiro do seu fim. Oriundo do Puerto de Orotava, dá por si a levar uma existência pacata mas insignificante, com os confortos possíveis, e sem margem para grandes fantasias ou distracções. A única coisa que rompe a monotonia implacável dos dias são os transatlânticos que vão aportando ao longo da costa do Pacífico, levando aos nativos uma amostra das riquezas de um mundo que rejubila com o seu refinado estilo de vida. Além disso, a bordo há ainda outros prazeres desses que contam estórias à carne.

O protagonista é levado a repassar a sua vida, dando-se conta de que não viveu grande coisa, e da paixão quase só ouviu falar. A narrativa é bastante circular, como um balanço que se faz no final da vida, e este é um livro prometido mais à releitura, com o seu trauma benigno, esse estupor de sonho, à medida que os anos passam e vamos deitando olhares do mais alto ao mais fundo de nós. Experimenta-se aqui um desespero de ordem quase religiosa, uma tal soturnidade que não magoa mais do que nos embala. Mas a prosa é qualquer coisa que se toma, se sorve: cada gole parece secar-nos mais a boca. São horas longas com tabaco ou sem, copos de água inúteis, virando as páginas “ensopado em fúrias lentas”.

Eis um parágrafo: “Já não frequentava as pessoas que podiam, num dia que calhasse, sem maldade, por simples ociosidade, por penúria de ideias para exprimir, contar-lhe acerca de Pepa tais anedotas que o lento e quase inconsciente trabalho de duas gerações de narradores havia enfeitado de preciosas indecências. Ora, Benigno, como muito boas almas, de boas aptidões, depressa cansadas de passar em revista os seus próprios pensamentos, judiciosos, certamente, mas mais notáveis pela qualidade do que pela quantidade, tinha horror à solidão.”

E com esta novela, além de um autor, está descoberto também um novo tradutor, e bastante jovem, chamado Diogo Paiva. Se nesta sua estreia é evidente que se encheu do extremo zelo dos neófitos, e se o texto nos surge pejado de notas de pé de página sendo que algumas, de tão desnecessárias, se tornam maçadoras, por outro lado revela um cuidado apaixonado e raro numa profissão que hoje é exercida largamente por máquinas singer, que traduzem a metro, e de forma mercenária. Até sabem alguma coisa da poda, se se põem a discutir extravagantes minúcias, mas as soluções, na sua obviedade, traem o fulgor do texto original como quem passasse a limpo uma tão manchada lição. Neste caso, estão lá todos os sinais desse desgraçado enlevo das tilintantes formas que se aprende na escola simbolista, como alguém que entornasse o copo de chuva dos poemas de Verlaine numa prosa de um exotismo calcinado, com o seu “estilo nervoso, inventivo e feroz”.

Esta é uma ficção que carrega na acidez sem dar cabo do prazer de deslumbrar-se. É de uma tristeza fabulosa, que tratará bem quem já não está disponível para a literatura que se impôs como rotina, como mais um torpe passatempo. “Comprazeu-se em longos devaneios fantasiosos de que em breve deixou de ter qualquer vergonha, entreviu sóis que falavam, faziam caretas selvagens debitando predicções horríveis e sibilinas, cavalgou abutres dourados que o levavam  para os céus cegantes, flavos, mas também vermelhos do sangue… de que hecatombes?, semidesapareceu em oceanos de luz demasiado forte, demasiado gloriosamente estupefaciente.

Nas tardes ardentes em que o acre sopro do porto o sufocava, o envenenava de um hálito de peste, sonhou com as frescuras umbrosas das necrópoles dos altos planaltos, banhados por um ar tão violentamente azul que mesmo o crepúsculo das abóbadas subterrâneas se tingia de um safira-escuro, viu-se ridícula e beatificamente agachado numa grande jarra funerária, como as felizardas múmias de Cajamarca e dee Huaraz que há trinta séculos sorriem…”