Contrariando a ideia insistentemente propagada pelos comentadores mediáticos de serviço ao sistema, durante este ano, algumas das mais importantes greves que ocorreram com grande impacto público têm-se verificado no setor privado.
Tal ideia – a de que só no setor público e na administração pública – os trabalhadores, já de si privilegiados, podem dar-se ao luxo de fazer greves para aumentarem ainda mais os privilégios de que já dispõem, mostra não só um rancor acumulado contra esses trabalhadores, mas, fundamentalmente, contra o facto de haver ainda serviços que não foram entregues à voragem do capital para fazer enriquecer ainda mais alguns dos seus detentores.
Num artigo recente, publicado num outro diário, fazia-se eco do crescente fosso que, no nosso país, ao longo destas últimas décadas, se estabeleceu entre o rendimento que cabe ao trabalho e ao capital, em benefício crescente e escandaloso deste último.
De acordo com tal artigo, não sendo um fenómeno especificamente português, no âmbito da União Europeia, foi, contudo, no nosso país que tal fosso mais se agravou.
Não admira pois que a sensação de injustiça e as carências reais por ela provocada se vão sentindo cada vez mais e refletindo-se na atitude que, individual ou coletivamente, os portugueses assumem ante elas.
Uns procuram na emigração uma resposta pessoal para o futuro de miséria que se lhes oferece – e são muitos –, outros predispõem-se agora a, coletivamente, enfrentar os poderes políticos e fáticos que aqueles dominam e que são, afinal, os verdadeiros responsáveis pela situação de empobrecimento geral dos rendimentos do trabalho.
A solução política e social que foi encontrada desde as últimas eleições e que tem permitido estabilizar o governo, se outra vantagem não trouxe – e estou convencido que trouxe muitas outras –, teve pelo menos a de destapar a esperança escamoteada aos portugueses na possibilidade de um futuro coletivo melhor.
Tal esperança havia sido violentamente defraudada pela Troika e por todos os que dela se quiseram aproveitar.
Por isso, é natural que surjam hoje, com mais acuidade e mais força, movimentações coletivas de setores de trabalhadores – do setor público, ou do privado – que antes não viam grandes hipóteses em lutas que pudessem melhorar a sua situação.
O futuro apresentava-se bloqueado e tais lutas, mesmo que desejadas por muitos, pareciam condenadas a esbarrar no muro das alternativas impossíveis.
Hoje, fruto da chamada geringonça, há, uma vez mais, a certeza da existência de alternativas viáveis e de que vale a pena lutar por elas.
Tal tomada de consciência constitui já uma poderosa força de mudança e é por isso que os comentadores de serviço ao sistema se empenham tanto em procurar esvanecê-la.
Mais do que os pequenos ganhos que algumas dessas lutas possam trazer, o que os inquieta é a ideia de que os trabalhadores podem, de facto, aspirar, de novo, a uma sociedade mais justa e solidária.
Só que, se tal esperança for uma vez mais usurpada, as repostas que, fora e dentro, se estão desenhando, parecem privilegiar formas políticas e associativas diferentes, menos democráticas e mais radicais, sobretudo, nos atos de protesto imediatos.
Por isso, é importante não defraudar tal esperança e, mesmo quando no momento não é possível enquadrar todos os anseios que ela gera, é fundamental plasmá-la num projeto de sociedade que esteja claramente ao alcance das possibilidades do país: é necessário projetar um futuro de justiça consistente, progressivamente mensurável e visível.
Os ventos de fora e as brisas, até agora, de dentro são ameaçadores e antecipam grande instabilidade.
Só um projeto coletivo abraçado por uma maioria de portugueses pode ajudar a evitar o defraudar da esperança na democracia e contrariar o aventureirismo dos falsos profetas.
Escreve à terça-feira