Bastou o anúncio dos protagonistas para que logo o próximo filme de Martin Scorsese se tornasse num dos seus mais aguardados dos últimos anos. Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci juntos para protagonizar a história do veterano da II Guerra feito assassino a soldo Frank Sheeran (De Niro), a partir do livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt. Além da reunião dos colossos da representação – De Niro, eternizado nos papéis que Scorsese lhe entregou tanto em Taxi Driver como em Raging Bull, não trabalhava com o realizador há 25 anos e com Al Pacino contracenou já por várias vezes; já com este último, Scorsese nunca havia trabalhado – há a produção de 160 milhões de dólares, que vem fazer deste filme um dos mais alguma vez feitos pelo realizador ainda de Godfellas, Gangues de Nova Iorque e de, mais recentemente, Silêncio, a sua última longa-metragem.
Mas o interesse em torno deste novo filme vai ainda para lá, e bem para lá, de tudo isso: The Irishman marcará a primeira colaboração de Scorsese com a Netflix, que já com o premiadíssimo Roma, de Alfonso Cuarón começara, com um resultado impressionante, a dar sinais de que estava pronta para navegar também ela, no streaming, essas águas, até aqui, reservadas a festivais (antes de passar pela Netflix e de tomar os Óscares, Roma estreara no Festival de Cinema de Veneza, que lhe deu o Leão de Ouro) e salas de cinema. E precisamente daqui veio o problema, que é mais do que isso: é o dilema com que a Netflix se debaterá certamente de forma crescente daqui por diante.
No final da semana passada, o New York Times noticiou que o diretor do departamento de filmes do gigante do streaming, Ted Sarandos, estaria a discutir com a cadeia de cinemas da AMC, nos Estados Unidos, e a Cineplex, no Canadá, as condições em que seria feita a estreia de The Irishman em sala. E que algumas das grandes cadeias, como a Regal, não estão interessadas em exibi-lo. Notícias pouco ou nada surpreendentes e uma realidade que reproduz aquilo que vem já acontecendo com outras produções que a Netfliz disponibiliza no simultaneamente com a estreia comercial nas salas.
Com Roma, esse retrato a preto e branco da vida num bairro da Cidade do México em que o realizador mexicano resgata as memórias da sua infância e a história da sua mãe, as contas eram mais simples. Foi um projeto quase pessoal, poderá dizer-se, apesar da aclamação mediática de que acabou por gozar, produzido com 15 milhões de dólares. Um valor que, de baixo, passa a elevado quando se olha para os pouco mais de 5 milhões que faturou nas bilheteiras entre as pouquíssimas salas de cinema em que foi exibido. E, ainda assim, chegou à Netflix apenas ao fim de 21 dias de exibição em sala.
Mas e The Irishman? Segundo noticiou o mesmo jornal, nas negociações para a distribuição pela via tradicional do filme de 160 milhões de Scorsese, as cadeias de cinema estão a exigir à Netflix um embargo. Ou seja, o exclusivo da distribuição por um mínimo de 12 semanas, antes que seja disponibilizado em streaming. Condições que a Netflix não está disposta a aceitar, por ir contra os interesses dos seus já mais de 150 milhões de assinantes que, ao subscreverem o serviço de streaming, ficarão divididos entre duas opções: pagar um bilhete de cinema para assistir a um filme com produção do serviço que pagam mensalmente; ou esperar três meses para o poderem ver.
A ausência do filme de umas quantas salas poderia até nem ser um problema de maior – foi assim com Roma, aliás – não estivesse, segundo o New York Times, Scorsese, o próprio, a pressionar a empresa para um “lançamento nos cinemas robusto a nível nacional” deste seu novo filme.
A Netflix entrou como produtora do filme depois de a Paramount Pictures ter recuado perante a dimensão do orçamento. Mas, entre a empresa de streaming e o realizador há um conflito: a primeira, tem como objetivo chegar aos 50 milhões de visualizações nos primeiros quatro dias em que o filme estiver disponível no seu serviço; o segundo quer ver The Irishman em todas as salas de cinema. O melhor de dois mundos.
E a verdade é que a intransigência da Netflix na forma como habitualmente negoceia a distribuição no circuito tradicional tem vindo a levar já realizadores como Christopher Nolan, por exemplo, que se recusa a trabalhar com a Netflix, a mostrar-se aberto a colaborar com a Amazon, uma plataforma concorrente da Netflix com uma política bem mais permissiva no que diz respeito a questões de distribuição.
Com a guerra montada, agora é ver como termina. Porque, depois de The Irishman, dificilmente tudo ficará na mesma neste braço de ferro que está a moldar a forma como os espectadores se relacionam com os filmes.