Joacine Katar Moreira. “Os eleitores vão decidir se desejam uma mulher negra no Parlamento”

Joacine Katar Moreira. “Os eleitores vão decidir se desejam uma mulher negra no Parlamento”


Cabeça-de-lista do Livre por Lisboa considera que “esta eleição é histórica”.


O destino de Joacine Katar Moreira cruzou-se com o de Portugal quando, aos 8 anos, a avó, uma enfermeira da Guiné-Bissau, decidiu mandá-la estudar para um colégio interno de freiras na zona de Mafra. Chegada a hora de escolher uma licenciatura, agarrou-se à História pela vontade de um dia poder ajudar a reescrever a do continente onde nasceu. E só há um ano terminaram os seus estudos, quando defendeu a sua tese de doutoramento em Estudos Africanos, com o título A cultura di matchundadi (masculinidade/virilidade) na Guiné-Bissau: Género, Violências e Instabilidade Política. Por essa altura, já a sua terra tinha passado a ser esta. Já tinha sido membro da Assembleia do Livre e candidata do partido por Lisboa, em 2015. O ano passado foi também o ano em que fundou o INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal, que luta contra a invisibilização e o silenciamento das mulheres negras em Portugal. Agora, é o seu rosto que ocupa o cartaz do Livre para as legislativas no Marquês de Pombal. Eleita entre os apoiantes do partido há cinco anos fundado por Rui Tavares como a cabeça de lista para as legislativas de outubro, Joacine Katar Moreira faz, agora ela, História, ao tornar-se na primeira mulher negra que um partido político português apresenta a umas legislativas. A propósito disso, aceitou o convite do i para uma conversa. Ironicamente, naquele que em Lisboa é ainda conhecido como o Bairro das Colónias, apesar de, com o 25 de Abril, a praça que lhe deu o nome ter sido rebatizada como Praça das Novas Nações. Segundo Joacine Katar Moreira, o grande problema do racismo em Portugal reside exatamente aqui: na “negação da violência histórica colonial”. Questões que “são sucessivamente varridas para debaixo do tapete, porque a identidade nacional está muito enraizada nessa época”.

Como é que precisámos de chegar a 2019 para termos uma mulher negra como cabeça de lista de um partido numas eleições legislativas?

É preciso realçar sucessivamente que a democracia portuguesa é algo absolutamente recente. Antes disto, houve uma época colonial que efetivamente enquadrou alguns africanos na administração, mas isto especialmente em Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, e por aí fora. Aliás, o meu avô, o meu bisavô e por aí fora eram homens que faziam parte da administração colonial na Guiné. O que era hábito era usar-se os cabo-verdianos, que eram os mais partidarizados, os que tinham habilitações mais ou menos altas, e eram usados pelo colonialismo enquanto elementos da administração colonial em África. Enviavam cabo-verdianos para a Guiné-Bissau, para Angola, para Moçambique e assim sucessivamente. Os meus familiares fazem parte desta elite administrativa colonial.

Que eram de Cabo Verde e daí a Joacine ter nascido na Guiné.

Eram de Cabo Verde. Isto para dizer que não é que nunca tivesse havido pessoas de origem africana no quadro político e administrativo, mas obviamente que raramente em áreas de visibilidade. Indo para o ano de 2019, existem obviamente quadros de origem africana na Administração Pública, mas, geralmente, e mais uma vez, em áreas menos visíveis. O que está em causa não é necessariamente se há ou se não há; é onde é que eles estão. Haver há, mas estão sucessivamente em áreas onde não têm hipótese de ser reconhecidos. É o caso da atual ministra.

A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem.

É um caso de alguém que já há imensos anos era um alto quadro, respeitadíssima, valorizada, mas que só recentemente teve esta tal visibilidade mediática, uma vez nomeada. 

Mas nos próprios partidos há poucos negros…

Bom, aí entra-se numa outra área: os que há, ou as que há ,nunca chegam no âmbito de uma eleição, mas no âmbito de uma nomeação. Ir a uma eleição num ambiente que não está habituado a ter nem homens negros nem mulheres negras em áreas de visibilidade é, obviamente, uma autêntica revolução. Vou ser publicamente escrutinada e são os eleitores que vão decidir se desejam ou se não desejam uma mulher negra na Assembleia da República. É necessário assumirmos que parte da responsabilidade de não haver mais pessoas negras em cargos de visibilidade pública tem a ver com a nossa classe política e igualmente com a organização interna dos partidos políticos.

Sente que só no Livre é que isto seria possível?

O meu partido é o único em que não existe uma direção partidária que escolhe as pessoas que ficam como número um, dois, três nas listas. Há eleições e são os apoiantes e simpatizantes que elegem as pessoas que ficarão como número um, número dois, três… Se isto existisse nos outros partidos, se calhar haveria mais hipóteses de haver pessoas, homens e mulheres, negras nas elites. Só o CDS é que tem um deputado de origem africana no parlamento, há largos anos. E é irónico que isso não aconteça nos partidos à esquerda, embora há muito tempo atrás tenham tido um… Toda a gente recorda como, em 1994, a Helena Lopes da Silva [médica cirurgiã nascida em Cabo Verde] foi cabeça de lista para as europeias pelo PSR, um dos partidos que deram origem ao Bloco de Esquerda. Obviamente que foi fundamental, mas quantos anos se passaram entre 1994 e 2019? Quantos anos têm que passar para que isto se repita?

Mas porque é que acha que só temos um deputado de origem africana no Parlamento? 

Há imensas pessoas negras que fazem parte do PS, do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista e tenho a certeza de que há muito tempo estão  à espera de uma oportunidade. Porquê isto? Na minha ótica, há um olhar que é o de se assumir os militantes negros e negras como as bases. E este foi um dos objetivos da minha candidatura: iniciar exatamente uma efetiva mudança neste ciclo. A Assembleia da República é quase homogénea. Antes tinha muito mais homens, hoje, com as quotas e a Lei da Paridade, com as conquistas dos movimentos feministas, estamos a ter um parlamento que caminha para mais igualdade e para uma maior rotatividade entre homens e mulheres. Mas no que diz respeito às pertenças étnico-raciais a mudança vai sendo vetada sucessivamente, tanto à esquerda como à direita. 

Como vê a ideia da criação de quotas étnico-raciais?

Fui alguém que entrou na universidade fazendo exames nacionais para as várias disciplinas. Fiz a minha licenciatura com imensas dificuldades, não houve um ano em que eu não pusesse a hipótese de desistir, porque não tinha dinheiro. Era a mais velha de 11 irmãos e não achava que iria ser eu a começar a exigir aos meus pais que me pagassem a universidade. Eles tinham mais era que se esforçar para meter água em casa, alimentar os meus irmãos e por aí fora. Portanto, trabalhei durante a minha licenciatura quase inteira. E, no último ano, consegui uma bolsa ligeiramente maior, era uma bolsa de 200 e tal euros ao mês e  como estava numa residência universitária e recebia esses 200 e tal euros, a minha média disparou para 17 a 18. Antes disso, trabalhava, às vezes oito horas ao dia, outras só da parte da manhã, porque tinha aulas à tarde e a seguir compensava trabalhando no fim de semana das 9h às 23h.

Isso em que tipo de trabalhos?

Trabalhei em lojas e como empregada de quartos… Também trabalhei com empresas de marketing. Andava, de hipermercado em hipermercado a dizer: “minha senhora, boa tarde, já conhece a nova linha de produtos da Garnier?”. As minhas colegas da universidade iam ter comigo na minha hora do almoço, que era a única que tinha, para preparar os trabalhos da universidade. 

Não chegou a dizer qual era a sua média nesses anos em que teve que conjugar os estudos com o trabalho. 

Era de 14, 15… o que era já uma média alta para uma licenciatura de História, porque raramente te davam mais do que um 16. Nesse último ano tive a noção objetiva de que poderia ter feito a licenciatura com uma média altíssima, se tivesse tipo a hipótese de ficar horas na biblioteca a estudar e a fazer as coisas, sem estar com a ansiedade em alta com dinheiros e propinas. Falo nisto porque normalmente sou usada para [veicular] a ideia do “olha, se se esforçarem… aquela não tinha recursos financeiros mas estudou e agora tem uma licenciatura, um mestrado, um doutoramento”. Nada disto. Isto é a falácia da meritocracia, que arrasa com todas as hipóteses de ascensão social.

A Joacine não se cansa de repetir no seu discurso a ideia de que há uma série de falácias. Esta é uma delas. 

É uma delas: se alguém está desempregado, é porque não tem as competências necessárias; se uma mulher recebe menos do que um homem, é porque a mulher não tem as competências necessárias; se um indivíduo é pobre, é porque não se esforçou o suficiente; se uma pessoa de origem africana não se encontra em áreas de visibilidade, de reconhecimento, é porque a sua cultura não permite; se as mulheres africanas e afrodescendentes são maioritariamente empregadas de limpeza, empregadas domésticas e cozinheiras, é porque não têm ambição suficiente, etc. É isto a falácia da meritocracia, que só existe para manter o status quo e para garantir a renovação das elites intelectuais, industriais, políticas e financeiras. Estas não têm necessidade nenhuma de se esforçar imensamente, estão relaxadas, porque sabem desde que nasceram que têm muito mais hipóteses de estar em áreas de visibilidade. O objetivo das quotas é reduzir essas assimetrias, porque a maior parte delas não são responsabilidade dos indivíduos, são responsabilidade de um sistema que se vai alimentando das desigualdades, das assimetrias e das hierarquias existentes.

Portanto, defende um sistema de quotas.

O ideal seria não haver necessidade de quotas para ninguém. Nem para mulheres, nem para pessoas que moram nas ilhas, o ideal era que automaticamente as sociedades e as instituições se organizassem de maneira a que houvesse  igualdade de oportunidades entre toda a gente. Só que não é assim. É por isso que existem quotas. Sou pela existência de quotas enquanto medida de combate às desigualdades estruturais. O Estado tem a responsabilidade de lutar contra as desigualdades. Se este for um instrumento eficaz, ótimo. As minhas amigas afrobrasileiras que hoje em dia são professoras universitárias e investigadoras, algumas delas reconhecidas internacionalmente, são-no porque o Estado brasileiro resolveu combater as assimetrias estruturais que existiam. Se não houvesse quotas, quantas pessoas negras teriam acesso às universidades no Brasil?

Podemos aproveitar a comparação com o Brasil para recuperar a polémica da inclusão nos próximos Censos de um novo campo destinado a determinar a origem étnico-racial dos cidadãos. No Brasil, por exemplo, há dados muito concretos a esse respeito.

À sua maneira, o Estado, as escolas, os hospitais, as instituições fazem uma recolha de dados étnico-raciais. O que não há é uma recolha oficial, pública, com estatísticas, de forma a que qualquer pessoa possa ter acesso aos números. Toda a gente sabe que durante anos houve escolas que tinham turmas específicas para minorias étnicas. Como é que uma escola que não faz ideia da origem étnica dos seus alunos, que não tem noção nenhuma de se o aluno é de origem, A, B, C ou D, faz turmas especificamente para esses alunos? Portanto, isso existe, mas existe para questões de organização institucional, de uma maneira que não nos serve para combater as desigualdades. 

As escolas marginalizam esses alunos?

Por exemplo, quais é que são as ofertas técnico-profissionais do Ministério da Educação para os alunos que optam por esse ensino em vez do ensino secundário? O meu irmão estudou em Alverca e fez Informática; as minhas irmãs que moravam no Vale da Amoreira, um bairro social do outro lado do rio, não tinham [nas escolas daquela área] cursos para técnico de informática, técnico de análises clínicas, não tinham. Tinham ofertas como barman, e optaram todas por essa área porque as outras [disponíveis] eram ainda menos interessantes. 

Como é que o Ministério da Educação dá umas ofertas a uns e não dá a outros? 

O Ministério da Educação sabe exatamente qual é a composição étnico-racial e estrutura as suas ofertas com base nessa composição étnico-racial. É a isto que damos o nome de racismo institucional. E, sim, isto está no programa do nosso partido para as legislativas e somos a favor da recolha de dados étnico-raciais nos Censos. É importante que saibamos porque é que alguns têm mais dificuldade no acesso às universidades, porque é que nalgumas comunidades há maior abandono escolar do que noutras, porque é que algumas comunidades estão a enfrentar um aumento do HIV no ano de 2019 em vez de estarem a reduzir. Precisamos igualmente de verificar porque é que alguns são sucessivamente condenados com agravantes e outros sem, porque é que determinados grupos estão nas cadeias e outros não. Isto não é unicamente do interesse dos ativistas ou das minorias étnico-raciais. É do interesse do Estado e o Estado não pode implementar políticas públicas, investir milhões do dinheiro dos contribuintes, sem elementos estatísticos que sustentem a realidade.  

Numa entrevista que deu aquando da fundação do INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal, ao qual preside, defendeu que não são as minorias que têm de se integrar, mas o Estado que tem de querer conhecê-las para as poder incluir…

Porque isso é estar a colocar o ónus nos indivíduos: o indivíduo é que tem de se integrar, o indivíduo é que precisa de dar o passo, de fazer o esforço. Ei, um momento: há uma organização social desigual que origina isto. Portanto, se desejarmos que efetivamente haja uma maior inclusão social, olhe, nomeadamente com quotas para entrada na universidade, mais apoios sociais – mas apoios sociais à séria. Tive apoios sociais na universidade, mas eram apoios de 100 euros ao mês, tinha que trabalhar, e ainda me era dada a ideia de que estava a usufruir de algo. E esta é a situação de milhares de indivíduos, independentemente das suas pertenças étnico-raciais. Aliás, qualquer migrante antes de estar documentado tem acesso imediato ao número de contribuinte. O Estado não o recusa a ninguém, oferece-o às pessoas, mas a seguir dá-lhes o nome de “ilegais”. mesmo recolhendo os seus impostos, ao mesmo tempo que lhes dificulta o acesso à documentação com exigências das quais a maioria das pessoas não faz ideia. Há pessoas às quais é exigido um contrato de trabalho para terem acesso a um visto…

Mas que, para poderem ter o visto de trabalho, precisam de um contrato.

E vice-versa. Durante anos e anos, isto levou a que houvesse empresas e fábricas que usavam esta enorme falha do Estado para usufruírem de trabalho quase escravo. Tive pessoas da minha família a trabalhar em fábricas das 6 horas da manhã às 19 horas e a receber, na altura, 375 euros por mês. Porquê? Porque era uma fábrica que dava trabalho aos imigrantes que não tinham documentação, mas, até que tivessem esse contrato de trabalho, eram mantidos dois meses, três, quatro, seis meses neste sistema. Quantos restaurantes fizeram fortunas empregando mulheres negras imigrantes que não tinham documentação? Elas entram numa área onde ninguém as vê, trabalham arduamente durante horas, saem e ninguém as vê. E elas não têm opção. Precisam do dinheiro para alimentar os filhos, para pagar as suas casas. O Estado alega estar a combater as desigualdades e a pobreza, mas nunca olhou para os imigrantes como cidadãos. Olhou sempre para os imigrantes como contribuintes. 

É sempre perigosa a ideia de criar divisões, mas acha que, entre as comunidades imigrantes, há um dever particular do Estado português, que vem de um dever de reparação histórica, em relação aos imigrantes das ex-colónias?

Em Portugal e entre a elite portuguesa há uma resistência enorme no que diz respeito a reconhecer a História colonial de uma forma não romantizada. Ninguém deseja eliminar o enorme feito científico, tecnológico, de desenvolvimento da Geografia, da Botânica, da Zoologia, do conhecimento do universo. Houve isto. Houve uma ida de área para outras áreas, para outros povos, outros continentes, que enriqueceu a humanidade com informações que, até então, as pessoas não tinham. Só que precisamos de ser sérias e sérios nisto. Não se pode unicamente celebrar o colonialismo, que não tem aliás muito por onde celebrar. Foi a época de maior desumanização da História, na qual um continente inteiro foi feito objeto, na qual houve tráfico de pessoas escravizadas ao nível de milhões – 12 milhões, segundo o que ficou registado oficialmente, mas toda a gente sabe que os registos oficiais eram só registos oficias, porque os comerciantes não entregavam toda a sua informação comercial ao Estado. Mas, oficialmente, é isto. E, a nós, ninguém nos ensinou a escrever escravatura com “E” maiúsculo, apesar de nos terem ensinado a escrever Holocausto com “H” maiúsculo, e esse é mais um dos elementos da negação, do evitar falar, do omitir.

É esse o principal problema do racismo em Portugal?

É: a negação da violência histórica colonial. Porquê? Porque isso vai perpetuar a ideia de que não houve resistência. Ninguém nunca nos contou a História da resistência em África, e houve imensa resistência. Tanta resistência que só no início do século XX é que Portugal conseguiu, ou ia conseguindo, instalar-se verdadeiramente. E como? Por causa da Conferência de Berlim [1884-1885], em que se começou a ver que, se não se ocupassem os territórios, as outras potências os ocupariam. Isto é que deu origem às que ficaram conhecidas como campanhas de pacificação, que foram, nada mais, nada menos, do que massacres e uso de força contra as populações locais. Entre as campanhas de pacificação e as lutas de libertação não se passaram sequer 40 anos. Portanto, houve uma resistência enorme à implantação colonial que nos é omitida permanentemente. Se abrirmos os manuais de História, e vimos, nos manuais, por exemplo, em 2016 e agora em 2018…

Refere-se a polémicas como aquela em que recentemente um manual escolar enumerava os escravos entre ouro e marfim, como um “produto”.

“Ouro, marfim, escravos”, vírgula, “produtos de enorme valor comercial”. Desculpem, não podemos usar as designações dos séculos XV, XVI, XVII. Temos de explicar aos alunos que os escravos não eram produtos, que eram pessoas. Mas isto exigiria uma reavaliação e um reconhecer de uma série de questões que são sucessivamente varridas para debaixo do tapete, porque a identidade nacional está muito enraizada nessa época. Há um contar da História a partir dos enormes feitos, omitindo tudo aquilo que ainda hoje em dia tem impacto nas sociedades, porque foi isso que colocou os africanos numa arena de subalternação histórica, que tem efeitos até hoje. 

Disse já que quis estudar História para reescrever a História de África. Foi essa a História que aprendeu na escola? Fez a escolaridade completa em Portugal?

Vim para Portugal tinha acabado de fazer oito anos. Veio antes o meu pai, a seguir a minha madrasta com o meu irmão e depois vim eu, no início dos anos 90. Mas não vim viver com o meu pai, fui viver para um colégio interno de irmãs espanholas na área de Mafra. Foi uma decisão da minha avó, que era enfermeira, uma mulher muito séria e que foi a pessoa que me educou, porque quando nasci a minha mãe tinha 19 anos e o meu pai 18. E a minha avó disse: “Não, vocês vão à vossa vida, eu fico com a minha neta, que vai ser educada por mim”. Como eu era uma menina “muito inteligente”, como ela dizia – “eras uma menina muito inteligente, antes de entrares para a escola já sabias ler” – quis enviar-me para aqui, mas para um sítio onde pudesse estudar. Porque na Guiné, ora havia aulas, ora não havia…

Eram os anos 90 ainda. 

A instabilidade era enorme. Então ela disse: “Vais, mas vais unicamente para estudar e, depois de estudares, regressas”. Só que os estudos nunca mais acabavam [risos]. Há um ano defendi a minha tese de doutoramento.

Em Estudos Africanos.

Ainda pus a hipótese de voltar, mas não. Esta é que é a minha terra. É onde estou desde os 8 anos, não conheço outra. Até há uns anos, ainda achava que era só ir lá, à Guiné, a África, e que seria uma emoção estar na minha casa, na minha terra. Mas foi… “ah”. Não me adaptei muito facilmente. É aqui. 

Também pelo papel que acredita que pode ter em Portugal, nesta fase, tanto com o trabalho que tem feito à frente do INMUNE como no Livre?

Sim. Antes, era uma pessoa muito animada, muito divertida com os amigos, mas, ao mesmo tempo, extremamente tímida. Evitava falar em ambientes onde a minha voz fosse muito audível, a não ser em grupos de amigos ou familiares, onde as pessoas me conheciam. Isto para evitar gaguejar, fechar os olhos, fazer uma cara assim ou assado e ter o universo a perguntar “o que é isto?”. As pessoas que não gaguejam só gaguejam quando estão a mentir, com uma insegurança enorme, numa situação de tensão enorme, então acham que as pessoas que gaguejam estão sempre em tensão ou com alguma insegurança. Nós não aguentaríamos se estivéssemos em tensão o tempo todo [risos]. Mas o meu maior medo era esse: que as pessoas desvalorizassem as minhas capacidades, que não me dessem oportunidade nenhuma, achando que eu era uma pessoa extremamente insegura. Então evitava. 

E como é que isso mudou?

Quando a minha filha nasceu, há três anos, eu disse: “Não, não posso, nunca mais, entrar num restaurante e desejar uma Coca-Cola mas dizer que desejo água porque a Coca-Cola não me está a sair. Nunca mais”. Porque de certeza que ela se vai aperceber e o que desejo é que a minha filha tenha o maior orgulho em mim, com as minhas imperfeições. Foi uma alavanca enorme para algo que eu já tinha iniciado devagar, devagarinho. Mas a partir de certa altura pensei: “Já não aguento, não vai dar mais”. Acho que a minha hora é esta. Antes também eu acreditava na falácia da meritocracia: se eu me esforçar, se eu trabalhar, se eu fizer, se eu for… e autorresponsabilizava-me por todas as coisas que não me aconteciam. “Se os outros estão ali e eu não estou, é porque tenho que me esforçar mais ainda.” Isto é um espírito ótimo, é um espírito bom, mas é absolutamente desumano, porque esquecemo-nos que estamos em ambientes de desigualdade em que, para uns, é preciso dez vezes o esforço de outros. 

Como é que foi desse ponto de vista o seu percurso até aqui? No seu livro Memórias da Plantação, recentemente editado em Portugal, Grada Kilomba fala sobe como só quando se mudou para Berlim, onde acabou por fazer a sua carreira como investigadora e artista, sentiu que a sua voz e o seu trabalho eram tão valorizados como os de outros. Também a Joacine foi tendo essa luta?

Na escola, as expectativas foram sempre baixas. E se, até para a melhor aluna, as expectativas eram baixas, imagine para as alunas e os alunos que têm dificuldades. Esse ambiente em que as expectativas não eram altas em relação a mim é algo que tive sempre em mim, desde menina. Ninguém imaginou que aquela menina estaria hoje num cartaz no Marquês de Pombal [o cartaz do Livre para as legislativas]. Se estou a iniciar esta caminhada, qualquer uma, qualquer pessoa, pode iniciá-la. Tudo isto nos pertence. As sociedades, as instituições, o Estado pertencem aos cidadãos, os partidos pertencem aos eleitores, portanto necessitamos de recuperar uma política verdadeiramente democrática na qual as pessoas é que têm o poder. O meu objetivo é terminar com a ideia de a política é para indivíduos que sejam oriundos de famílias financeiramente proeminentes. Não se vê por aí uma mulher que seja absolutamente igual a todos os outros cidadãos, uma mulher sem um emprego estável que é uma mãe em situação de monoparentalidade com uma filha de 2 anos a fazer política. 

Que será o caso da Joacine, se for eleita.

A política exige que as mulheres que entram nela geralmente não tenham filhos – as que têm filhos têm capacidade e estabilidade financeira para terem alguém que tome conta deles. Isto não é o futuro. O futuro passa por uma Assembleia da República com pessoas iguais aos seus cidadãos, porque são essas as pessoas que vão legislar sobre a existência quotidiana. Como é que tu irás ter uma opinião baseada em elementos estatísticos para achar que um ordenado mínimo de 640 euros é ótimo? É porque nunca viveste com esse ordenado mínimo. Se alguma vez na tua existência tivesses vivido com esse ordenado mínimo, saberias imediatamente que isto é o limiar da sobrevivência. Por isso é que o meu partido defende um ordenado mínimo de 900 euros. Porque só a partir daí as pessoas têm oxigénio. Houve um aumento exponencial do custo de vida e o ordenado mínimo não acompanhou minimamente isto. Um Estado que mantém os cidadãos no limiar da sobrevivência não é um Estado que esteja a combater as desigualdades. Em Espanha, o ordenado mínimo aumentou, de uma única vez, de 700 para 900 euros. Aqui, estamos há anos a fazer reajustes de 20 ou 25 euros numa época em que na Área Metropolitana de Lisboa ninguém encontra casas abaixo de 400 euros. 

Mesmo uma casa com uma renda de 400 euros tornou-se numa raridade.

Sim. Como é que o ordenado mínimo nacional pode estar normalizado e aceite nos 600 e tal euros se ninguém encontra uma casa a 400 euros ao mês? Isto é algo que precisa de mudar urgentemente. Há pessoas separadas que estão a viver na mesma casa porque é a única forma de subsistirem. Pessoas que todos os meses, durante toda a sua existência, pagaram impostos ao Estado. E se estamos numa época em que todos os partidos políticos se descobriram ambientalistas, ecologistas, animalistas, etc., com um ordenado mínimo de 600 euros quais são as hipóteses de as famílias começarem a ter comportamentos ecológicos e sustentáveis?

Como vê esta ascensão do PAN?

Enquanto candidata não tenho nada a dizer sobre um partido que está a fazer o seu caminho. Enquanto cidadã, faz-me uma confusão enorme a ideia de eleger um partido cuja ideologia não conheço. Vejo [no PAN] uma abstenção em relação a questões que interessam.

Tanto nas legislativas como nas europeias, o Livre não tem conseguido atingir o objetivo de eleger. Por outro lado, os pequenos partidos estão todos a ter alguma dificuldade, como se viu nas europeias, com exceção para o PAN. Qual é a expectativa que tem em relação a estas legislativas?

Eu e o meu partido estamos absolutamente confiantes de que iremos eleger uma deputada nestas eleições legislativas. Se repetirmos em Lisboa os resultados que obtivemos nas eleições europeias, há altas hipóteses de eleger uma pessoa, embora estejamos conscientes de que estas não são umas eleições quaisquer. Nem para nós, partido, nem em termos nacionais. Consideramos esta uma eleição histórica por haver uma pessoa negra, uma mulher negra, com as minhas imensas interceções, como número 1 de um partido político às eleições legislativas. No entanto, num ambiente internacional de ascensão de partidos de extrema-direita, de ressurgimento de ideologias que achávamos que estavam derrotadas, Portugal tem sido olhado como um oásis, como um dos países que ainda têm uma sociedade na qual os valores do 25 de Abril ainda estão muito enraizados. Também nós desejamos contribuir para esse espírito do 25 de Abril elegendo uma mulher negra para a Assembleia da República. 

O Livre defendeu esta solução política de esquerda ainda antes dos outros partidos. A ideia do Livre seria fazer parte dela?

O Livre, embora tenha apenas cinco anos de existência, é um partido composto por indivíduos muito competentes, mas especialmente com uma ótica de estar sucessivamente à frente do expectável e do habitual. Nas últimas eleições legislativas, a nossa campanha e o nosso enfoque foi a convergência à esquerda, o que nessa altura era absolutamente revolucionário, porque nem era hábito nem ninguém achava que houvesse hipótese de existir uma convergência. Fomos nós que começámos a dizer que era importantíssimo que houvesse uma convergência à esquerda para meter fim ao ambiente de recessão económica que estava a empurrar milhares de portugueses para emigração e para o desemprego. 

E essa convergência correspondeu às expectativas ou esperava mais de um Governo apoiado pela esquerda?

Um dos elementos que necessitamos de reconhecer é que esta solução governativa à esquerda impediu a direita de afundar o país, mas, ao mesmo tempo, estava-se à espera de muito mais. Em várias áreas, como no aumento do ordenado mínimo ou na legislação da nacionalidade. Achámos que iriam ser estes partidos de esquerda a alterar finalmente a legislação para que quem nasça em Portugal tenha automaticamente o direito à nacionalidade portuguesa e que isso não seja algo dependente da situação da mãe ou do pai, se está irregular, se não está, se descontou, se não descontou. E também no que diz respeito à legislação laboral, onde não houve avanços significativos. Embora tenha sido importante esta convergência, ela mostrou-se claramente insuficiente. 

Pensa que esta aliança à esquerda devia continuar?

Sim, acho que quando partidos políticos convergem estão a dar um sinal à sociedade de que estão a pôr os interesses das pessoas acima das especificidades ideológicas partidárias. Independentemente do resultado das eleições, se houver convergência significa que houve uma negociação. É óbvio que é necessário que haja convergência. A questão é se essa negociação é uma negociação que serve interesses estratégicos político-partidários ou uma negociação que serve a sociedade.