Bruno Aquino já bebeu as melhores cervejas do mundo – mas também as mais estranhas. E não desdenha uma Sagres ou uma Super Bock, até porque abomina o conceito do beer snob. A sua paixão por esta bebida começou há mais de 20 anos, num café da Bélgica, quando pediu uma cerveja e, em vez de um copo ou de uma garrafa, lhe trouxeram um menu com 150 variedades diferentes. Desde então, despertou para um mundo cuja existência desconhecia por completo. Fez um curso de análise sensorial de cerveja e abriu um fórum de discussão para encontrar outras pessoas que partilhassem o seu interesse. Tornou-se um especialista na matéria – segundo alguns, uma espécie de ‘enciclopédia ambulante’ – e reuniu os conhecimentos adquiridos em Uma Viagem pelo Mundo da Cerveja Artesanal Portuguesa (ed. Casa das Letras), que escreveu em coautoria com o seu amigo Domingos Quaresma.
Marcamos encontro na Cerveteca, onde uma placa anuncia: ‘Não vendemos cerveja normal’. A conversa começa, como não podia deixar de ser, à volta de um copo de cerveja.
Creio que, até aqui, nunca tinha provado uma cerveja artesanal. O que tenho andado a perder?
Um mundo de aromas, um mundo de sabores, experiências – é isso que a cerveja artesanal traz. Podemos fazer um paralelo com o mundo do vinho. Tal como temos o vinho de pacote – que tem o seu preço e a sua finalidade -, também temos a cerveja dita industrial, que é fantástica para beber na praia ou na esplanada. Mas quando queremos olhar para as coisas de uma maneira diferente e pensar num bom restaurante, se calhar não podemos pensar na Super Bock ou na Sagres. Todos têm o seu mercado. O que não era compreensível era irmos a um café, como acontecia até há cinco ou seis anos, e dizerem-nos: ‘Só tenho Super Bock’ ou ‘Só tenho Sagres’. Ou termos uma prateleira no hipermercado com 30 metros só com duas ou três marcas de cerveja. E depois íamos aos vinhos e tínhamos cem ou mais.
Falou em cerveja industrial. É sobretudo o método de produção que torna a cerveja artesanal distinta?
Esta cerveja que estamos a beber é uma Dois Corvos, da zona de Marvila. Já tem uma fábrica extremamente moderna com equipamentos automatizados, computorizados…
É artesanal mas não é produzida só com cestas de vime e cântaros de barro, portanto…
Não. Há muita cientificidade por detrás de todo o processo. Quando falamos de cerveja artesanal estamos a falar de uma escolha mais criteriosa dos ingredientes – dos lúpulos, dos maltes… As receitas têm uma cara, conhecemos o cervejeiro que está por trás daquele processo, nalguns casos é ele que faz as vendas e as cobranças. Depois há uma aposta muito grande na localidade, na zona de implantação. Começa-se por um pequeno desenvolvimento regional, com produtos locais – no Algarve temos cervejas com alfarroba, com figo piteira, se formos à zona de Viseu, se calhar encontramos cervejas feitas com recurso a mel ou com cereja -, e depois a propagação faz-se pela qualidade do produto. Há proximidade, há independência – e é a isso que chamamos cerveja artesanal, apesar de eu também não gostar muito da expressão.
Disse que há cinco ou seis anos íamos ao supermercado e havia três ou quatro marcas de cerveja. Entretanto houve um boom da cerveja artesanal. Essa explosão corre paralelamente a uma certa moda?
Dizemos sempre que já não é uma moda, porque achamos que quando um produto tem os aromas, os sabores que tem este tipo de cervejas, já não vai voltar atrás. Ao contrário do que acontece com o gin, que não é um produto que tenha estado muito ligado à nossa cultura, em Portugal bebe-se cerveja desde o século XVII, XVIII, XIX. O problema é que estávamos muito confinados a um determinado estilo. E em 2011 – isto não é uma invenção portuguesa, porque já vem da década de 70 nos EUA e no Reino Unido e propagou-se um pouco por toda a Europa continental – houve uma marca que começou a fazer cerveja com características diferentes, a tentar vendê-la a nível nacional, e conseguiu, e isso abriu caminho a muitos produtores. Hoje temos mais de cem produtores de cerveja artesanal e ficou provado que havia interesse e havia mercado. O mercado tem tido um crescimento exponencial, já vemos muitas dessas marcas em hipermercados, em lojas de souvenirs, tem havido cada vez um número mais significativo de festivais ligados à cerveja, onde estão vinte marcas de cerveja. É um conceito que está associado a uma faixa etária mais nova – 20, 30 anos – e essas pessoas não vão voltar a pensar que só existe um tipo de marca, como acontecia até há uns anos.
Como foi que o Bruno começou a interessar-se pela cerveja artesanal?
Foi em 1998, na Bélgica, quando tinha 22 anos. Pedi uma cerveja e trouxeram-me um menu. Comecei a folhear, tinha à vontade 150 entradas. Por acaso escolhi uma muito boa, a Trappiste Rochefort 10. É uma cerveja fantástica, feita por uma ordem de monges cistercienses. Isso abriu-me um leque de sensações e a partir daí comecei a tentar encontrar outras. Em Portugal não havia nada na altura, então criei um fórum num site.
Para discutir?
Para começar a ver se encontrava pessoas com o mesmo tipo de interesses. Demorou um bocadinho. Criei esse site em 2001, só em 2011 é que as coisas começaram verdadeiramente a arrancar e em 2014 é que alavancou por completo. Mas foi na Bélgica que tudo começou. Em Portugal ainda hoje vamos a um snack-bar, a um café, e pedimos uma imperial. Mas uma imperial de quê? De que marca? De que estilo? Na maior parte dos outros produtos não aceitamos que isso aconteça. Mas na cerveja pode ser qualquer coisa, é indiferenciado.
Se calhar porque a cerveja é sempre boa…
Eu acho que é porque não há outra opção. Se formos a um bom restaurante e nos disserem ‘Só temos um vinho’, causa estranheza. ‘Vinho tinto ou branco? De que casta? De que região?’. Com a cerveja nós pensamos o mesmo: em tentar colocar a cerveja ao nível do que o vinho já atingiu, um produto de destaque, com muitos prémios internacionais, felizmente. A nossa cerveja também já começa a ganhar prémios internacionais.
A tradição mediterrânica é mais vinícola, enquanto a cerveja era mais conotada com os povos do Norte, com os chamados ‘bárbaros’. Isso dá azo a que exista algum preconceito em relação à cerveja?
Existe e é isso que queremos mudar. Nós temos vinhas fantásticas, temperaturas ideais para produção de vinho de elevadíssima qualidade. Agora imagine que temos um jogo de futebol entre uma equipa portuguesa e um clube grande europeu. Vêm os hooligans todos e começam a incendiar carros e a partir tudo. Estão a beber cerveja ou vinho? Vêm com latas de cerveja na mão, não vêm com garrafas de vinho. Isso tem a ver também com serem países do centro e norte da Europa, com características protestantes, e portanto não têm essa ligação à questão da liturgia do vinho. A cultura cervejeira desenvolveu-se muito na Alemanha, na Polónia, na Escandinávia, e Espanha Portugal tiveram a sua cultura de vinho e por isso é difícil a introdução destas novidades cervejeiras, ainda que Itália seja um país de vanguarda na produção de cerveja artesanal. Arrancaram muito rapidamente e estão a atingir níveis fascinantes.
Por não haver essa cultura da cerveja cometem-se por cá muitos erros?
Temos aquela ideia de beber a cerveja ‘estupidamente gelada’, conceito que o marketing tem passado, que é perfeitamente erróneo… a única coisa que se pode dizer do ‘estupidamente gelado’ é que é estúpido. Não tem mais nada que se lhe possa pegar. Desafio-o a fazer a seguinte experiência: peça um copo de água com gelo, ponha o dedo lá dentro durante dez segundos e tire o dedo. O que vai acontecer?
Deixo de o sentir.
Deixou de sentir. O mesmo se passa com as nossas papilas gustativas, com o céu da boca, com a língua: deixamos de sentir o produto. Se ele já tem pouco sabor e aroma, gelado ainda menos.
Existe alguma rivalidade entre o meio da cerveja e o do vinho?
Acho que não, porque a cerveja está num posicionamento muito próprio. Mesmo assim temos ali garrafas de cerveja que custam 50 euros e que foram maturada em barricas de Calvados ou de Porto durante cinco anos. Já há fatores de tecnicidade, cuidado na produção, ingredientes extremamente requintados, e que justificam a cerveja ser vista de uma maneira diferente. Não gostamos muito de entrar na discussão do vinho – cerveja, mas há agora um livro interessante do Afonso Cruz em que ele discute o que terá surgido primeiro, a cerveja ou o vinho, e até se na última ceia Jesus terá bebido cerveja ou vinho. E é discutível. Obviamente que para o conceito religioso o vinho faz muito sentido devido às semelhanças com o sangue. Mas se pensarmos na região onde tudo aconteceu e onde surgiu a civilização, a Mesopotâmia – não era uma zona de vinha, era uma zona de cereais. Teria muito mais lógica beber-se cerveja. Aliás, os judeus na altura histórica de Jesus Cristo bebiam bebidas parecidas com cerveja, fermentadas a partir de cereais, e não vinho. O vinho foi trazido pelos romanos e era bebido por uma classe mais alta que na altura tinha colonizado a região. Não é por eu beber muito cerveja e ser uma pessoa que fala sobre cerveja – mas há dez mil anos talvez tenha mais lógica que os primeiros povos que se sedentarizaram bebessem cerveja. É um discussão interessante para termos num espaço como este, à roda de uma cervejas. Para além disso, não é muito importante. A cerveja tem o seu lugar, o vinho tem o seu lugar, o que nós gostaríamos sinceramente era que por exemplo os nossos chefes olhassem para a cerveja de uma maneira diferente, como olham para o vinho. Não me parece lícito ir a um restaurante onde eu sei que o chefe vai diariamente ao mercado comprar os seus produtos, que são criteriosamente selecionados, e depois só tem uma marca de cerveja. E que cerveja é essa? A que encontramos no supermercado.
Falou na Mesopotâmia e nos primórdios da produção de cerveja. Os egípcios também a bebiam. Essa cerveja seria parecida com a nossa ou nem por isso?
Diferente. A cerveja é uma bebida que resulta de um cereal fermentado. Colocando a questão em termos quase mitológicos, como apareceu a cerveja? Pensa-se que poderá ter aparecido quando alguém estava a produzir pão, deixou o pão no exterior e choveu sobre o pão. Existem leveduras no ar – na Bélgica, por exemplo, ainda hoje se produz a chamada cerveja de fermentação espontânea, com as leveduras e bactérias que existem no ar – que terão descido sobre esse pão, que terá começado a fermentar. A fermentação provoca uma coisa que é muito interessante e que os animais, não só o ser humano, muitas vezes procuram, que é o álcool. As pessoas experimentaram, terão ficado muito alegres, gostaram do produto, e a partir daí replicaram esse processo. Os egípcios terão também feito, mas já de forma um bocadinho mais avançada. Provavelmente seriam cervejas um bocadinho mais turvas, com alguma acidez, cervejas de fermentação espontânea, feitas com leveduras selvagens ou alguma bactéria que pudesse cair sobre essa cerveja, e outro tipo de aromas e de sabores. A base era sempre água, cereais, alguma levedura, que eles não conheciam mas estava lá. O que era diferente é o principal aroma de cerveja que temos atualmente, que vingou a partir do século XVI, XVII, o lúpulo, que é o quarto ingrediente importante da cerveja. Não só dá aquele sabor característico como é um excelente bactericida. É por isso que foi sendo selecionado, ao contrário de outros produtos que se utilizavam para aromatizar a cerveja – rosmaninho, losna, mirto, segurelha, coisas infindáveis para dar aroma e sabor, e se calhar para abafar aquela acidez que existiria na altura. A cerveja como hoje existe foi já muito o trabalho de investigações nos séculos XVIII e XIX.
O que é exatamente o lúpulo?
O lúpulo é uma planta trepadeira. Curiosamente é da família da canábis. Como a canábis, a cerveja também provoca alguma euforia, não tem efeitos psicotrópicos, mas tem outro efeito que a canábis muitas vezes tem, é diurética. E também calmante. Se for ver a composição de alguns medicamentos para dormir, além de valeriana, muitas vezes também têm lúpulo. É uma trepadeira que desde há três ou quatro séculos é o aromatizante preferencial da cerveja.
Há lúpulos diferentes?
Nos últimos anos tem havido muita investigação na área do lúpulo. Faz-se cruzamentos e manipulações genéticas. Hoje há lúpulos que nos dão aromas a papaia, a manga… Uns têm características mais minerais, outros mais terrosas, mais florais, mais frutadas, mais herbáceas. Isso, conjugado com o malte – que dá as características torradas, de chocolate, de café -, permite uma infinidade de combinações e cruzamentos. E ainda temos aquilo a que chamamos o quinto ingrediente, que não é necessário.
Que é, no fundo, o que se quiser.
É o que se quiser. Voltando a fazer a comparação com o vinho – e eu bebo muito vinho, atenção -, o vinho não precisa de ter ingredientes.
E a cerveja já tem de ter uma receita, é isso?
Pode-se fazer cerveja com todo o tipo de aromatizantes. Na Idade Média havia o gruit, uma mistura de especiarias e de ervas aromáticas, um negócio que muitas vezes estava controlado pela Igreja. O lúpulo foi depois sendo preferido pela sua vantagem em termos bactericidas e de conservação, e este amargor que é tão característico, e que é atributo do lúpulo, passou a ser identificado com a cerveja. Mas basicamente tem os quatro ingredientes, e depois pode ter grãos de café, marshemallows, donuts, chocolate negro, bacon…
Existem cervejas com bacon?!
Daqui a um bocadinho vamos fazer uma visita àquelas prateleiras. Existem cervejas com quase tudo. Chilis, maple syrup, abóbora – e cada um desses elementos dá características muito interessantes. Estou a ver ali uma cerveja de pêssego, que tem um cheiro a pêssego terrível…
Terrível de bom?
De bom, claro [risos]. Na minha opinião… há pessoas que podem achar enjoativo.
Já me falou de especiarias, de ervas aromáticas, de frutos. Às tantas parece que estamos a falar de chás e não de cerveja…
Nalguns processos de fabricação de cerveja existem de facto infusões de fruta. Numa zona próxima de Bruxelas existe uma flora muito específica, e eles deixam os tanques abertos e aquelas leveduras descem sobre o mosto e vão fermentá-lo. Por causa da acidez, para tornar aquilo mais aceitável ao palato adicionava-se cerejas ou ginjas. Isso é uma infusão. Tal como o lúpulo em si, quando se mete na fervura, está-se a fazer uma infusão do lúpulo. Há um processo agora que é muito falado, o dry hop, em que se pode utilizar um saco de musselina com o lúpulo lá dentro e arrastá-lo no líquido para passar todos os óleos essenciais. Estamos a falar de uma espécie de infusão. Em última instância sim, estamos num mundo comparável ao do chá, apesar de haver um processo de fermentação, como no vinho.
Também produz cerveja ou a sua especialidade é mesmo bebê-la?
Uma vez tentei fazer sidra em casa, mas fui tão competente que fiquei com um bom vinagre de mesa, portanto desisti rapidamente. Passe a expressão, cada macaco no seu galho. Tirei um curso de análise sensorial de cerveja na Bélgica, especializei-me nessa área, como sommelier, como juiz de avaliação de cerveja, e para mim é muito mais fácil beber do que fazer cerveja, que é um processo muito complicado. Parece muito glamoroso mas não é: 80% do tempo é limpeza, sanitização, é um trabalho árduo. Portanto deixo isso às pessoas que o fazem bem.
Não é uma atividade para curiosos, portanto…
Não é muito difícil e pode-se perfeitamente fazer na nossa cozinha. Basicamente temos água quente, deitamos lá para dentro o cereal para retirar os açúcares, depois separamos o cereal da água quente, ficamos com uma água doce e com algum aroma e sabor – estou a simplificar muito, claro. Depois metemos o lúpulo na fervura para trazer amargor e aroma à cerveja. Ficamos com esse líquido, que é composto pela água, os açúcares do malte e o lúpulo, e deitamos a levedura lá para dentro – que vai consumir os açúcares, e transforma esses açúcares noutra coisa, principalmente em álcool e dióxido de carbono. Consegue-se fazer isso num dia e depois deixa-se a fermentar num cantinho duas a três semanas. O que é difícil depois de fazermos a primeira cerveja é ganhar qualidade e consistência. Isso sim, é um bocadinho complicado. Exige treino, experimentação, leituras.
Esse curso que fez, as leituras, todo o conhecimento que tem adquirido ao longo do tempo, permitem-lhe retirar mais prazer de cada copo de cerveja que bebe?
Acho que sim. Não temos todos de ter uma formação muito grande para apreciarmos como deve ser uma cerveja. A melhor cerveja que bebemos é a que nos está a saber melhor. O que isso nos dá é dicas sobre o que devemos procurar numa cerveja para a desconstruir – perceber o que é contributo de A, o que é contributo de B, se tem algum defeito. Em última instância o que é para mim gratificante é beber uma cerveja e perceber que está bem feita. Não somos ortodoxos – tanto eu como o meu amigo que escreveu o livro comigo, o Domingos Quaresma, podemos beber uma Sagres ou uma Super Bock e obter o máximo de satisfação. Mas também posso, como está muito na moda – por acaso não tenho aquelas barbas tratadas… -, pôr o copo ao nariz e estar a olhar para a cerveja durante dois ou três minutos, a tentar perceber donde vêm os aromas e os sabores, também me gratifica conseguir desconstruir uma cerveja e perceber o que está dentro do copo. Mas não mais do que isso.
O produto reflete de algum modo o perfil do produtor?
Há situações em que isso acontece. O produtor de uma das cervejas que têm aqui à venda esteve esta semana em Lisboa, é um produtor pequeno de Avintes. Não diria que ele é excêntrico, mas diria que é bastante expressivo. E as cervejas que ele faz refletem isso, são muito expressivas também. A que ficou aqui em primeiro lugar é uma cerveja com 12% de álcool, extremamente marcada, com muitos torrados, mas muito harmonizada, portanto é algo que posso identificar com ele.
E fazem provas cegas precisamente para não haver influências exteriores, não é?
O mercado não é assim tão grande quanto isso e eu conheço 90 e tal por cento dos produtores que estão no livro e a maior parte deles, ou todos, são meus amigos, portanto não queria que ficasse a mínima suspeita na cabeça das pessoas de que as provas eram influenciadas por eu almoçar muitas vezes com eles ou conhecê-los há muitos anos. Ao fazermos as provas cegas retiramos todos os tipos de rótulos: é um copo e o que está lá dentro tem qualidade ou não.
Nesses meios organizam-se grandes sessões de copofonia?
Quem começa a beber cerveja artesanal procura sobretudo a qualidade. O preço destes 25 cl é 3 euros e meio. Se formos ao café ao lado na happy hour com esses três euros e meio conseguimos beber quatro cervejas. Certamente que há pessoas que bebem cerveja artesanal em quantidade – mas é a qualidade que nos interessa. Eu organizo um encontro mensal para quem queira aparecer, na primeira quarta-feira de cada mês encontramo-nos e podemos estar a falar sobre fissão nuclear, sobre lúpulo, sobre se Jesus Cristo bebeu cerveja ou vinho – é uma tertúlia. Ao longo da noite se calhar bebemos três, quatro, cinco cervejas artesanais.
A cerveja artesanal não é para ser bebida em quantidades industriais…
Diria que não, até porque estas cervejas já têm tanto aroma e sabor que depois as coisas começam a sobrepor-se. Posso comer uma tábua com dois ou três queijos intensos, mas se insistir muito o meu palato vai ficar cansado, muito oprimido. Se depois desta cerveja eu experimentar uma imperial stout – intensa, escura, com o álcool à volta dos 10% – o meu palato vai ficar cansado.
Costuma fazer peregrinações a bares ou cervejarias específicas, a lugares míticos?
Quando começamos a entrar por este mundo começamos a ganhar alguns vícios. O de fazer peregrinações a ‘Meca’ é um deles…
A Meca será a Bélgica?
Sim. Existem quatro grandes escolas de cerveja, como mencionamos no livro. A escola norte-americana, mais recente, a inglesa, a belga e a alemã. Todas elas oferecem coisas muito diferentes. Gosto muito da Bélgica, em primeiro lugar porque estudei lá, é um país pequeno e próximo, fácil de ir, tem uma grande tradição. Uma visita a estes mosteiros trapistas é uma experiência fantástica. Há muita gente que faz isso, vai a cervejeiras específicas, a festivais específicos. Felizmente tenho uma mulher que também gosta de viajar e também gosta de cerveja.
Há muitos anos fiz uma viagem pela Europa central, numa excursão, e houve uma noite em que fui beber umas cervejas com o motorista do autocarro. Isto deve ter-se passado na Alemanha. Pedimos uma cerveja ao balcão de um bar e o empregado deixou os copos do lado de lá do balcão, verteu um pouco do conteúdo da garrafa, deixou repousar alguns minutos, e só depois encheu o copo e no-lo entregou. À segunda cerveja repetiu o processo. Mas à terceira, o motorista do autocarro tirou-lhe a garrafa da mão e serviu ele mesmo porque já estava a perder a paciência para tanta demora. Para dizer a verdade, a cerveja não me soube diferente. A maneira como se serve uma cerveja é importante ou às vezes também se criam certos rituais desnecessários?
Vou ali pedir um copo para ajudar a explicar isso. [Traz um copo com um formato requintado, que assenta sobre um suporte de madeira]. Isto é necessário ou não é? Não é. Basicamente pretende imitar um conceito que é o seguinte: antigamente, os condutores das diligências tinham um suporte para pousarem a cerveja sem se entornar. A meio do caminho bebiam a sua cervejinha. Para quem está a entrar neste mundo e entra num bar, entre este copo e um normal qual acha que vai querer? Vai querer este, que é diferente. Isto é marketing, e temos de ter muita atenção para o marketing. Na cerveja artesanal existe muito, não só nos rótulos, mas também nos copos. Um bar belga tem à vontade 60 ou 70 copos diferentes. Cada marca tem o seu copo. É necessário? Não. Em casa só utilizo quatro ou cinco. Se for beber a Guinness também tem um processo de serviço. A espuma é tirada com azoto, que dá uma cremosidade brilhante, mas a carbonatação é extremamente baixa. Por que se faz com o azoto? Porque é uma experiência magnífica, vê-se a cerveja a subir, parece quase café com leite, depois bebemos e ficamos com um bigode lindíssimo…
E o copo e a forma como se serve influencia assim tanto o sabor?
Acho que não influencia assim tanto. Mais uma vez, devemos ser descontraídos, se quisermos servimos rapidamente, o importante é metermos à boca e gostarmos da cerveja.
Qual foi a melhor cerveja da sua vida?
É sempre difícil eleger a melhor.
Uma que lhe tenha enchido as medidas, fosse pela qualidade, fosse pela circunstância ou local onde a bebeu…
Até posso já ter bebido uma melhor, mas a minha cerveja de eleição é aquela que mencionei, a Rochefort 10. Foi a primeira, foi a que me abriu a mente para este mundo. Aconteceu no meu início experimentar diariamente cervejas que me fascinavam. Era tudo novo, era tudo brilhante. Mas já voltei muitas vezes a esta cerveja e espanta-me sempre, porque é uma cerveja que tem tantas camadas, tanta coisa, cada vez que a experimentamos passa-se qualquer coisa de diferente. Não estou a ser muito inovador, existem alguns sites internacionais de avaliação de cerveja, onde estão milhares de pessoas de todo o mundo apenas para avaliar cerveja. A Rochefort, de 0 a 100, está no 100. A qualidade é inatacável. Se for à aplicação ver o percentil de algumas das nossas marcas mais conhecidas, estão no 4 ou no 5, de 0 a 100.
São assim tão más?
A Heinecken deve estar no 4. A Carlsberg está no 5. Estamos a colocar lado a lado o queijo fatiado e o Serra. Eu estou satisfeito com uma Sagres ou uma Super Bock, agora, quando entramos numa lógica de avaliação em termos de aroma e de sabor essas cervejas têm o que têm de ter. Estão no quatro ou no cinco, mas estão acima de algumas cervejas internacionais muito conhecidas, como a Miller e a Coor, ou a Bud, que acho que está no percentil zero.
Aí já parece perseguição…
Há dois conceitos que nós tentamos não alimentar. O do beer snob, que é horrível, por isso faço questão de dizer muitas vezes que não há problema nenhum de beber uma Sagres ou uma Super Bock. Depois há o beer geek, que é um bocadinho diferente – é uma pessoa que lê muito, pesquisa muito. Ainda agora escrevi um artigo para a revista Paixão pela Cerveja um artigo sobre o beer thicker. E o que é que o thicker faz? É uma pessoa que procura todos os dias cervejas novas. Pode ter bebido a melhor cerveja da vida dele, a partir do momento em que a provou já não interessa. Existe uma aplicação que é a untappd, onde vamos e dizemos ‘bebi esta cerveja’. E depois aquilo dá-nos uns badges, umas medalhas. E as pessoas andam atrás disso. Há ainda outros conceitos, como o de whale, que vem da Moby Dyck, a baleia muito difícil de atingir, que neste caso são cervejas muito raras, muito caras.
São troféus.
Se o geek bebe uma whale tem logo de publicar no seu Instagram. Existem muitas formas de estar no mundo da cerveja. Eu gosto de ser pouco ortodoxo e a maneira como pensámos o livro foi essa: trazer as pessoas para a cerveja, mas que a bebam de forma descomplexada. Se quiserem saber um bocadinho mais, excelente – mas o importante é apreciarem a cerveja e viverem momentos de confraternização. Se ficarem apaixonadas por este mundo, tanto melhor. Mas não queremos criar beer geeks nem beer snobs.
E a cerveja mais estranha que já bebeu, qual foi?
Se pesquisarem, vão encontrar uma cerveja que foi feita na Polónia com leveduras recolhidas na vagina de uma senhora. E há uma cerveja norte-americana que foi feita com leveduras que foram encontradas na barba do cervejeiro. Como ele faz tanta cerveja, e tinha uma barba à hipster, começou a acumular leveduras e bactérias nos pêlos. Cortaram-lhe a barba e fizeram uma cultura com as leveduras. [risos] Lá está, a cerveja tem crescido de uma maneira exponencial. E há muita gente que está a produzir cerveja e podia estar a produzir outra coisa. Se o que estivesse a dar neste momento fosse a renda de bilros artesanal, estavam a fazer rendas de bilros artesanal. A cerveja para mim não é uma moda, mas de facto está na moda. Há cento e poucas marcas de cerveja em Portugal e se calhar nesta hora que estivemos aqui a conversar já apareceu mais uma marca. Nos Estados Unidos é uma loucura. As pessoas têm de se diferenciar. Produzir uma pilsener ou uma pale lager se calhar já não é o suficiente. Há modas estranhíssimas. Há uma moda nos EUA que felizmente ainda não chegou a Portugal que é pôr glitter [purpurinas] na cerveja, mas comestível. A cerveja, por causa da carbonatação, parece uma discoteca. Ver aquilo é quase hipnótico. Qual é a vantagem? Nenhuma. Quando metemos qualquer coisa na cerveja é para lhe dar aroma ou sabor – talvez se possa escurecer. Mas estamos a chegar a certos limites – e essas cervejas feitas com fluidos de pessoas ou com a barba são bons exemplos.
E provou?
Sim, sim. Não se nota. Pode-se pôr o que se quiser na cerveja. Aquilo vai a cem graus e a fervura destrói tudo. Mas vai-se a esses limites de utilizar coisas muito estranhas. E a escola americana é propícia a utilizar-se de tudo.