Serenata à chuva


Quantas e quantas vezes nas nossas vidas teremos mantido o espírito rebelde da nossa adolescência, mandando às malvas os avisos que nos aconselhavam recato perante uma chuvada?


Cantar à chuva, dançar à chuva.

Quantas e quantas vezes nas nossas vidas teremos mantido o espírito rebelde da nossa adolescência, mandando às malvas os avisos que nos aconselhavam recato perante uma chuvada?

Quantas e quantas vezes, em lugar da proteção de um telheiro buscámos a infinita liberdade de oferecer o rosto aos pingos de água e dela colhemos a doce sensação do desafio?

Não existirão muitas pessoas que não tenham já batido uns passinhos, ou no mínimo entoado uns acordes, saindo na réplica do trio Gene, Donald e Debbie, transformando três chapéus de chuva numa coreografia de improvável e insinuante provocação à meteorologia.

Pois bem, tudo isto a propósito de … Silverstone.

Peguemos no enredo desta serenata da Metro-Goldwyn-Mayer e deixemo-lo nas mãos da Dorna, saltemos de uma chuvosa noite em rua sossegada para o palco asfaltado da corrida em East Midlands.

E Gene Kelly dançando com Donald O´Connor poderá ser Marc Marquez curvando com Dovizioso, ou Rossi bailando com Petrucci, quem sabe Miguel Oliveira trauteando com Morbidelli, o que não faltarão serão duplas buscando conquistar Debbie Reynolds, mas aqui Debbie será quem?… será pois a máquina de cada um, essa magnífica e poética máquina que eles buscam conquistar oferecendo-lhe os mais encantados passos de dança, curvando ora à direita ora à esquerda, com ela sapateando a mais de duzentos e muitos quilómetros por hora, dançando-a num deslizar planando na água, com ela cantando à chuva.

Assistindo a esta ‘reprise’ de um dos mais memoráveis momentos do cinema, lá estarão nas bancadas todos aqueles que desta família fazem parte, todos aqueles que serão até o respeitável ancião desta tribo, os espectadores, a quem caberá sempre a eleição dos reis a venerar, consoante lhes reconheçam bravura e arte suficientes para se alcandorarem ao patamar dos nunca esquecidos.

Pois é, vem aí Silverstone.

Virá talvez chuva, relembremos o ano passado e sua rábula do ‘corre, não corre’, e afinal não se correu mesmo, tais eram as poças que se acumulavam aqui e ali pista fora.

Mas o que aqui interessa falar, já que estamos em maré de chuvas que se desafiam em serenatas ou em aceleradas disputas, é mesmo o apelo ao leitor para que nunca desista daquela adolescente liberdade de ir contra o óbvio e se junte a esta maré que vai chegando aos fins-de-semana de corrida, emocionando-se com as batalhas de Miguel Oliveira, o Falcão, o 88.

Já por diversas vezes tentei aqui transmitir o quão fundamental se torna, para todo um universo de candidatos a futuros ídolos, a presença de um público que os acompanhe em todo um trajeto que apenas alguns conseguirão levar até ao fim.

Porque sem público não há provas, sem provas não há patrocínios, sem patrocínios não há equipas e sem equipas não há pilotos.

E sem público, sem provas, sem equipa, pilotos e seus patrocinadores, sem eles, que não reste a mais pequena dúvida de que teremos deitado fora uma vez mais a memória daqueles momentos em que na idade da nossa liberdade rebelde sabíamos desafiar a chuva e nela cantar.

Vem aí Silverstone.

Virá a chuva ou talvez não, virão Marc, Andrea Danilo, Valentino, Miguel e tantos outros.

E está nas nossas mãos, que a eles, mais a Gene, Donald e Debbie, nos juntemos todos nós, com os nossos nomes vulgares e desconhecidos, de gente que afinal constitui o grupo de anciãos que decidirá quem merece entrar e sentar-se no reino dos inigualáveis.

Vem lá Silverstone onde poderá ou não chover.

Seguir-se-ão mais, muito mais locais.

Uma única coisa em comum.

Aliás duas.

Público e paixão.