A praia de Almograve é especial, é uma experiência de vida. O perfil rochoso da praia remete-nos para as pedras dos caminhos que percorremos, a água fria do mar impõe-nos o adequado realismo para os mergulhos das realizações e mesmo o desnível da plataforma da areia em relação à encosta projeta-nos para as subidas e descidas da vida. E para consolidar o quadro nem falta o pó da terra batida e alguns chico-espertos que insistem em estacionar as viaturas onde não deviam, seja quase nas dunas ou nos trilhos do circuito de manutenção. As condições de valorização do espaço evoluíram, mas há sempre quem persista nos comportamentos de sempre.
Este contexto, conjugado com a debilidade da rede de telecomunicações, a ausência de jornais à venda na terra e a fragilidade do sinal TDT para acesso aos canais básicos, perfaz o quadro perfeito para a vida ao ritmo certo, menos mediatismo e redes sociais, mais família e pequenos grandes prazeres. É claro que, este ano, tudo está muito mais condicionado pelo pêndulo dos combustíveis, da contenção nas deslocações locais e no aforro para o regresso a casa.
A greve dos camionistas de transporte de matérias perigosas, nos termos em que é concretizada, é um direito, mas é também um abuso de posição dominante, assente nas fragilidades do país, nas dinâmicas da economia, nas vivências das comunidades e no perfil das suas lideranças.
Da água fria de Almograve, tão fria como límpida quando não tem algas, percebe-se que estamos em presença de uma forma diferente de populismo, sob a capa de defesa da melhoria da relação laboral, num quadro pré-eleitoral que deixa bem claro o fundamento de muitas das movimentações e das declarações efetuadas pelos protagonistas políticos.
A questão central, aqui como em muitas das concretizações dos últimos anos da solução governativa do PS, do PCP, do BE, do PEV e, em muitas ocasiões, do PAN, é a da sustentabilidade das soluções propostas ou concretizadas. Num quadro tão pontuado por incertezas e transformações, é de senso estabelecer um quadro de aumento dos direitos e das remunerações dos trabalhadores sem ter em conta o estado das empresas e as dinâmicas futuras da economia nacional, europeia e internacional? Faz sentido haver uma lógica crescente em que a incerteza contrasta com as garantias crescentes a determinados grupos profissionais, gerando injustiças relativas e divisões estéreis que acrescentam dificuldades à coesão social desejada? É que depois de anos de cortes e de anos de reposições, parece ter-se entrado numa fase em que quem não protesta, não faça valer a força estratégica das profissões nos corredores dos poderes, nos contextos eleitorais ou na sociedade portuguesa, fica alheado da manjedoura. Não é forma de funcionar, mas sublinha a gestão política de turno, sem rasgo estrutural, a que estamos sujeitos.
O populismo pode e tem várias expressões. O tempo eleitoral é pródigo em efervescências, sublinha o nível de solidez do caminho e dos resultados obtidos e permite vislumbrar o nível de preparação das escolhas políticas que têm de ser feitas. O panorama é tão empoeirado como os acessos às praias ou esburacado como as estradas que percorrem o território, alheias a qualquer impulso de manutenção sustentada. Olha-se e vislumbram-se fragilidades, entre a habilidade política e a inexistência política da alternativa, entre o populismo faccioso de quem sustentou a atual solução governativa e o desnorte de posicionamento à esquerda e à direita. O perfil da gestão política e da intervenção pública transformou-se numa matéria perigosa, verbaliza diversas expressões de populismo, de divisionismo e de falta de sintonia com a realidade e as necessidades do país.
Em democracia, os direitos exercem-se com respeito pelas esferas de liberdade e de direitos dos outros. Não há vacas sagradas nem chico-espertices que se sobreponham ao interesse geral das comunidades e do país. Esteve bem o Governo com a requisição civil, não apenas perante o incumprimento dos serviços mínimos, mas porque o interesse comum assim o impunha – aliás, até deveria ter sido preventivo. Estava e está em causa o normal funcionamento do país num momento do ano que funciona como salvaguarda dos restantes meses, em que o destino de muitos é o desemprego sazonal.
Portugal é um país de temas voláteis. Com o foco na greve dos camionistas, o risco de incêndio passou a rodapé mediático, mas não deixou de existir e de apresentar as mesmas debilidades iniciais. As dinâmicas da gestão política e da cobertura mediática sublinham a existência de um mar de oportunidades para a expressão de diversas formas de populismo. No caso do Almograve, um mergulho no mar refreia qualquer tentação; no país, a ver pelas intervenções de alguns candidatos a deputados e a acréscimo de poder pós-eleitoral, a patologia afigura-se mais difícil. Como se diz agora, “é lidar”.
NOTAS FINAIS
Alforrecas A nossa costa tem sido fustigada por alforrecas e caravelas-portuguesas. Umas provocam irritações, outras têm veneno mais perigoso, mas aparentam ser animais encantadores. São como alguns justiceiros da praça que, despojados do poiso europeu, mas não das regalias remuneratórias, persistem numa intervenção mediática polémica para se manterem à tona da vida pública. Tudo serve. Defender um criminoso, contradizer o seu passado de funcionária do partido e outros dislates provocatórios, em linha com um passado em que o ego se sobrepôs ao interesse geral.
Peixe-aranha Se as águas fossem mais quentes, existiria. Já deu à costa. Pouco, ainda bem. A realidade de haver esquadras da PSP fechadas por falta de efetivos para a guarnição e de o SEF restringir os serviços de renovação das autorizações de residência pelas mesmas maleitas não dói como a picada do peixe-aranha. Até ao dia. É inaceitável, quando a segurança e a estabilidade dos procedimentos são pilares da sociedade.
Escreve à segunda-feira