Novamente as férias e novamente Clarice


Há outro ponto a ter em conta na desmistificação do poder das decisões, premonições e orientações desenhadas em férias: a instabilidade da vida, o coração selvagem do futuro, indomesticável e imprevisível.


Já escrevi aqui sobre ilusões acerca das férias, nomeadamente falsas expetativas e quiméricos desejos. Volto ao tema férias, ainda sob o signo da ilusão, mas desta vez sobre as resoluções que muitas vezes se tomam ou pretendem tomar (ou se aconselham e celebram) nesse período, para o resto do ano ou para o resto da vida – como se as férias pudessem ser um tempo tão inspirador quanto indutor de clarividência e coragem para orientar o futuro, e também como se este fosse assim tão “orientável”. Mas nem uma coisa nem outra, pois as férias são uma bolha, mas não muito diferente do resto das nossas vidas no que diz respeito às reais capacidades decisórias, e o futuro não depende assim tanto do que decidimos ou julgamos decidir. Como escrevi há duas semanas, as férias são só uma pausa no trabalho, não são uma pausa na vida – e, por isso, também não são uma pausa de nós, nem de todos os nossos afetos, desejos, feridas, características, forças, fraquezas, limitações, possibilidades, emoções, razões, circunstâncias e, last but not least, pessoas. Quem não tomou já, na pausa das férias, decisões supostamente definitivas ou não teve momentos de clareza e força sobre o que seria a sua vida daí para diante? Quem não teve já o seu momento iluminado num fim de tarde pleno de agosto, com o sol reconfortante e o mar mítico?

Mas, depois, veio a vida, vem sempre, e é mesmo assim. Não há amargura nesta constatação, apenas um sabor agridoce quando se compara o que por momentos se imaginou ou julgou decidir com o que sobreveio, por desistência, por impossibilidade, ou, na maior parte das vezes, por pura e simples realidade. O que é possível e o que não é. A vida como ela é, como escrevia o genial narrador carioca (de adoção). E voltemos a Clarice Lispector, e novamente ao livro citado aqui há duas semanas, A Paixão segundo G. H., à sua escrita simultaneamente precisa e mágica, afiada como um punhal mas reconfortante (não são paradoxos, é a arte de Clarice): “Quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto? E a resposta é: não é só isto, é exatamente isto”. Touché.

E há outro ponto a ter em conta na desmistificação do poder das decisões, premonições e orientações desenhadas em férias: a instabilidade da vida, o coração selvagem do futuro, indomesticável e imprevisível. Como se aprende (ou recorda, para quem já aprendeu com as mãos na massa) noutro belíssimo livro que me acompanha nestas férias (sem ilusões, vivendo, e assim sem grandes desilusões, e com a impiedosa certeza de que nada há de especial a resolver para diante, só aguardar pela visita surpreendente e desafiante da vida, para o bem e para o mal). Falo de Canadá, de Richard Ford, onde tudo muda (e duas vezes), de um momento para o outro, radicalmente, reduzindo a cacos resoluções e previsões de futuro, mas esboçando janelas, entreabrindo portas, oferecendo e exigindo desafios e superações. Por mim, nada contra decisões em/de férias, maiores ou menores. Têm a sua magia, têm a sua importância, têm o seu papel na construção de cada um de nós. Mas saibamos que não são mais do que isso e que não dão qualquer segurança quanto ao futuro, que é um cavalo que aceita poucos freios. Tanto mais que depende em grande parte dos outros e, como Richard Ford escreve naquele livro, “as pessoas nunca fazem exatamente aquilo que queremos que elas façam.” E também nunca são exatamente o que esperamos nem aquilo de que precisamos. E nós também não. Et pour cause.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira