Enquanto as filmagens decorriam na ilha de Luzon, nas Filipinas, o cenário original foi destruído por um tufão, obrigando a equipa a mudar-se de armas e bagagens para uma nova localização. Harvey Keitel, a segunda escolha para Willard, o protagonista – depois de Steve McQueen ter recusado o papel, que exigia passar demasiado tempo longe dos EUA –, adoeceu. Martin Sheen, o ator que o substituiu, teve um enfarte. Marlon Brando, o astro mais brilhante do elenco, estava contrariado e certo dia engoliu inadvertidamente um inseto. “Estávamos na selva, éramos demasiados, tínhamos acesso a demasiado dinheiro, a demasiado equipamento, e aos poucos e poucos fomos perdendo a razão”, resumiu o realizador Francis Ford Coppola. Já diz o ditado: ‘grande nau, grande tormenta’.
Apocalypse Now não é caso único na história do cinema de um projeto que tinha tudo para correr mal – e em certo sentido até correu – mas cujo resultado acabou por revelar-se um triunfo absoluto.
Quarenta anos volvidos sobre a estreia, a obra-prima de Coppola continua em grande forma, tenho envelhecido de forma mais harmoniosa do que os seus protagonistas.
As primeiríssimas reações foram no entanto negativas e o realizador teve de fazer cortes profundos que encurtassem a duração e, ao mesmo tempo, retirassem alguma da estranheza que a película causava nos investidores.
De resto, essa estranheza não era alheia ao próprio objetivo do filme: retratar a explosão de delírio e de violência que tinha sido a guerra do Vietname (1955-1975). No centro do enredo, inspirado n’O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, estava Walter E. Kurtz (Brando), um coronel das forças especiais que comandava uma base no Camboja por conta própria e que aparentemente tinha enlouquecido. Representando um perigo para os próprios americanos, é enviada uma missão com o intuito de o eliminar.
Surf, drogas e rock’n’roll Coppola, então com 40 anos, casado, com filhos e endividado, desconhecia o que ia acontecer quando o filme chegasse às salas, e achava que se tinha metido num sarilho do qual muito dificilmente conseguiria sair. A sua intenção, revelou numa entrevista recente à Associated Press, foi fazer um filme que transmitisse uma sensibilidade da Costa Oeste: “A Guerra do Vietname foi diferente de todas as outras guerras americanas. Teve uma sensibilidade mais da Costa Oeste [Califórnia] do que da Costa Leste [Nova Iorque]. Nos filmes de guerra antes do Apocalypse, havia sempre um tipo de personagem do Brooklyn, uma personagem da Costa Leste ou do Midwest. Em Apocalypse Now, era LA [Los Angeles] e era o surf, as drogas e o rock ‘n’roll, por isso era um ambiente mais da Costa Oeste”. Um ambiente intensificado pela banda sonora, onde pontificavam temas dos Doors (’The End’), Rolling Stones (‘Satisfaction’) e até a ‘Cavalgada das Valquírias’, de Richard Wagner, numa cena em que os helis americanos (na realidade, helicópteros que foram emprestados pelo ditador Ferdinand Marcos) arrasam aldeias de vietnamitas inocentes. A combinação destes elementos, que já foi descrita como “operática”, causava perplexidade, até porque este Apocalypse tanto podia ser considerado uma glorificação e estetização da guerra como a denúncia de um crime sem nome e do imperialismo americana. Provavelmente era tudo ao mesmo tempo.
O cheiro do napalm pela manhã Independentemente dos contratempos, do ceticismo dos investidores e das dúvidas do próprio realizador, uma versão ainda provisória de três horas estreou-se no Festival de Cannes em 1979 e conquistou a Palma de Ouro – decisão que mereceu alguns apupos da assistência. Também nos Estados Unidos o filme dividiu opiniões da crítica, mas tornou-se claro que o sucesso de bilheteira estava garantido. Coppola podia respirar de alívio – pelo menos até ao seu próximo projeto.
Além das imagens impactantes captadas no inferno tropical das Filipinas, algumas passagens do guião de Thom Patterson também ficaram para a história. A mais célebre é talvez o monólogo de Bill Kilgore, interpretado por Robert Duvall: “Sentes este cheiro? Tu sentes este cheiro? Napalm, meu filho. Nada no mundo cheira assim. Adoro o cheiro do napalm pela manhã. Sabes, uma vez bombardeámos uma colina durante 12 horas seguidas. Quando acabou, subi à colina. Não encontrámos um único deles, nem um corpo malcheiroso. Só cheirava àquilo, a gasolina. Cheirava a… Vitória”.