António Barahona. “O poeta desperta dentro do seu próprio sonho”

António Barahona. “O poeta desperta dentro do seu próprio sonho”


Sucedem-se os tomos de uma obra poética fundamental e que desde logo deixa claro que esta é uma arte que vive à custa da liberdade algemada que distingue os grandes leitores.


Se há uma vantagem soberba em se chegar tarde, e mesmo nas piores horas, quando a literatura a tão poucos parece interessar, é a possibilidade de pôr numa assembleia gente que nunca se viu, fazer de uma biblioteca uma rede de passagens clandestinas ligando todas as épocas. A tarefa hercúlea e apaixonante de um leitor é empurrar os mais caprichosos, atrair os mais endiabrados solistas a um convívio: pô-los à conversa, a incitarem-se ou a querelar, a remexerem-se nos bolsos, trocando notas, imagens, venenos, num modo de afeição perigosa. Uns com os outros, uns dentro dos outros, nem que seja à bulha. Alguns no seu esfíngico recato, esplendorosos, duros, outros a abrir passagem a golpes de fígado naquele enlevo dos incendiários, para depois, em vez do escarro, darem saída à melhor imitação do trilo desse pássaro que só se escuta em sonhos. Deste modo, cada leitor, na medida das suas capacidades, acaba prestando provas como maestro face à mais insolente das orquestras. E se esta não o poupa, com a sua tendência para amotinar-se, por outro lado, também lhe rende séries harmónicas estarrecedoras.

Um poeta como António Barahona põe-se diante de nós, e em face de uma época literal e conformista como esta, como uma presença chocantemente inatual. E sendo embora um poeta bastante prolífico, com os mestres que cultivam uma obra breve e sujeita a constante reescrita, aprendeu a decantar a sua matéria, atacar a imortalidade vindo do lado do que é finito. Recriando em sua volta um convívio majestoso, há um júbilo sagrado na forma como convoca outros desses doentes exemplares, velando-os, estimando-os tanto. Cada lembrança está carregada do “desespero feliz” de uma perda que não se deixa cicatrizar, e produz aquela concentração de uma vida num filme de segundos. De tão arrebatadoras, as imagens deixam um zumbido nas veias, sabem-nos como uma transfusão de um sangue vivíssimo.

A título de exemplo, vale a pena citar um dos primeiros poemas de A Fina Flora do Crepúsculo (ed. Averno, junho de 2019) – sétimo tomo da suma poética do autor –, ‘Tardes do primeiro domingo de cada mês’: “À bocca da noite, pintada de carmim,/ ouve-se o piano dentro do romance:/ os tons de Columbano entornam-se pela sala,/ onde converso com meu tio tetraneto/ da Rainha Santa Isabel de Aragão;/ e, onde se situa o Hospital de Santa Maria,/ vê-se, no som do Sol-poente, um pomar/ com um menino loiro a brincar, solitário,/ ao espelho mágico dêste cinema mudo.// Falamos de livros, sim; em voz alta;/ mas, se passassse alguém ali por perto,/ só veria o mover dos nossos lábios.” Com um “ardor tão casto”, humilde e obstinadamente, o poeta recomeça de cada vez, pesando cada verso contra a vida inteira, e mostra-se exímio nesse dano fabuloso que produz nos sentidos do leitor, catando o “esplendor das ruínas”, que nos diz ser algo de tão profundo e subtil, “igual a mil crepúsculos/ nas entrelinhas”.

“Nem a todos é dado saber quão nossa contemporânea pode ser a grandeza. E a muito poucos é grato reconhecê-la, quando fala melhor do que nós uma mesma língua e vive connosco a mesma época”, vincava Jorge de Sena numa homenagem à poeta brasileira Cecília Meireles, com ela ainda viva. Hoje, as homenagens estão sujeitas a uma espécie de vandalismo uma vez que as palavras grandes estão dolorosamente esvaziadas pelos destratos de quem as esgrime à toa e em nome de uma mera troca de favores. Como lembrava Luiz Pacheco, “quem gosta de tudo – ou finge, que é a atitude mais cómoda e cativante – não gosta, afinal, de nada. Ou, talvez e apenas, do seu egozinho de porta-aberta, como as coitadas das rameiras que não podem escolher cliente, é sempre a aviar…”

Estamos sujeitos, no meio literato, a esta pressão inflacionária que afeta a própria capacidade de fazer sentido do mundo e das coisas, este modo absurdo de se ser desapossado e que nos diz como nos conformámos com uma condição de bastardia, com o oportunismo da canalha que se compraz na própria mediocridade. Não é de estranhar que os sucessivos volumes da suma poética de Barahona vão aparecendo e sendo recebidos com frieza, como se escritos num português arcaico, quase uma língua morta, mas que, afinal, se fixa gloriosamente face à indigência dessa outra língua em que, diariamente, nos fazem refocilar. E talvez a única justiça que nos resta seja esta forma de confiança no futuro, que consiste em dar tudo hoje, este modo de generosidade que, possivelmente, já não será apreciado por uma época admirável, mas só por esses raros leitores que superam as limitações do seu tempo, viajando pela rede de túneis de que falávamos. Essa “imensa minoria” que, ao longo dos séculos, acaba por celebrar esta nobreza exilar animada de um tão “ardente fundamento”: “Cá vou caminhando, meu Deus,/ pela maturidade dentro: um fruto que cai tão pesado/ que penetra na Terra até ao centro”.

Por tudo isto, ainda mais poético do que ensaiar uns versinhos que não sejam de todo intragáveis será dar a ler alguém que, no tão medido uso que faz das palavras, parece cunhá-las de novo, revestindo-as de um fulgor que nos carrega do ímpeto de um ato de nomeação que se confunde com o do baptismo. Como sublinha Sena: “Um grande poeta é algo raro, para que não seja importante registar que, em dado momento, respirou o mesmo ar que nós, comeu o mesmo pão, bebeu da nossa água. Seremos daqui em diante menos abstractos nos seus versos; se lá estaríamos sempre, como toda a humanidade está na muito grande poesia, poderemos encontrar-nos sempre lá mais pessoalmente, mais aqueles seres insubstituíveis que somos para tão poucos e às vezes nem para nós próprios”.

A Fina Flora do Crepúsculo tem, nas suas oitenta páginas iniciais, uma extração particularmente deslumbrante e representativa desse grau extremo de beleza rude que Barahona apurou na sua “imensa viagem lírica”. Arrancando com uma carta-prefácio dirigida a Herberto Helder, e num tom de cumplicidade afetuosa e de admiração intensa, Barahona parece ficar em baixo, segurando-lhe a escada, na convicção do que o amigo foi à frente, desbravar o Além. Fala-lhe com a confiança de que, tenha ou não encontrado as evidências de Deus – esse cuja transcendência Herberto negava –, não terá sido a sua morte o fim da “discussão descontínua” que foram mantendo ao longo das suas vidas.

Se a morte está entretecida em muitas das páginas deste livro – que fica também marcado pela funesta coincidência do desaparecimento de Mumtazz, a artista e ex-companheira do poeta, que não chegou a ver materializada a sua capa, a mais radiosa das que foram dadas a um livro de Barahona – se o enche da exaltação de quem prolonga o seu último fôlego com cada verso, mostra-se generosa como uma lâmpada que cinge intimamente a paisagem e lhe imprime um tremor que pulsa, contribuindo para o efeito de inebriamento da obra de um “poeta [que] desperta dentro do seu próprio sonho”. “Aprender a morrer, Amigo e Mestre,/ é pôr a morte à distância dum palmo/ e conversar com ele num tom calmo,/ sereno azul-celeste”, diz Barahona na carta a Herberto. A sua sabedoria é um grande embalo, e cada detalhe é descrito com a graciosidade de quem ainda o pesa, “lendo e tirando notas de montanhas de memórias”. Este livro coloca-se diante da existência “com inclinação de leitura”, e aqui, como noutros momentos desta obra, percebe-se como o poeta é um leitor tão fiel que não só tem lá a mão quando o fruto cai, mas ao mordê-lo cultiva-o no seu hálito, propaga-o na sua meditação espiritual.

Na homenagem a um tio cujo amor pelos livros era tal que “transpirava, nas mãos, o perfume das páginas”, Barahona fala na “religiosa liberdade de quem lia/ atado com algemas ao som da poesia”. Assim, o poeta é aquele leitor que elege a consanguinidade com os tantos que o precederam e lhe sucederão, esses que, mastigando e digerindo os mitos, por um processo de alquimia, vão transmudando “em som oirado o seu sangue”.

Retomando o diálogo com Sena, diz-nos ele que “quando o poeta sabe que toda a sua vida está jogada no caminho que aceitou, e este último na possibilidade de expressão que encontrar em si próprio – todos os outros poetas são seus irmãos (…) Daqui resultará uma originalidade superior, que se não rebuscou fugindo aos mais, nem os traiu na sua confiança de publicadores de versos”.

Barahona não é só, pelo que se disse, um grande poeta, mas é um desses que nos lembra a todo o momento que aqueles que dão corda e acertam a hora de modo a que outros possam chegar pontualmente ao tal encontro entre as épocas, esses estão aí, desprezados: “No meio das ruínas,/ sôbre um colchão velho,/ um homem soerguido/ escreve poemas.// E mesmo muito cá/ em baixo, subterrâneo, tem altura de montanha/ e tem nuvens no crânio.”