Todo o processo que conduziu à greve dos motoristas de materiais perigosos, independentemente daqueles que venham a ser os seus resultados e impactos diretos, ainda difíceis de avaliar em todas as dimensões no momento em que escrevo este texto, deve constituir para a sociedade portuguesa uma oportunidade de reflexão e de ação tendo em conta os desafios que as novas estruturas sociais fragmentadas colocam aos povos em geral e às democracias em particular, e em que Portugal não é exceção.
Uma oportunidade de reflexão e ação para o movimento sindical, que corre o risco de se cindir entre plataformas de negociação transversal do interesse partilhado dos trabalhadores e agregados de pressão desproporcionada, constituídos por aqueles que detêm capacidade reivindicativa acrescida pela perturbação que as suas ações podem causar no funcionamento dos sistemas básicos da vida em sociedade.
Uma oportunidade de reflexão e ação também para as estruturas patronais, que têm de ser capazes de negociar de forma mais aberta e transparente com os trabalhadores, sem ceder à tentação de substituir essa negociação pela exploração da reação pública negativa ao uso do poder de pressão dos grupos profissionais.
O que sucedeu desde abril e está a suceder agora é uma oportunidade para que todos os setores que sob o risco de carência se apressaram, e bem, a enumerar riscos e a quantificar prejuízos potenciais se preparem de forma estrutural para poderem acionar planos de contingência que permitam conter os conflitos laborais na sua devida dimensão legal e constitucional, e não extravasarem para situações de descontrolo ou pânico coletivo de consequências difíceis de antever.
Foi o que fez e continua a fazer o Governo, com uma eficácia e uma serenidade que devem ser sublinhadas. Os que consideram a sua ação eleitoralista seriam os primeiros a cobrar eleitoralmente dividendos de qualquer desvio ou fragilidade na governação da crise.
De facto, se muitos portugueses se precipitaram em catadupa para a prevenção de riscos, adquirindo combustíveis muito acima do seu consumo médio expetável e esgotando os stocks de jerricãs e de alguns postos de abastecimento mesmo antes do início da greve, o Governo manteve sempre o foco no jerricã do bom senso, mediando e precavendo de forma a permitir o essencial, ou seja, que o conflito laboral se mantivesse e fosse dirimido como tal, e não como uma situação de caos, emergência ou calamidade pública.
Qualquer que venha a ser o resultado final deste processo, que irrompeu para aquecer social e politicamente um verão climaticamente macambúzio, o exemplo que ficar da ação das instituições e da capacidade de aprendizagem das estruturas mais expostas da sociedade portuguesa perdurará como um seguro ou como uma ameaça para o futuro.
O direito à greve é inalienável. A conflitualidade social e laboral faz parte dos genes duma democracia saudável. A capacidade dessa democracia de não permitir que os conflitos extravasem a sua natureza e contaminem a defesa do interesse público e do bem comum é um exercício difícil que, até ao momento em que escrevo este texto, tem sido assegurado com reconhecido bom senso e sentido de Estado.
Eurodeputado