Plácido Domingo concorre com Weinstein entre os grandes  peixes do #MeToo

Plácido Domingo concorre com Weinstein entre os grandes peixes do #MeToo


Com a faca, o queijo e também as tostas e o caviar na mão, o cantor de ópera Plácido Domingo é acusado por várias mulheres de ter abusado despudoradamente do seu poder ao longo de 30 anos, assediando-as sexualmente de forma impune


“Como se diz não a um deus?”, notava uma das nove mulheres que falaram à Associated Press (AP) sobre os abusos sexuais de que alegadamente foram alvo por parte de Plácido Domingo. Não se trata de um beijo roubado aqui, uma mão na perna, atenções especiais ou insinuações nos bastidores de grandes produções operáticas, mas o retrato do celebrado cantor lírico espanhol que emerge da investigação é o de predador sexual sem o mínimo pudor. No cerco impiedoso, na forma como perseguia e se impunha, o homem que é considerado um dos maiores cantores de ópera de todos os tempos não hesitou em fazer-se valer do seu ascendente sobre oito cantoras e uma bailarina que, entre 1980 e 2002, terão sido pressionadas a manter relações íntimas com o tenor, sob o risco de verem as suas carreiras prejudicadas caso repelissem os seus avanços. E, de acordo com os testemunhos ouvidos pela agência noticiosa norte-americana, quando a sua atenção era recusada, Domingo retaliava e, através dos cargos de gestão que mantinha dentro das companhias, levantava entraves ou afastava aquelas mulheres, e mesmo nos dois casos em que as mulheres chegaram a ceder aos seus avanços, as promessas que lhes fez não se materializaram depois.

Aos 78 anos, e ao longo de uma carreira de meio século, Domingo consegue ainda preencher a lotação das mais prestigiadas salas de ópera e o seu repertório conta com cerca de 150 papéis e mais de 4 mil atuações, um número que ultrapassa o de qualquer outro cantor lírico na história. Este cantor é também um prolífico maestro e dirige há vários anos a Los Angeles Opera, onde tiveram lugar alguns dos episódios relatados pela AP. O tenor tem sido uma presença recorrente também no nosso país, e se em maio passou por cá para dar um espetáculo, em 2018 esteve em Lisboa para agraciar a 26.a edição do Operalia como jurado, prestigiando assim este evento que avalia jovens cantores líricos de todo o mundo.

Na ocasião, Marcelo Rebelo de Sousa não perdeu a oportunidade de atribuir ao maior nome da ópera uma medalha lusa. Assim, Domingo levou com ele a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública pelo “papel como Presidente da Europa Nostra” e pela inspiração para as “jovens gerações”. E Marcelo só não pôde ser mais enfático com a sua homenagem porque, já em 1998, o tenor havia sido distinguido por Jorge Sampaio com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

Das nove mulheres que avançaram com acusações, o facto de apenas uma – Patricia Wulf, uma meio-soprano que trabalhou com ele na Ópera de Washington – ter aceitado ser nomeada é bem demonstrativo do poder que Plácido Domingo tem no meio. Ainda hoje, as oito mulheres que preferiram ficar resguardadas no anonimato assumem que o fazem porque ainda trabalham no meio e receiam ser punidas por se atreverem a expor a figura mais proeminente da ópera ou virem a ser publicamente humilhadas e vítimas de outras formas de assédio. A AP adianta ainda que, para proteger a identidade das mulheres, foi obrigada a ocultar aspetos que lhe foram revelados.

No seu vastíssimo palmarés, Domingo conta com 12 Grammys (três deles latinos) e, com a colaboração no projeto Três Tenores, ao lado de Luciano Pavarotti e José Carreras, viu o seu nome no disco de música clássica que mais vendeu em todo o mundo. Foi nos anos 1980, numa altura em que era já consultor artístico da LA Opera, que foi projetado para a fama internacional, e, como lembra a AP, foi por esses anos que a revista Newsweek lhe deu a capa e o coroou como “O Rei da Ópera”, tendo começado a aparecer frequentemente na televisão, ao ponto de a Rua Sésamo ter tido um personagem criado em sua honra: Plácido Flamingo. De resto, uma soprano que aceitou falar sobre o assédio de que foi alvo deixa bem claro que a celebridade de Domingo não é indevida e diz que o mundo da ópera beneficiou muitíssimo com o tremendo encanto que ele trouxe para os palcos como cantor e performer. E, a nível pessoal, presta-lhe tributo por tê-la inspirado a seguir uma carreira na ópera. Se a oportunidade de trabalhar com o seu ídolo surgiu como o pináculo da sua carreira, em 2002, na Met Opera, em Nova Iorque, descreve como uma aproximação generosa, em que o tenor só tinha elogios para ela, logo deu lugar a um avanço indesejado nos camarins. Esta cantora, que contou o último dos episódios nesta cronologia de assédio, terá ecoado as palavras de outras das mulheres que, encorajadas pelo movimento #MeToo, decidiram que estava na hora de deixar claro que os alegados abusos de poder de Plácido Domingo não eram então, como não são hoje, desculpáveis.

Dos tantos testemunhos recolhidos, percebe-se como o percurso e os feitos cantor lírico ajudaram a escudá-lo das acusações ao longo de mais de 30 anos, até porque as suas alegadas vítimas revelam algum receio de manchar a reputação de uma das maiores lendas num mundo ao qual continuam dedicadas e que arrisca ver o seu feitiço quebrar-se se os aspetos mais sórdidos assumirem demasiado relevo. “Não é que eu queira vê-lo punido. O que quero é que ele tenha consciência. Quero que tenha a oportunidade de saber exatamente o tipo de dano – emocional, psicológico, profissional e outros – pelos quais foi responsável”, diz a cantora que, ao ser assediada, viu morrer o seu herói.

Antes de detalharmos mais o teor das acusações, é importante referir que, muito embora a AP não tenha tido acesso a provas documentais, na sua investigação ouviu também outras 30 pessoas, entre cantores, bailarinos, músicos de orquestra, elementos da equipa de produção, professores de canto e uma administradora de uma das companhias, e todos confirmaram ter testemunhado situações em que Domingo teve um comportamento sexual inapropriado e que a impunidade com que perseguia as mulheres mais jovens era um segredo que todos conheciam. Em certo sentido, para lá das responsabilidades que possam ser assacadas a Plácido Domingo, a investigação torna claro que havia uma cultura permissiva em relação aos seus abusos, uma forma de tolerância que roça a cumplicidade. Assim, de acordo com a AP, muitas das mulheres dizem que foram repetidamente avisadas pelos colegas para que evitassem ficar a sós com o tenor espanhol, mesmo que isso significasse partilhar uma viagem de elevador com ele. E caso aceitassem um convite para se juntar a ele numa refeição deveriam ter o cuidado de não beber álcool e que fosse num lugar público – e, mesmo assim, sempre para almoçar. Jantar, nunca. Uma das cantoras que dizem ter acabado por ceder aos avanços de Domingo, tendo por duas vezes tido relações sexuais com ele, assume que o fez porque, depois de tanto se esquivar, não viu mais saídas e sentiu que, se lhe desse um não rotundo, estaria a pôr em risco tudo aquilo por que tinha lutado tanto. E não só isso: deixa claro que não havia maneira de denunciá-lo e que, ao confidenciar aos outros cantores e administradores aqueles comportamentos, a reação passava invariavelmente por um sorriso e um encolher de ombros. Em certo sentido, muitos dos que nunca estiveram na condição de “presa”das alegadas investidas do cantor tomavam aquela perseguição como algo cómico. A solução passava por evitá-lo e, depois, rir do assunto.

Algumas das mulheres descrevem os cuidados extremos que observavam de modo a evitar Domingo, como se este se tratasse de uma fera cujo transbordante apetite sexual colocava em risco quem quer que se cruzasse com ele em circunstâncias propiciadoras de um ataque. Assim, elas iam ao ponto de não usar a casa de banho das mulheres junto ao seu gabinete e até de se fazerem acompanhar de outros cantores e de elementos masculinos da equipa, para ficarem perto delas durante os ensaios. O assédio não se ficava pelos bastidores e algumas terão deixado de atender o telefone em casa dada a forma insistente como, alegadamente, Domingo persistia nos seus convites. Uma meio-soprano que integrou o elenco da LA Opera e que não está entre o grupo das mulheres que afirmam ter sido alvo de avanços sexuais inapropriados é enfática na hora de reconhecer que havia um padrão de comportamento preocupante, de tal modo que “havia uma tradição oral de avisar as mulheres sobre Plácido Domingo”. Segundo ela, era algo como uma lei não escrita: “Evitar interação com ele a todo o custo. E nunca por nunca ficar a sós com ele”.

Uma das mulheres contou à AP que, depois de ser convocada para um ensaio em casa do cantor após terem trabalhado numa ária, tendo sido muito atencioso e galante, cheio de elogios para os seus talentos, logo enfiou a mão por dentro da sua saia, obrigando-a a fugir dali. Outras três descreveram situações em que forçou beijos, fosse nos camarins, em quartos de hotel ou almoços de trabalho. “Um almoço de trabalho não é algo estranho”, disse uma das cantoras. “Mas ter alguém a tentar segurar a tua mão durante um almoço de trabalho já é um pouco estranho, alguém a pôr a mão no teu joelho também é estranho. Ele estava sempre a tocar-te de alguma forma, sempre a querer beijar-te”.

Na aura que se criou à sua volta, além do imenso respeito dos seus colegas pelos seus dotes prodigiosos, pela forma como se entrega ao trabalho com uma disciplina absoluta, Domingo é muitas vezes descrito, como refere a AP, como uma personalidade infecciosa e que esbanja charme. E não é que estas acusações tentem fazer dele um monstro, mas revelam um homem que, a dada altura, parece ter perdido a capacidade de ouvir um não. Era tão insistente que uma das mulheres que dizem ter preferido fazer a vontade a Domingo, receando que, se não o fizesse, a sua carreira fosse prejudicada (como depois veio a ser), conta os dois encontros sexuais, que tiveram lugar num hotel e no apartamento dele em Los Angeles, em 1991. E lembra-se de o tenor lhe ter dito que se tratava de uma superstição: tinha de ir para a cama com uma mulher antes de um espetáculo porque só assim conseguia relaxar e acalmar os nervos. “Assim consigo cantar melhor – e vai ser por tua causa”, terá dito o cantor, antes de lhe deixar uma nota de dez dólares na cómoda do quarto, dizendo-lhe: “Não quero que te sintas como uma prostituta, mas também não quero que tenhas de pagar pelo estacionamento”.

Na reação à investigação da AP, Domingo recusou responder a uma série de perguntas que lhe foram enviadas sobre incidentes específicos e limitou-se a enviar um comunicado em que diz que “as alegações feitas por estas pessoas não nomeadas e que remontam a um período de três décadas são profundamente preocupantes e, na forma como foram apresentadas, são imprecisas”. “Ainda assim”, prossegue o comunicado, “é doloroso saber que posso ter perturbado alguém ou fazê-lo sentir-se desconfortável – não importa há quanto tempo isso tenha ocorrido e apesar das minhas melhores intenções. Eu acreditava que todas as minhas interações e relações eram sempre bem recebidas e consensuais. As pessoas que me conhecem ou que trabalharam comigo sabem que não sou pessoa para intencionalmente prejudicar, ofender ou embaraçar alguém”.

A resposta de Plácido Domingo termina abrindo margem para um equívoco que possa resultar da forma como os tempos estão a mudar, levando a que certas atitudes antes encaradas como normais sejam hoje vistos como censuráveis e até criminosas: “Reconheço que as regras e padrões pelos quais estamos hoje – e é bom que assim seja – a rever os nossos comportamentos são muito diferentes do que eram no passado. Eu tenho a sorte e o privilégio de ter uma carreira de mais de 50 anos na ópera e quero ser julgado segundo os mais altos padrões”.

Pouco antes da hora de fecho desta edição, a Orquestra de Filadélfia retirou o convite feito ao tenor para atuar no concerto de abertura da temporada, agendado para 18 de setembro.