“Hom’essa! Então mas que raio…”, surpreendia-se um incauto habitante de Carcavelos naquela manhã clara e luminosa de agosto. Durante a noite, a berma da Estrada Marginal fora transformada num verdadeiro parque de campismo. Tendas a trouxe-mouxe, caravanas, automóveis estacionados. “Que diabo…”, murmurava o homem de si para si, coçando o cocuruto.
“São turistas!”, acusava um. “Não vês pelas matrículas dos automóveis? Todas estrangeiras!” E eram. Mas os proprietários eram portugueses, pelos vistos. Emigrantes, claro está. E restrições para o erguer de tendas ao destempero não existiam.
Justificava-se uma senhora gorda, doída da alma: “Adoramos a Costa do Sol. Vimos sempre cá passar uns dias. Estávamos acampados em Santa Marta, em Cascais, muito sossegados, quando fomos acordados à meia-noite por um polícia. Obrigou-nos a sair dali de imediato, senão pregava-nos com uma multa de 1700 escudos. Oiça lá, há direito disto?”
Ninguém lhe respondeu.
A senhora gorda não captava o geral das simpatias.
Logo nova voz, de um morador da zona, se erguia: “Isto está transformado numa lixeira. Então fazem as necessidades junto às árvores??? Que porcaria! Isto vai atrair bicharada do pior. Não vou aturar esta pouca-vergonha!”
Um aliado: “Isso mesmo! Ainda há dois dias pusemos um casal de americanos daqui para fora. Não temos de levar com a vossa nojeira toda”.
E a senhora gorda: “Mas que nojeira? Isto é tudo gente com a máxima higiene. Que culpa temos se não há parques próprios para campismo? Esta zona é agradável, à beira da praia, ficamos aqui uns dias tranquilos. Não andamos à procura de sarilhos”.
O marido, ao lado dela: “Estamos a trabalhar em França, gostamos de passar as férias no nosso país. O campismo é o nosso único recurso. Não temos dinheiro para hotéis e restaurantes”.
Cada vez pior O que falara primeiro encolhia os ombros: “O que tenho eu que ver com o facto de vocês serem ricos ou pobres, viverem em França ou na China? Moro aqui a 50 metros, não vou aturar esta pouca-vergonha à porta de casa. Cheiro a guisados e a urina e fezes? Isso é que era bom, amigo. Vai pegar nas tralhas e pôr-se à estrada depressinha. Senão vou apresentar queixa na polícia e sai daqui à força”.
O marido não baixava a guarda: “Sou da Guarda! Já estivemos lá este mês, deixaram-nos acampar em terrenos vazios, não houve problema nenhum. Para que estão vocês a criar uma guerra? O terreno nem é vosso. É municipal. Se é proibido acampar aqui que ponham um sinal. De resto, não lhe reconheço autoridade nenhuma para estar a ameaçar-me”.
A vizinha da caravana da esquerda meteu-se ao barulho: “Olhe! Até lhe digo mais. Há um fontanário aqui perto e essa é a única água de que dispomos para tudo. Só para ver as condições a que nos sujeitam. Senão ficamos reduzidos ao restaurante que fica ali em cima e que nos cobra a água ao preço do petróleo. Por isso, não venha cá com lições de moral sobre higiene”.
Fervia de nervos o opositor. Já vermelho de raiva, à beira da apoplexia: “Ainda por cima diz-me isso com total descaramento?! Foram vocês que destaparam o poço?! Andam a brincar com coisas sérias ou quê? Então deixam o poço destapado logo aqui, numa zona onde as crianças andam a brincar. Se alguma cai lá dentro, de quem é a responsabilidade? Vossa, claro! Cá para mim, é ir andando, depressinha e com o rabo entre as pernas, antes que se vejam metidos numa camisa de onze varas!”
O diálogo aquecia na tarde calma.
Ia-se juntando cada vez mais gente.
De simples curiosos, passavam num instante a tomar partido, ora por uns, ora por outros.
Com pose de juiz, sentenciava o sisudo: “É uma irresponsabilidade terrível! Terrível! Vem um automóvel com mais velocidade, despista-se, cai sobre as tendas, é uma mortandade terrível! Terrível!”
Parecia o conselheiro Gama Barros, d’O Primo Basílio do divino Eça.
Quanto à lei, bom, ninguém estava certo de coisa alguma, nem o sisudo.
Um polícia atreveu-se a surgir, por entre pinheiros. Tirou notas, registou pontos de vista. Sussurrou qualquer coisa como ir saber como resolver a questão, que talvez fosse mais apropriado conduzir os campistas e caravanistas para uma zona onde não incomodassem ninguém, onde pudessem gozar de mais tranquilidade.
“Eu para longe da praia não vou!”, ouviu-se berrar. A senhora gorda levou as mãos à cabeça: “Meu Deus! Já nem durmo…”