Boris Johnson. O último estadista da Europa

Boris Johnson. O último estadista da Europa


Dono de uma sólida formação clássica, Boris Johnson vê em Londres a versão contemporânea da Atenas de Péricles e imagina-se a si próprio como um cidadão ateniense lutando contra o espectro de uma tirania.


O resultado era esperado, o acontecimento parecia estar escrito de antemão, mas isso não impediu que, por todo continente Europeu, um muito real arrepio na espinha se fizesse sentir em todas as chancelarias das diversas capitais: Boris Johnson, o bufão, o mentiroso patológico, o vilão de opereta, chegava, finalmente, ao número 10 de Downing Street, um dos bastiões da democracia no Velho Continente. De um lado e do outro a contagem das armas não se fez esperar: a direita pediu paciência para ver o que Boris faria, desconfiando no entanto da figura demasiado instável, Paulo Portas assegurou que se trataria do chefe de estado mais culto da Europa – não andará longe da verdade, de facto –, Clara Ferreira Alves foi buscar a conhecida abertura do 18 de Brumário de Luís Bonaparte de Marx para o distinguir do Velho Leão (“a história repete-se como farsa”), Rui Tavares, no pequeno prazer que lhe dá castigar o Reino Unido pelo atrevimento do Brexit, apelidou-o de “bobo da elite” que fez tudo, inclusive “mentir, enganar, vigarizar”, para chegar ao lugar que foi outrora de Churchill, comparando-o, de forma não mundo feliz, a Donald Trump; o Guardian, sério jornal inglês, decidiu abrir fogo de barragem contra a figura e a London Review of Books reduziu-o a uma consequência de Nigel Farage.

Inconsistente, com um “egoísmo titânico”, desleal, maquiavélico, colhendo desconfiança até nas suas hostes, Boris Johnson parece, no entanto, imune a tudo. É apanhado numa escuta a dar a morada de um jornalista a um amigo que queria “dar-lhe um aperto”? Boris ri-se e, depois de mostrar incómodo por ouvirem conversas pessoais, diz, com o ar mais cândido do mundo, que nada de grave aconteceu. Inventa ou distorce factos, como o conhecido artigo onde afirma que os preservativos italianos eram demasiado pequenos? Os outros jornais britânicos pedem aos seus correspondentes que o imitem. Fica preso numa corda a 5 metros de altura, segurando nas mãos duas pequenas bandeiras do Reino Unido? Aumenta, estranhamente, a popularidade.

Formado nas melhores escolas britânicas, no prestigiado Eton College, onde foi colega de David Cameron, e em Oxford, onde se formou em Clássicas pelo Balliol College, desde cedo apresenta sinais de um delírio de grandeza que o seu errático mas bem pensado percurso político veio finalmente confirmar – queria ser “rei do mundo” enquanto criança, e, relativamente ao percurso errático, podemos sempre recordar o que dizia sobre Churchill: que se escolhe um partido como se escolhe um cavalo de corrida. Boris Johnson, aliás, permanece um misto de Velho Leão, no que este tinha de impetuoso, de pequeno tirano renascentista que não olha a meios para atingir o poder, de erudito, não havendo muitos políticos na Europa com capacidade para escrever um livro sobre o Império Romano ou para discutir as diferenças entre Roma e Atenas com uma professora de Cambdrige, e de defensor acérrimo da democracia. Contraditório? Sem dúvida. Mas já Hannah Arendt, filósofa alemã radicada nos Estados Unidos, defendia que a vontade, contrariamente ao pensamento, não obedece ao princípio da não contradição e podemos facilmente querer uma coisa e o seu contrário ao mesmo tempo sem haver nisso qualquer problema – e, como uma certa estirpe de estadistas, a vontade encontra-se no centro do seu projecto político, bastando querer muito para que as coisas aconteçam.

O mais interessante, no meio desta barafunda em forma de estadista, é que, caso queiramos estabelecer uma analogia histórica, o exemplo será, não Churchill, mas Napoleão. Não no sonho imperial – como um pouco injustamente tem sido acusado, Boris Johnson não é um nacionalista apostado em trazer para o século XXI o antigo Império Inglês – mas na relação à história que tanto ele como o exilado de Santa Helena partilham. Paul Valéry notava, relativamente ao imperador francês, que este entrava no futuro recuando, formando para si uma pseudo-linhagem que tinha herdado da Revolução Francesa e da sucessão de “Brutus, Gracos, Públicolas, Tribunos e Senadores”, para continuar no 18 de Brumário, que esta engendrou. Da mesma forma, Boris Johnson entra no futuro às arrecuas, sonhando para si uma linhagem do mais alto que se possa pensar em termos de História da Europa. Churchill, sem dúvida, de quem escreveu uma famosa biografia com laivos auto-biográficos. Mas há mais, para além desta referência óbvia. A sua Londres? É o único sítio possível onde os famosos frisos que Lord Elgin “roubou” da Grécia e que se encontram hoje no British Museum devem estar. Não por um direito que o saque tenha criado, mas porque Londres, segundo Boris Johnson, é a versão contemporânea da Atenas do século de Péricles, cheia de homens livres, indivíduos, no sentido liberal do termo, excêntricos, rebeldes, detratores de qualquer rei. Um Aquiles insubordinado, que não tolera que Agamémnon, rei sem préstimo e sem mérito, lhe roube o merecido prémio – que more e actualmente governe uma monarquia constitucional parece importar pouco a quem vê nos frisos do Parténon um elogio do povo comum, sem deuses ou rei. Boris Johnson imagina-se um cidadão ateniense, lutando contra o espectro de uma tirania que foi a do Império Romano e que agora, para ele, tem na União Europeia a sua última declinação, com a sua avalanche de burocratas e de tecnocratas legislando sobre tudo e mais alguma coisa – e que só pode acabar no barbarismo e na atrocidade. Aliás, no seu delírio histórico-político – mas haverá estadista sem uma dose exacerbada de narcisismo e delírio? –, Boris Johnson reinterpreta a história europeia a partir de um espectro, aquele do Império Romano. O Sacro Império Romano-Germânico, Napoleão, Mussolini, Hitler e, por fim, a União Europeia, mais não foram que tentativas de realização desse antigo sonho de unificação do continente europeu – isso não invalida, obviamente, que tenha escrito uma história bastante elogiosa do Império Romano, que é também um ataque cerrado à União Europeia.

Mas Boris Johnson não é o único, sem dúvida, a dar-se de antemão um lugar histórico, a pretender para si uma tradição venerável. Quando Emanuel Macron, presidente-filósofo, chega ao Eliseu, investe-se de uma aura de grande estadista, legitimando-se através de todos estes ilustres mortos que o precederam. Gosto pelo simbólico, sem dúvida, pela historia magistra vitae, esta história carregada de exemplos que devem reger e imperar sobre as nossas vidas, e cujo momento inaugural se dá com a visita de François Mitterrand ao Panteão em 1981 – e até aí já havia algo de anacrónico. Mas a todo este aparato cerimonioso, a todo este simbolismo que rapidamente se veio a revelar vazio – os gilets jaunes mostraram bem que a auto-legitimação de Macron era apenas enfatuação, e que os mecanismo clássicos de legitimação se encontram hoje numa crise sem precedentes –, Boris Johnson contrapõe o riso escarninho, o político calculista e sem princípios, o bufão em quem ninguém pode confiar. Um sofista – no debate com Mary Beard, de Cambridge, começa por citar Protágoras e a sua famosa frase: “o homem é a medida de todas as coisas” –, um desses gregos que confiavam tudo ao seu poder oratório, que podiam defender qualquer posição na medida em que isso lhes fosse conveniente, e cujo retrato não muito simpático nos foi legado pelo sério e tirânico Platão. Nada dessa seriedade enfatuada, que é tanto mais séria e enfatuada quanto maior é a crise dos meios de legitimação – lembrava um colunista da London Review of Books que a representatividade conseguida por Margaret Thatcher nunca se aproximou de uma maioria e que isso, no entanto, nunca colocou em causa a sua legitimidade.

Um grego, portanto, um descendente de Aristófanes, o comediante a cuja pena inclemente ninguém, nem mesmo Sócrates, escapou, que se dá o direito de ridicularizar tudo e todos – as tiranias não conhecem o humor, e olham com desconfiança quem compromete a sua seriedade. Os seus famosos artigos jornalísticos que hoje tantos acusam de fugir à verdade? Mais não eram do que peças que chamam a si a tradição da comédia, com o seu gosto pelo detalhe tornado excessivo, pela ligeira modificação, pelo aumento ou diminuição do objecto de forma a produzir um efeito humorístico, derrisório. Esta forma de compreensão da democracia, que assenta muito na afirmação do indivíduo – apesar de não o reduzir a um agente económico, como faz grande parte da direita –, encontra-se nas antípodas do supremacismo branco de Donald Trump, de qualquer forma de sonho imperial de uma grande Inglaterra, do racismo e xenofobia de um desses pequenos tiranos que pululam hoje pela Europa, ou de qualquer forma de enfatuação que tantos políticos e tecnocratas, julgando-se senadores de Roma, se fazem valer para se afirmarem – é um espectáculo pouco digno o ar sério que muitos colocam quando começam a ouvir a Ode à Alegria de Beethoven, como se não fosse puramente artificial essa criação da tradição. É certo que este indivíduo e esta liberdade reclamada por Boris Johnson é, também ela, económica – não há qualquer tipo de dúvida de que o seu espaço política é a direita – e que o seu programa político se baseia no típico “wishful thinking” da direita, em que a baixa de impostos para as classes mais ricas leva, por um milagre qualquer, a um aumento da riqueza de todos. Mas, além desse lado económico, há esse espectro de uma tradição venerável onde o indivíduo é objecto de afirmação: excêntrico, subversivo, impetuoso e contraditório, sem respeito por deuses ou reis. Contraditório? Sem dúvida. Mas a não ser que se tenha uma apetência por uma política onde as posições são deduzidas de princípios inabaláveis – dando aquele ar de coerência que muitas das vezes mais não é que fanatismo disfarçado – esta sempre foi a necessidade de posicionamento dentro de uma determinada situação, bastante concreta e singular.

No seu sonho e no seu delírio, Boris Johnson vê-se a si mesmo como investido por uma tradição democrática que remonta à Grécia, que se eclipsa na Idade Média, que ressurge no Renascimento e que, desde o começo da modernidade, permanece numa luta contra qualquer forma de tirania. A direita, pelo menos aquela mais conservadora, desconfia dele – é demasiado cosmopolita, demasiado liberal nos costumes, e não esgrime constantemente os chavões vazios do “marxismo cultural” e da “ideologia de género” –, a esquerda vê-o como um oportunista tresloucado, que apanhou boleia de Nigel Farage para alimentar o seu ego com a presidência do Partido Conservador e Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha, a direita liberal têm receio dos seus planos loucos para um Brexit sem acordo. No meio de toda esta confusão, Boris Johnson aposta tudo na vontade excessiva (se quisermos, conseguimos) e na democracia.