Há muito tempo que os portugueses não se dão ao trabalho de ler um programa partidário. Precisamente porque sabem que os programas existem para não serem cumpridos.
Mas a dois meses de eleições, e depois de reflexões seríssimas em grupos de estudo, lá estão eles na rua para serem objeto de escrutínio.
Como partido de Governo, o PS não fez a coisa por menos e deu à estampa 139 páginas. Quanto ao PSD, foi mais modesto (mas não muito): 121 páginas para conquistar a confiança dos portugueses.
Mergulhei nos dois documentos não como cidadão indeciso a quem entregar o meu voto – está entregue há muito ao meu partido – nem como militante social-democrata. Interessou-me mais olhar para os dois programas, o do PS e do PSD, como presidente de câmara. Qual dos programas é mais audaz na afirmação do municipalismo? Qual deles antevê a cidade como unidade central da organização do Estado, motor da economia e cimento da diversidade social?
A resposta é: nenhum dos dois. Parece-me que nem PS nem PSD ouviram os seus autarcas de maneira atenta na construção destes programas – com a agravante de, no PSD, serem os autarcas os únicos representantes do partido com legitimação eleitoral no exercício do poder executivo. Apesar de apontarem no sentido certo, no sentido da descentralização progressiva de competências, apesar de apontarem desafios concretos e pertinentes, os programas do PS e do PSD ficam aquém da complexidade da realidade. Eles são reflexo de um tempo em que é o Estado, e não a cidade, a unidade política fundamental. Como já aqui dei nota por diversas vezes, sabemos como isso está a mudar e como a cidade se assumiu como unidade política dominante (do ponto de vista cultural, demográfico, social, económico e científico) no séc. xxi – um mundo crescentemente metropolocêntrico.
Como autarca, o que vejo? Numa análise rápida, o PS menciona a palavra “autarquia” 23 vezes, contra 21 do PSD. Mas o PSD, ao contrário do PS, tem um capítulo dedicado “Política Integrada para as Cidades e Áreas metropolitanas” que, bem, foca a necessidade de criar uma “multiplicidade de centralidades” – aquilo a que tenho chamado “policentrismo territorial”, como modelo de desenvolvimento do país combatendo as assimetrias. Os dois partidos colocam a tónica na descentralização – reconhecendo os passos muito modestos, ou um acordo “emperrado”, para usar a expressão do programa do PSD, dados nesta legislatura. Perdeu-se mais uma oportunidade para mudar o país nos últimos quatro anos. Mas nos próximos quatro é que é. Pelo menos é o que nos prometem PS e PSD.
No capítulo financeiro, ainda que não o digam taxativamente, socialistas e sociais-democratas coincidem na necessidade de respeitar a mais incumprida de todas as leis: a Lei das Finanças Locais. O PS quer “aumentar gradualmente a participação das autarquias locais na gestão das receitas públicas, convergindo até 2025 para o nível médio dos países da UE” e o PSD propõe um novo “Regime Financeiro” que “determine que as receitas autárquicas resultam da participação proporcional em todos os impostos gerados em cada território”. Uma medida bem-vinda e que será corrigida por um fator de coesão.
Do ponto de vista da organização administrativa, saúdo a inclusão de propostas que há muito venho defendendo e para as quais não há razão objetiva para nunca terem saído do papel. A reorganização territorial com a possibilidade de “criação ou agregação de municípios” (PS) é uma boa medida, principalmente se for para agregar, tal como são positivas as mexidas nos métodos de eleição e competências das CCDR e Áreas Metropolitanas (PS). Palavra para a reforma do governo das autarquias, proposta pelo PSD, de mandatos de cinco anos para os presidentes de câmara, num máximo de três, e alargamento da limitação de mandatos aos deputados da Assembleia da República, assim normalizando uma injustiça do nosso sistema político.
Numa análise mais fina, como autarca de Cascais, vejo outras coisas. Coisas que me preocupam e outras que me orgulham.
Quanto às preocupações, espanta-me que o PS não tenha firmado um compromisso para a Linha de Cascais. Há “10 mil milhões” para investimento, em serviços públicos e infraestrutura, mencionam-se os sistemas de metro de Lisboa e do Porto, bem como a mobilidade suave do Mondego, como alvos prioritários. Mas para uma das mais depauperadas e obsoletas estruturas do país, nem uma palavra. O cenário é ainda mais grave se à omissão do PS juntarmos a incapacidade de as Infraestruturas de Portugal apresentarem candidatura aos fundos europeus. Uma promessa feita tanto pelo anterior como pelo atual ministro das Infraestruturas. Quanto à Linha de Cascais, não há mas nem meio mas. É tempo de cumprir as promessas. É tempo de agir.
Quanto aos motivos de orgulho, vejo que o país que tanto PS como PSD projetam para 2023 é aquele em que, em certa medida, Cascais já vive.
O PSD promete uma ambiciosa política de habitação e até a possibilidade de autarquias tomarem posse administrativa – a valores de mercado – de espaços devolutos. Cascais vem defendendo isto há muito. Reconversão das frotas autárquicas e do Estado para veículos não poluentes? Já fazemos. Reforço da igualdade de género na política local? Cumprimos. Colocar as autarquias na linha da frente do combate à violência doméstica? Cascais tem dado o exemplo da proteção dos mais frágeis.
O PS quer dar novo fôlego à cidadania replicando o Parlamento dos Jovens em contexto autárquico. Bom, mas em Cascais temos o maior Orçamento Participativo do país e fomos pioneiros no OP Jovem e numa série de iniciativas que nos colocam na vanguarda dos processos de reinvenção democrática local. E que tal “desenvolver com autarquias uma nova geração de Contratos Locais de Segurança, que concretize uma estratégia de policiamento de proximidade”? Cascais há anos que faz isso. Integração de migrantes? Demos sempre resposta quando chamados a apoiar os mais frágeis. Cogestão de áreas protegidas? Estamos a trabalhar nisso. Georreferenciação de bebedouros? Bom, isso ainda não temos, embora também já tenhamos declarado guerra ao plástico nas nossas praias e nos edifícios públicos.
Mais do que a política fina, as câmaras são hoje atores de primeira linha nas funções tradicionais do Estado social (educação, saúde, habitação, apoio social) e o grande motor das principais transformações na mobilidade ou na economia da quarta revolução industrial. É esse estatuto de paridade com o Estado central que os partidos ainda não viram ou não quiseram ver. Bastava aos ideólogos dos programas terem envolvido os autarcas para perceberem que o mundo mudou.
Escreve à quarta-feira