Justiça e estabilidade democrática


A maior parte das propostas de reforma da arquitetura constitucional e das leis que dão forma às instituições da República esconderam sempre mal a vontade, mais ou menos explícita, de iniciar processos de retrocesso social, de maior ou menor fôlego.


As democracias precisam de instituições sólidas, credíveis e estáveis para poderem fomentar um continuado progresso social, só assim se legitimando aos olhos dos cidadãos.

No Portugal de Abril, estabilidade constitucional e institucional foram sempre condições essenciais para favorecer todos os passos seguros e popularmente apoiados em direção a uma sociedade mais justa.

A maior parte das propostas de reforma da arquitetura constitucional e das leis que dão forma às instituições da República esconderam sempre mal a vontade, mais ou menos explícita, de iniciar processos de retrocesso social, de maior ou menor fôlego.

Na área da justiça, pesem as permanentes pressões a que o sistema foi continuadamente sujeito, sempre os responsáveis por essa área da governação – qualquer que fosse a sua orientação e filiação política – conseguiram, responsável e pacientemente, salvaguardar as instituições judiciais de planos e mudanças radicais, contrários aos desígnios constitucionais.

Isso lhes devemos.

Foi assim que, com mais ou menos pertinência, jamais se assistiu – mesmo no período da troika – a reformas que introduzissem ruturas drásticas e que não pudessem ser validadas para além do ciclo político que as ditara.

Por essa razão, apesar das normais mudanças políticas, na área da justiça apenas se foram verificando ajustes sucessivos que a experiência vivida das reformas anteriores ditava como imprescindíveis.

Foi o que aconteceu, também, durante o atual ciclo político: foram aperfeiçoados mecanismos antes introduzidos, foram aperfeiçoadas leis já mais antigas e deram-se passos cautelosos, mas seguros e quase sempre consensuais, no melhoramento de áreas extremamente importantes e socialmente sensíveis.

Mesmo no que respeita à delicada matéria dos estatutos das magistraturas, foi possível, com o contributo de uns poucos parlamentares experientes e sabedores – e perdoem-me os que, porventura injustamente, esteja aqui a esquecer que saliente o papel insubstituível do deputado do PCP António Filipe –, atualizá-los e melhorá-los sem fricções de maior ou ruturas desnecessárias e temerárias.

Claro está que, nesta como em outras áreas, teria sido possível progredir para soluções mais avançadas do ponto de vista da democratização da justiça.

Esses outros progressos mais avançados, para serem sólidos, teriam – terão sempre – de refletir, todavia, um projeto progressista, coerente e conscientemente assumido e, sobretudo, teriam de estar apoiados num programa consensualizado no seio de uma ampla e coesa maioria política.

No que à justiça diz respeito, uma tal maioria pode inclusive vir a ser mais dilatada do que a que deu forma à solução política atual.

Durante muitos anos, e até à emergência dos chamados processos mediáticos que buliram com muitos interesses relevantes, foi assim que sucedeu.

Em caso algum, todavia, tal maioria pode prescindir do apoio das forças que contribuíram para a atual solução política.

Isto, sob pena de uma rutura drástica no sistema constitucional e institucional vigente e no bloco social e político que sempre lhe deu apoio e o legitimou.

Não parece, pois, curial nem minimamente útil procurar soluções pontuais e puramente emblemáticas que, de algum modo, transtornem a coerência até agora alcançada no seio do atual sistema constitucional de justiça.

Ante a emergência dos populismos, nas presentes circunstâncias e à margem do consenso político atual, mexer, pouco que seja, no sistema constitucional de justiça parece ainda mais perigoso para a legitimação do regime.

 

Escreve à terça-feira