João Miguel Tavares: “Alguém tem dúvidas do que são os ajustes diretos em Portugal”?

João Miguel Tavares: “Alguém tem dúvidas do que são os ajustes diretos em Portugal”?


Diz o que 10 de Junho não lhe subiu à cabeça, mas está farto de tanto holofote. JMT fala do valor que dá à palavra e do tiro ao lado na análise da geringonça e da profecia do diabo.


Foi escolhido por Marcelo para presidir às comemorações do Dia de Portugal e não escapou à polémica – antes, durante e depois. Agora, diz que a publicação de um livro com os discursos e outros textos é o fechar desse capítulo. O “deem-nos alguma coisa em que acreditar” foi populista? Subiu-lhe à cabeça? Responde às críticas e diz que prefere as explicações simples e não as teorias da conspiração. Fala da força da palavra e de como a valoriza, das homilias às crónicas. Dá a mão à palmatória por não ter visto o alcance da geringonça e o atraso do diabo e fala do combate que não está a ser feito contra a corrupção – e como é aí que vê “caminho aberto” para o populismo.

Ainda está na ressaca do 10 de Junho?

Um bocadinho. A edição do livro é uma espécie de fechar de ciclo. Estou um bocadinho farto de mim próprio. Foram seis meses que acabaram por ser muito intensos. É muito holofote em cima de mim. Depois também tenho a mania de polemizar, escrevi sobre isso várias vezes no Público e é importante uma paragem. 

Pesando tudo, como foi a experiência?

Foi ótima, um privilégio. É daquelas coisas que nunca estás à espera que aconteçam na tua vida.

Havia discursos anteriores que o tivessem marcado?

Sou muito crítico dos discursos em Portugal. Não quero ser injusto, os discursos do João Bernard da Costa eram bons e tenho uma grande admiração por ele. Talvez o Barreto esteja mais próximo de mim porque tem uma escrita mais enxuta, mas tirando isso há uma pomposidade na maneira de discursar que acho uma coisa velha e poeirenta. Hoje todos acompanhamos a política lá fora. É uma grande tradição sobretudo na área anglo-saxónica, dos Churchils aos Lincolns.

Neste livro do 10 de Junho tem um texto em que diz que tinha a convicção de que podia construir um bom discurso, “coisa pouco praticada por cá”. Não é um pouco convencido?

Admito que possa soar como convencido, mas para mim parece uma coisa tão evidente que nem entra na categoria de convencido (risos). Qual é o político que faça grandes discursos? Não me recordo, na minha vida, sem ser de ir ler, de ouvir um discurso memorável. Não estou a falar da qualidade dos políticos. Acho o António Costa um político bastante bom naquilo que faz, como achei o Soares, mas não há um discurso.

Os discursos memoráveis estão associados a momentos graves.

E houve-os. O Obama, depois das mortes num jardim de infância nos EUA, tem um discurso tocante. Em Portugal morreram 100 pessoas nos incêndios. Houve algum discurso tocante? E acho que isto é significativo por vários motivos. Por um lado, há uma falta de profissionalismo nas questões técnicas de comunicação política. José Sócrates foi o primeiro e o último que utilizou os telepontos invisíveis, uma coisa completamente banal na política americana. Depois, nem toda a gente tem a habilidade de escrita, mas cá não temos speechwriters. E não se valoriza a importância de contar histórias no discurso, de um contacto mais íntimo, mais emotivo.

Falou-se da importância da empatia nos incêndios. 

Sim. E aí acho bem a rabecada que Marcelo deu a Costa. Em Portugal liga-se muito a afetividade a algo negativo, quando procurar uma ligação mais próxima às pessoas que te ouvem é um valor importante em política. Uma coisa básica no discurso de qualquer político americano é ir procurar um exemplo concreto, a mãe que perdeu o filho, e a partir daí exteriorizar uma ideia sobre o sistema de saúde. Cá moves-te sempre a um nível abstrato na ligação com os cidadãos. 

Tem um discurso preferido?

Não acho que tenha. Há o Gettysburg Address do Lincoln. Vivi muito o Obama. Foi a primeira vez que vi um político vivo a discursar e disse “uau”. Ficava comovido. Às vezes chorava. Também me comovo com facilidade, então à medida que envelheço cada vez me dá mais para isso. Mas uma das minhas preocupações era essa, mobilizar pela palavra. Vem muito de outra coisa que também está presente no meu discurso que é a tradição cristã do pregador, que ainda existe muito nos EUA.

Foi retratado num cartoon a pregar. 

Apanhou bem esse lado do sermão. Há uma linha contínua entre aquilo que é o sermão cristão e a política. Obama é claramente influenciado por isso, tem um lado quase de pastor e acho que isso tem força ainda hoje.

A pessoa que faz o sermão está num patamar superior, de iluminação?

Não. É suposto um pastor ter pensado mais naquilo que está a dizer do que tu e fazer daquilo a sua vida. E é por isso que ainda hoje gosto imenso de bons sermões.

De boas homilias?

São uma coisa incrível.

Tem um padre preferido?

[risos] Sim. Cá em casa até ajudamos a animar uma missa, vamos cantar.

Quem é?

Chama-se António Pedro Monteiro e dá missa em Santa Marta. Esta minha relação com a homilia é muito independente de achares que Deus existe ou não. Tudo somado, sou estruturalmente ateu, mas reconheço, além de uma grande utilidade para a minha vida daquilo que está nos Evangelhos, que é importante cuidar desse lado espiritual, muito abandonado pela secularização. E é uma pena: acaba por ser tratado de maneira superficial e as pessoas aderem a coisas muito frágeis. Na Bíblia tens milénios de espiritualidade e de pessoas a pensar o sofrimento, o amor. É um depósito de sabedoria condensado e é daí que retiro uma grande utilidade. Entristece-me a atitude mata-frades que as pessoas têm em relação a isto. Acho que a Bíblia devia ser ensinada nas escolas numa perspetiva laica. É um pilar da nossa cultura. Hoje ou tens a perspetiva religiosa ou não tens nada.

Conta no livro que treinou o discurso do 10 de Junho à frente da família e a certa altura a sua mulher estava preocupada de o ver comovido…

Bastava ficar com a voz embargada e aquilo ia ser uma treta. Li muitas vezes. Se eu queria fazer um bom discurso, lá está, há regras: tem de falar de ti, de histórias concretas, partir do particular para o geral. Era uma oportunidade de falar das coisas que me preocupam mas quis fazer um a espécie de discurso pré-ideológico, que viesse muito do meu coração. Só que ao falar de coisas muito íntimas, numa ocasião daquelas, em que estás a contar a história da tua vida ao país… Tinha imenso medo. E havia ali um lado de Hollywood. O discurso não era só na minha terra. O palanque foi colocado num sítio que eu atravessei a minha vida toda.

Teve influência nisso?

Nada. O meu papel nas cerimónias foi fazer os discursos. Tudo o resto até está mais nas mãos das Forças Armadas do que na Casa Civil. A primeira vez que fui a Belém já estava decidido o sítio. E é impressionante: as tropas desfilaram ao longo do percurso que eu fazia para a escola. A varanda da minha casa dá para aquilo tudo.

Qual é a memória mais antiga que tem ali?

Naquele caminho a coisa de que me lembro mais era um cão que me vinha sempre ladrar, não é uma memória especialmente agradável. 

Ia sozinho para a escola?

Sim, nunca me lembro de ir acompanhado. Aliás, foi uma coisa que fiz aos meus filhos: a partir do 5º ano começam a ir sozinhos para a escola. Desenrascam-se. Fazia aquele caminho quatro vezes por dia, íamos almoçar a casa. Aquele caminho representa a minha infância em Portalegre e isso sim é uma coisa brutalmente marcante.

Muito diferente do que teria sido em Lisboa?

Hoje através da internet tens a acesso a muitas das coisas que as pessoas têm cá, mandas vir os livro da Amazon, há a Netlfix, etc. Naquela altura não. Para ver um filme português tive de vir para Lisboa.

E onde arranjava os livros de BD?

Chegavam alguns à papelaria/tabacaria. Mas cinema ou era a RTP ou então só havia cinema ao fim de semana e passavam os Schwarzenegger e os Stallone. Não havia a menor capacidade de culturalmente te desenvolveres em pé de igualdade. A minha cultura e da minha geração é muito feita a partir de jornais, dos livros que chegavam pelo Círculo de Leitores, das Selecções Reader’s Digest.

Além dos ensaios em casa, chegou a ir a Portalegre para perceber o efeito?

Não ensaiei, mas fui lá à noite ver o palanque. Depois o discurso nem foi bem lido, ainda não vi tudo. Gosto muito de me ler a mim próprio mas nunca tive gosto de me ver na televisão, penso sempre que é aquele deficiente da fala e aquele parvo que nem sabe articular as palavras.

Tem um complexo com os r’s e os g’s?

Não é complexo, é uma coisa que gozam comigo desde que sou pequeno. Hoje  gozar com os miúdos é uma coisa terrível. Há uma canção do Johnny Cash de que gosto muito, A Boy Named Sue. É a história de um tipo que tinha um pai muito violento e o pai chama-lhe Sue, dá-lhe o nome de uma miúda. O pai sai de casa e o miúdo tem de passar a infância toda com as pessoas a chamarem-lhe Sue, à pancada. Mais velho, persegue o pai para se vingar e o pai diz-lhe que, como não ia lá estar enquanto ele crescia, sabia que ele tinha de “get tough or die”, ou enrijeces ou morres. Sempre gostei da canção, acredito que as coisas que não te matam tornam-te mais forte e há um lado de enrijecer que faz parte da adolescência e que sempre tive.

O cabelo foi outro trauma?

Foi uma queda de cabelo muito esquisita, uma espécie de doença auto-imune. Mas estou-me nas tintas, a aparência não é uma coisa a que ligue especialmente. Sou daqueles gajos que acha que o segredo desta vida é fazeres um caminho para a morte pacificado e feliz com a vida que vais levando. Respeito muito o envelhecimento, irem-te caindo as peles. Adoro cabelos brancos. Tenho uma discussão com a minha mulher para ela nunca pintar o cabelo, temos um acordo, ela não pinta e eu não deixo crescer a barba. Para mim é uma questão filosófica-existencial de não esconderes a tua idade. Nada contra pintar de roxo quando és novo. Mas pintar para esconder a idade acho um ato existencialmente errado.

Estava nervoso no dia do discurso? 

Não. Não sou de ficar nervoso nesses palcos, fico mais se tiver de começar a falar com alguém que não conheço bem, tenho mais essa timidez. É um gosto por palco, talvez.

Gosto por protagonismo?

Dito dessa maneira… mas sim. As pessoas na nossa profissão têm gosto por protagonismo porque está associado a sucesso e sucesso está associado ao dinheiro que ganhas. Mas gosto muito de passar na rua invisível, sou um voyeur. E ali o discurso estava escrito, era ler.

Portanto quando Marcelo lhe ligou, não seria isso a fazê-lo ter dúvidas.

Pedi-lhe tempo para pensar só porque o convite era muito desconcertante.

Conta no livro que foi uma chamada de um número que não conhecia.

Estava aqui em casa, naquela hora dos banhos, foi para o atendedor. Estranhei porque hoje ninguém deixa mensagens no atendedor. E de repente era o Marcelo. Falámos e pedi para pensar. Tinha a consciência que o meu perfil não encaixava ali, pela idade, pelo currículo, por tudo. Depois habituei-me à ideia de aquilo ser um 10 de Junho normal para pessoas normais. E depois disseram logo: tu não és uma pessoa normal, estás-te a armar, já fazes parte da elite. Não faço.

Acha mesmo que é uma pessoa normal?

Acho. Evidente que sou uma pessoa normal com um estatuto privilegiado, uma pessoa normal não escreve três vezes por semana no Público, não vai à TV. Muita gente atirou-me isso à cara mas respondi com uma coisa que para mim é muito verdadeira: há uma grande diferença entre teres uma determinada profissão e teres uma determinada mundividência. Podes desempenhar a minha profissão e não te moveres nesses meios e eu não me movo. Sim, tenho o telefone do primeiro-ministro e do Presidente da República, não nego esse acesso.

Então em que meios não se move?

Acho diferente moveres-te numa bolha de intelectuais, escritores, de uma elite e esse não é o mundo em que me movo. Por várias razões, desde logo porque fiz muito filhos e tenho uma vida muito nuclear. É muito trabalho/casa. Depois porque concluí rapidamente que, para exercer bem a minha profissão, não podia frequentar esse mundo. Se me metesse no mundo dos jantares, do pequeno almoço no Ritz, de muitos telefonemas, não escreveria da mesma maneira. E há muita gente que diz: conheceste o PR, tens a mesma liberdade? É uma ótima pergunta e serei eu a ter de demonstrar.

E tem?

Claro que influencia mas tenho de ter.

Usando a sua metáfora de ter sido o Eder do 10 e junho, seria como o Eder escrever contra o Fernando Santos?

Já escrevi coisas em relação a amigos que sabia que iam ficar sensibilizados. Acabas por contactar com pessoas que chegam a cargos de poder, o Pedro Lomba, o Miguel Poiares Maduro.

Aí não é mais difícil de separar do que quando está grato, como já demonstrou em relação a Marcelo?

Faço-lhe esse agradecimento até no livro, mas não estou a achar que me fez um favor absolutamente extraordinário pelo qual deva estar grato a vida inteira. Não tenho essa relação, acho que fiz o meu melhor, não o envergonhei. Não tenho essa dívida de ele me ter escolhido e eu não ter estado à altura.

De todas as reações, houve alguma que o tenha deixado mais comovido?

As reações das pessoas comuns foram de uma generosidade incrível, não estava à espera. Recebi mensagens de amigos, sim. Houve um sms da Ana Mafalda Inácio, uma jornalista que não via há muito tempo, e que me tocou porque percebi que tinha funcionado. Já estava no helicóptero para Lisboa e no momento não tens muito noção. No fundo foi dizer-me ‘revi-me naquele discurso’. É o meu percurso, também venho dali. Houve essa reação geracional, pessoas nos 40, 50. Os filhos começam a crescer e começam a sentir que vimos de uma geração que viveu melhor do que os pais, os pais melhor do que os avós, mas de repente não temos a certeza que isso venha a acontecer aos nossos filhos. E depois esse lado de vir do mundo rural para a grande cidade. O mais tocante do discurso foi as pessoas reverem-se nele.

Marcelo leu os textos em antecipação?

Falei pouco com ele. O do 10 de junho acho que leu porque o discurso dele tinha algumas passagens que vinham na sequência do que eu tinha dito. O de Cabo Verde não sei, não foi tão visto cá mas foi bastante mais sensível e causou ali algum momento de desconforto.

Falou da integração pouco integrada dos cabo-verdianos em Portugal e da suposta ideia de que o colonialismo português foi mais suave. Foi um discurso mais de esquerda?

Se achares que a igualdade é só uma preocupação de esquerda.

O outro punha a tónica na meritocracia, era mais liberal.

Liberal sim, mas quando há bocado falava da doutrina social da igreja e da importância disso na minha vida, é uma doutrina que te diz que olhas pelas pessoas mais desprotegidas. É nisso que eu acredito. As pessoas muitas vezes interpretam-te mal. Quando digo que quero mais liberalismo e um Estado que não esteja tão presente na minha vida, não é para as pessoas viverem pior, pelo contrário. É porque acho que tens um Estado rentista que faz com que o dinheiro dos impostos e de todos seja agarrado por uma classe que vive na dependência do Estado e dos partidos e o dinheiro não vá, como devia, para as pessoas mais frágeis na sociedade. No meu discurso em Portalegre já falava das pessoas de Cabo Verde e do elevador social não funcionar. Mas não queria que fosse marcadamente de direita ou de esquerda. 

Era pré-ideológico nesse sentido?

Sim. O discurso sindical, ou até às vezes o do PCP, é um discurso de proteção de uma classe média. Não quer dizer que não haja medidas, mas quando olhas para o mercado laboral, as pessoas mais desprotegidas são os desgraçados dos miúdos que entram ali com 20 e tal anos e ficam a falsos recibos, sem proteção laboral. Essas são as pessoas desprotegidas, não são as pessoas que apesar de tudo têm um lugar nos quadros e alguma estabilidade e que se podem dar ao luxo de fazer greves. Quando falo dos descendentes e das pessoas de Cabo Verde, são realmente os mais desprotegidas. Que isso muitas vezes não seja ligado a um discurso de direita, sim, não é. 

É uma direita a deslizar para a esquerda?

Acho que há poucos liberais no sentido em que eu me considero liberal. Diz-se liberal e a pessoa é de direita, mas eu sou liberal em tudo, inclusive nos costumes. Não me passa pela cabeça dizer como é que as pessoas devem levar a vida delas. Mas isto hoje em dia é extremamente complexo. Com as questões das políticas de identidade, eu que sempre fui liberal, estive do lado do casamento dos homossexuais, acabo por estar a ser encostado à direita por não querer ir tão longe. A questão do racismo é uma ótima questão. É muito difícil olhar-se para os discursos, sobretudo o de Cabo Verde, e não ver que são profundamente antirracistas, mas depois acho a questão das reparações uma estupidez. Tendo a pele negra, tanto podes ser filho de um escravo como de um esclavagista. 

E em relação às quotas?

Tenho mais dúvidas, não tenho uma posição de princípio contra, mas não vejo como seriam feitas na prática. Pela tonalidade da pele? Não é só a cor da pele. Dois irmãos podem ter cores de pele diferentes. É a pobreza. Como se legisla? Mas quando se levantam este tipo de objeções é logo dito que és racista ou homofóbico.

Portanto onde está no espetro?

Acabo por ficar no mesmo sítio. Muita gente diz que se ao longo da vida não evoluis é porque és estúpido, mas não evoluí. Tenho 46 anos e as minhas convicções são iguais às de quando tinha 12 ou 13, em tudo. Depois o mundo à tua volta vai variando imenso, está-se numa altura em que as coisas são muito extremadas e depois em certos assuntos parece que estás na esquerda, depois parece que estás na direita, só porque não saíste do mesmo sítio.

Como é que se opina com tanta assertividade sobre tudo?

Sobre qualquer assunto sobre o qual tu escreves há mil pessoas que sabem mais do que tu, nem é mil. Havia uma solução que seria dizer que a atitude mais prudente é estar calado e deixar as pessoas que fazem mais do que tu falarem. Não é assim que funciona o espaço público. Não falo de uma posição de autoridade. A minha escrita é a escrita de um tipo banal a dizer o que pensa sobre o mundo que está à sua volta. Convém teres alguma informação, porque tens uma certa responsabilidade social no sentido em que tens um palanque mais vistoso, mas esse palanque é competitivo. Se só estiveres a dizer parvoíces, és corrido. Se ninguém te ler, és corrido. Mas para mim isso não é intimidatório porque não sinto esse peso, sou simplesmente um cidadão a falar. Voltamos ao que para mim é essencial: a palavra. A crónica é uma forma de tu juntares palavras que fazem um sentido que para ti é útil. O que sustenta um cronista como eu, a escrever três vezes por semana, não é a qualidade das minhas ideias, é a qualidade da minha escrita e as pessoas estão muitas vezes enganadas quanto a isso. A assertividade faz parte da qualidade da escrita. Depois é personalidade, sempre gostei de dar opinião sobre tudo. Não escrevi sempre sobre política, mas desde que comecei no jornalismo fiz crítica, de música, BD…

Viver da opinião é um privilégio?

É o que me paga as contas, sim. Mas às vezes isto não tem a ver com nada especial. O Governo Sombra foi mais um  golpe de sorte que outra coisa. Os textos no Público não, acho que aí há um trabalho de mérito da minha escrita. Agora o Governo Sombra nasce de um convite do Carlos Vaz Marques que junta estas três pessoas, pura sorte. Tem pouco a ver com mérito, até porque não acho que faça aquilo bem. Não sou bom em televisão como sou a escrever.

Encontrar o registo entre o humor e o comentário político foi pacífico?

Sempre valorizei o humor, mas não foi uma coisa estudada. Os três somos brincalhões, pouco dados a ofendidismos, mas aquilo é a força do Ricardo [Araújo Pereira]. 

Aprenderam com ele?

Isso queria eu. Não se aprende, o Ricardo é um geniozinho a fazer aquilo. Ele diz que é trabalho mas não, nasceu com ele. Tem um olhar diferente quando olha para as coisas, como o Cristiano Ronaldo tem mais força ou velocidade e depois com certeza há um lado obsessivo de trabalho. É uma forma existencial de olhar para o mundo e por isso é que ele é tão bom e fica a quilómetros de distância de qualquer outro em Portugal. É um intelectual, embora talvez o negasse, mas é alguém que pensa genuinamente sobre a sua profissão. E foi essa singularidade, essa força, que fez com que o programa descarrilasse um bocado e hoje seja mais visto como um programa de humor do que de comentário político.

Não sente que vos levam mais a sério do que quando começaram?

Não sei, acho que o único problema que o programa pode ter é tendermos a estar em acordo. Tem a ver com fases políticas. Na altura do Passos, eu estava muito mais isolado na defesa daquilo que estava acontecer, mas verdadeiramente a política interessa a todos mas não é uma coisa pela qual qualquer um de nós morra de paixão. A única paixão do Ricardo, além da família e do Benfica, é a liberdade de expressão, que é algo em que os três concordamos. Como é um assunto que se tornou preponderante, muitas vezes estamos os três a repetir-nos.

As últimas semanas têm sido turbulentas nas suas crónicas. Está mais ao ataque? 

Mais uma vez, não fui eu que mudei assim tanto, sempre polemizei sobre 500 assuntos. Simplesmente quando fazes o discurso do 10 de Junho de repente há mais gente a olhar para ti e começam a dizer que agora estás sempre a justificar-te, só falas de ti.

Que o 10 de Junho lhe subiu à cabeça…

Sim.

E subiu?

Não, subiu agora!

Não teve nenhum amigo próximo a dizer-lhe isso? A Teresa não lhe diz “menos”?

Sim, muitas vezes diz-me “menos” e esse é talvez um dos papéis mais importantes de viveres com uma pessoa, ela estar constantemente a pôr-te no teu lugar. Hoje em dia até valorizo muito mais os conflitos. Sempre fui muito de discutir. Muitas vezes achas que a discussão num casal é algo que deve ser evitado, que é mau sinal, não acho nada. É teres constantemente uma pessoa ao teu lado que te diz que vales menos do que aquilo que tu achas, que não fazes sempre tudo bem, “não estejas só virado para o teu umbigo”. É uma lição permanente de humildade e isso é para mim é fundamental.

Mas sente que ficou mais vaidoso?

É uma pergunta tramada porque só dizer que não parece que estás a ser vaidoso, mas não sinto isso. Tenho a vaidade de achar que tenho uma consciência precisa daquilo que é o meu valor. Na maior parte das coisas que faço na minha vida pública não acho que seja assim tão bom em praticamente nada. Há algumas coisas em que acho que sou perfeitamente mediano, por exemplo na televisão. E há outras coisas que fazes que nem são tão visíveis. A coisa que acho que até hoje fiz com mais jeito foi editar, era um editor acima da média.

Um bom chefe?

Sim, vaidosamente acho que era um bom chefe. Tens de gostar das pessoas, preocupares-te, não só numa perspetiva humana mas porque profissionalmente é a melhor maneira de trabalhar e de elas darem o seu melhor. As pessoas, para se defenderem, metem uma capa de cinismo, é-se muito desconfiado em relação aos outros e isso eu não sou.

Fruto de crescer num meio pequeno?

Acho que é mesmo uma questão de hormonas. Há pessoas que o primeiro contacto é estar de pé atrás e eu não sou assim, estou sempre à espera que as pessoas mostrem o melhor delas. Não significa ser totó, nem todas as pessoas são encantadoras, mas acho que até era o Obama que dizia que 90% ou 95% das pessoas tentam agir bem na vida delas, fazer o que é certo. Tenho muito essa visão otimista da humanidade.

Uma das críticas que lhe fizeram foi ter feito um discurso populista. Era?

Nem consigo perceber, acho absurdo.  Também disseram salazarista. Mesmo quando falo de “nós e eles”, que todos disseram que era populista, era uma constatação, estava a falar do que as pessoas sentem, dizia que era preciso aproximar as linhas. Falava de corrupção e muita gente quer convencer-nos de que falar de corrupção é populismo. É o maior favor possível que podem fazer aos populistas. A corrupção é um problema seríssimo, devia estar a ser tratado como tal. Agora se dizem que não, que a justiça tem de atuar, então boa sorte. É um problema gravíssimo que não está a ser tratado e a maneira que usam para não tratar é dizer que é populismo. Isso sim é caminho aberto para os populismos. Ainda agora o estamos a ver.

Neste novo capítulo do family gate?

Alguém tem dúvidas do que são os ajustes diretos em Portugal? A velha corrupção, aqui tens uma mala de dinheiro, isso acabou. Não dá para passar um cheque, os bancos têm alertas, então o que fazemos: o Manel adjudica o negócio, 70% é o custo do serviço e o resto fica para a família, fica nos amigos.

Estranha a posição de António Costa?

Acho que os partidos sabem como as coisas funcionam e não sabem como podem funcionar de outra maneira. É a maneira como a estrutura partidária em Portugal está montada. Era preciso alguém chegar ao topo e desmontar aquilo e não vou negar que é um trabalho dificílimo. Costa não tem um pingo de caráter reformista nele. Vai havendo pequenas alterações legislativas mas acho que não se querem melindrar, como se viu por aquela tristíssima comissão de transparência [no Parlamento]. Existe uma resistência gigantesca a fazer alguma coisa porque uma percentagem significativa das pessoas na AR são lobbistas e depois adjudica-se aqui e ali e há uma gigantesca quantidade de pessoas que vive à custa disso. Devia ser uma conversa séria mas o que se ouve mais vezes é o “isso é populismo”. Fala-se se enriquecimento ilícito, de delação premiada e é populismo.

Um dos textos mais recentes sobre o tema foi assinado por Pacheco Pereira, texto que rebateu a dizer que parecia ter sido escrito a pensar em si sem o referir.

Sim, está sempre com esse tipo de acusações.

É uma pessoa que admira ou mudou de opinião?

Uma coisa é independente da outra. O facto de eu polemizar com pessoas no espaço público não quer dizer que não tenha admiração por elas. Tenho admiração intelectual pelo Pacheco Pereira, é uma pessoa que leio sempre, muitas vezes concordo, muitas discordo. Não salto de gostar ou não gostar de uma opinião para um mau ou bom caráter.

Tem o telefone dele?

[risos] Não. As pessoas de que disse que tenho é por dois epifenómenos, um foi este convite de Marcelo e o outro foi por causa do babysitting dos miúdos [O episódio em que Costa tomou conta dos filhos de JMT depois de um artigo em que se queixou da tolerância de ponto para a visita do Papa]. E aí muitas pessoas disseram como é que foste fazer isso? Eu acabo por gostar do António Costa, apesar de o criticar muito, porque ele tem um lado de humor e fairplay. Podemos trocar uns sms, mas não tenho este tipo de relações. 

Alguma vez se sentiu instrumentalizado, seja nesse episódio em que Costa tomou conta dos seus filhos ou no convite de Marcelo?

No caso de Marcelo, não acho nada. No caso de Costa, sou muito prático. Se houvesse alguma espécie de aproveitamento, havia das duas partes, da minha parte seria aparecer como um gajo importante aos olhos da opinião pública. Como não gosto de explicações complexas e sou pouco dado a teorias da conspiração, acho que ele decidiu fazer uma piada porque achou graça ao meu texto e eu achei piada aceitar.

Era um dos críticos/céticos da geringonça. Quem o surpreendeu mais?

A geringonça em si, nunca acreditei que durasse o tempo que durou. É mais uma razão para não ser político. 

Foi um erro como comentador?

Foi. Olhando para trás não me costumo enganar em relação ao caráter das pessoas, até hoje acho que não me enganei. 

Fala de Sócrates?

Não só, lá está. O meu trabalho não merece que alguém vá fazer uma hermenêutica mas, se fizesse, perceberia que não foi só Sócrates. Aliás, nos primeiros dois ou três anos, como quase toda a direita, estava mais vezes a elogiá-lo do que a criticá-lo. Teve coragem, vontade reformista, de atacar lobbies. Mas quando percebi quem ele era… Está tudo maluco. Aí não consigo perceber até hoje que o país não tenha percebido mais rapidamente. Mas também bati no Santana Lopes que nem um doido. Protegi o Passos, no sentido em que achava que o trabalho dele era meritório, e não estou arrependido. E ando há quatro anos a dizer à direita: atenção, António Costa é menos idiota e menos mau do que vocês pensam. Digo aos meus amigos de direita que não, não é um Sócrates b. É competente naquilo que faz e aí também não me enganei. Não acho que me engane em relação ao caráter, mas nem sempre avalias com correção a situação política. Aliás defendi que Cavaco não devia ter viabilizado a solução tendo em conta que os acordos apresentados não era nada.

Foram?

Isso na verdade não foram nada porque não fizeram mais nada a não ser reversões. Ou seja, em termos práticos, foram quatro anos parados no sentido estrutural e económico, que não nos devíamos dar ao luxo de desperdiçar. Continuamos a ver os outros países europeus passar por nós, já estamos aí no 19º lugar em PIB per capita. Numa perspetiva política, houve muita coisa que mexeu. Mas no fundo isto para mim é ficar satisfeito com a mediocridade. Sonhava-se há 20 ou 30 anos ir para o pelotão da frente e agora conformas-te em estar no pelotão de trás, o que faz com que os melhores “bye!”.

Há menos pessoas a emigrar.

Não são os números, são os melhores. É evidente que, se tens uma grande crise, vais. Mas é diferente ir para engrossar as melhores universidades ou ir para os melhores cafés. Mas sim, em relação à geringonça, enganei-me. E é mérito do António Costa e do Pedro Nuno Santos como negociador.

Também já disse que é uma figura a que acha graça.

São coisas puramente intuitivas. O Pedro Nuno Santos fala pela cabeça dele e isso é extremamente raro num político.

Refere-se ao apelo recentemente para pôr gasolina antes da greve?

É um exemplo. Esta originalidade na política, ouvir um político dizer uma coisa inesperada, necessita de uma dose de autoconfiança grande. Têm vontade de chegar lá pelo seu caminho. Também há isso à direita, o Miguel Morgado. 

E o diabo afinal apareceu ao PSD?

Aí está outra coisa em que me enganei, pensava que o diabo ia aparecer mas não neste sítio. Não percebi a força da geringonça nem a habilidade do Mário Centeno. Duas falhas minhas como colunista. O PSD, mesmo assim, é mais fácil de perceber, não tem rumo, não sabe o que quer e Rui Rio é péssimo. A história do banho de ética… isto mata um tipo. Não podes anunciar banhos de ética e querer esconder quando aparecem os primeiros casos. Não estou certo de que, se o Passos Coelho estivesse, as coisas iam ser muito diferentes. O PSD podia ter 20% e saber para onde ir. O problema é que vai ter 20% e não faz patavina.

Não há nada que possa levar a um resultado improvável?

Não sei. O que sei é que há sondagens que mostram uma reconfiguração do sistema partidário e ninguém está a ver.  O PAN de repente é o quarto maior partido nacional. Acho que as eleições em outubro podem ser menos previsíveis do que pensamos, mas é evidente que Rui Rio não tem hipótese nenhuma e Costa jamais se iria unir a Rio Rio.

Como vê o fenómeno do PAN?

É um fenómeno fascinante. Cresceu nas costas de toda a gente, a comunicação social não fez nada pelo PAN. Quando o descobre, vai ver o programa e começa a criticar incoerências, o espaço mediático bate no PAN, até porque há um lado animalista e acho que aquilo não é um partido de verdes habitual. Tem um lado meio loony. Achávamos que eram as velhinhas da avenida de Roma, a quem só restavam os gatos, que estavam a votar no PAN e não. Significa que são as velhinhas, mais uma juventude que aí. E de repente há um partido de agregador do descontentamento da sociedade. E de repente está a roubar votos ao PS.

É previsível a geringonça PS/PAN?

Se der a matemática, acho que é de caretas. Entre PAN e Bloco, o PS certamente escolhe o PAN.

Daí as críticas à esquerda, de comentadores como Daniel Oliveira?

Não é só o Daniel Oliveira e há ali de facto um lado muito irritante. Não me identifico nada com o lado animalista. Mas nós em Portugal somos tão originais que, da mesma maneira que temos o PCP como o último partido marxista do Ocidente, surge-nos um partido ambientalista à boleia de um partido animalista. Talvez ao crescer se torne mais ambientalista, agora um partido que sonha com uma igualdade de direitos entre humanos e animais parece-me problemático.

Diz alguém com dois gatos.

E que não gosta deles.

Então percebe-se…

[risos] Não, coitadinhos. A Teresa é alérgica, mas todos temos a noção do cumprimento do nosso dever. Concluímos em família que o nosso dever era ficar com os gatos que eram da vizinha que os adorava e já se foi. Portanto ficámos com os dois gatos, mas por causa das pessoas, por respeito à memória de uma pessoa para quem estes gatos eram tudo. Iam ser separados.

A direita vai demorar a recompor-se ou chega uma legislatura?

Acho que não, precisa do diabo. E esse é o problema. A direita pôs-se nesta posição de dizer que precisa do diabo. Mas o diabo vai voltar, agora quanto tempo é que demora…

Não vê nesta preocupação com as questões orçamentais um novo PS?

Esse é o mérito de Centeno e Costa. Perceberam que se a esquerda continuasse a pôr a ideia da responsabilidade orçamental como exclusivo da direita estavam lixados.

Será um escudo mesmo que o diabo venha.

Depende. O diabo também não vem já. O PS vai fazer tudo o que for preciso para que o diabo não venha? Enquanto lá estiver António Costa, desconfio que sim. Quando vier outro, não sei. Mas acho que o PS também deveria ser responsabilizado pela sua falta de ambição. É o que se nota nestes quatro anos: eu não vou mexer nas pratas porque se não parto isto tudo. Tem sido a posição de Costa, que acho que é genuína: “não mexo na cristaleira se não isto parte-se”. E não mexe na cristaleira, não é só por não dar jeito, é porque acha que o país não vai lá com golpes reformistas. Podemos ficar presos numa espécie de ramerrame político existencial, sermos o 20º país, mas as pressões vão ser cada vez maiores. Podemos continuar a gerir o dia a dia, esperando que venha uma geração mais empreendedora, que o país se vá safando. Acho que é muito pouca ambição. Tenho os meus filhos a crescer, já a pensar em ir viver lá fora. E o problema é tu achares: “fazes bem”. As pessoas ainda sabem que a civilização não é aqui, que isto não é uma meritocracia.

Passos Coelho regressará um dia à política ativa? E Sócrates?

Sócrates tem a carreira acabada para todo o sempre. Passos duvido que regresse como primeiro-ministro. Talvez como Presidente. Tenho admiração por Passos no sentido em que teve a coragem, no momento certo, de fazer o que se impunha. Mostrou coragem em coisas que não são devidamente valorizadas, o que me dá a volta à tripa. Nomeadamente a independência da justiça. Não existia antes dele e não sei se volta a existir. O mandato de Joana Marques Vidal, aí, foi incrível. E deixou cair o BES. Deixar cair Ricardo Salgado foi muito importante. Só por isso já merece pelo menos uma medalha por cada situação. Mostrou qualidades que são raras. E não o conheço, não tenho o telemóvel de Passos Coelho. Claro que podes ter talento para estar à frente do país num momento e não noutro. Podes ser ótimo em tempo de vacas magras, péssimo em tempo de vacas gordas, ser um bom primeiro-ministro e péssimo PR, ótimo PR e ser péssimo PM.

É o caso de Marcelo, que à frente do PSD não teve a mesma popularidade?

Marcelo ainda não foi testado. Não sabes ainda se o Marcelo é ou não um grande presidente porque ainda não teve de o mostrar. É muito bom em termos de afetividade, que é importante, mas até agora qual foi a decisão que teve de tomar? Nenhuma. Cavaco, que acho que foi um mau PR, levou com Sócrates. Há as decisões que não tomou. E levou com a história da construção da geringonça. Sampaio teve que decidir sobre Santana. Soares tinha as maiorias de Cavaco. Marcelo ainda não foi testado.

Quem imagina a fazer o discurso mobilizador que pediu para o país?

Qualquer um pode fazê-lo. Pode ser qualquer coisa, várias coisas. O combate à corrupção, enfrentar a sério o problema demográfico, de ter um interior deserto. Que desígnios tivemos no passado? Entrar na CEE, entrar no euro, mas depois da entrada no euro acabou. O problema é como evoluir sem trauma. O diabo não é mais do que isso, é estarmos à espera de um trauma. É um problema grave da democracia, é preciso estar à espera que a porcaria aconteça para ir buscar a vassoura.

Ainda não se sente lisboeta?

Não, sou um alentejano.

Mas os filhos são?

E vão ser elite, só pelo meio em que crescem. Tive sempre o cuidado de os meter em escolas públicas, mas mesmo em escolas públicas, se vives nas Avenidas Novas, são uns betos. Vou ter uns betos como filhos, já tenho. Tento ao máximo contrariar isso, mas é difícil.

Nunca se falou tanto de parentalidade, se os miúdos estão a perder a empatia. Está preocupado?

Tendo a desvalorizar um bocado. Acho que o problema são mais os pais. Vives numa sociedade obcecada com as criancinhas, o que tem a ver com serem poucas. Eu como tenho muitas preocupo-me menos com cada um delas. Há desafios novos, a questão das tecnologias é uma mudança radical na nossa relação e na relação deles, sobretudo nas questões da socialização. Hoje quando se tira o telemóvel está-se a tirar o grupo de amigos.

Têm alguma regra eficaz em casa?

Quando é excessivo, bloqueia-se os telefones. Só podem ver x horas. Cá em casa não é uma democracia, é a primeira coisa que os meus filhos aprendem. Há relações hierárquicas de pais para filhos e nossa obrigação é educá-los.

Nunca pensou regressar à terra?

Tenho esse desejo. É muito difícil com uma família tão grande e por causa da educação que lhe queremos ter dar. Além da escola têm todos música, não encontrava tão facilmente essas estruturas.

Há as bandas filarmónicas.

Sim, mas não é no mesmo campeonato, gosto que estejam em campeonatos máximos de excelência. Terem uma boa formação musical é tão importante como a matemática e o português. A musica para mim é importantíssima para o desenvolvimento deles, para a capacidade de disciplina, de concentração. A necessidade de estar constantemente a enfrentar o público, nas audições, gerir a tensão, o falhanço, o erro. Às vezes trabalhares e poder correr mal.

Portanto regressar ao interior, só quando já não houver aulas de música.

Sim, quando estiverem criados. Não quero que os meus filhos fiquem em casa depois de se licenciarem, são mais uns 15 anitos. Quando chegar aos 60 vou-me embora. Mais para o Alentejo. A Teresa é da Beira, gosta mais de mar. Teremos de encontrar uma solução de compromisso. Mas sim, gostava de estar sozinho com uma mulher, com uma boa biblioteca e uma vista para algum sítio.

Vão fazer a vossa Marmeleira.

Não, não queria fazer uma Marmeleira, já tenho livros a mais, tenho de começar a livrar-me deles.

Não tem nenhum livro zulu?

Isso dava toda a uma outra conversa.

Foi criticado pela ideia de uma cultura superior, que não foi por acaso que não foi um zulu a escrever Romeu e Julieta. 

Escrevo textos provocantes. Mas quando dizes que a literatura britânica é superior à literatura zulu, perguntarem-te depois se conheces a literatura zulu é estúpido. É uma tradição oral que começou a ser fixada pela primeira vez na escrita por missionários no século XIX. Tudo bem que pode haver uma literatura oral, mas é impossível teres uma literatura com a dimensão da literatura britânica que acedeu à escrita muito antes. Não é cultura, é matemática. Mas ainda estou a pensar voltar a isto. Existem melhores maneiras de viver do que outras no planeta Terra. Há uma enorme permeabilidade, mas há coisas que vão sendo peneiradas, ficas com as melhores coisas e vais deixando cair as piores. 

Tem um novo programa sobre história na rádio do Observador, vem dessa ideia de ser contra o relativismo?

Gosto muito da área. É também uma ideia de negócio e resulta da minha empatia com Rui Ramos, de quem gosto imenso e por quem tenho uma grande admiração intelectual.

É mais difícil para as pessoas de direita emitirem opinião?

Os tipos de direita levam mais porrada, também se diferenciam mais. E há também no programa um lado de serviço público, levamos com aquela história insuportável de que éramos os maiores durante o Estado Novo, parece-me que estamos agora em negação, não podes usar a palavra Descobrimentos. Os meus filhos conhecem melhor a história dos EUA e isso tem de ser corrigido.

Mas criticou até no discurso de 10 de Junho o mito luso tropicalista.

Sim, é preciso dizer que o colonialismo português ter sido mais brando que os outros é uma bela tanga.

Se se pode corrigir essa versão, por que não se há de corrigir a história dos Descobrimentos?

Não tenho nada contra fazer-se um museu da escravatura, fazes aqui o museu da escravatura e fazes ali um museu dos descobrimentos. Deve haver um museu do Estado Novo. Não é para fazer a apologia do Salazar, mas tirando agora o Aljube, é inacreditável não poder ir com os meus filhos e dizer isto era assim. Trabalhamos muito mal a memória.

Está ligado ao Observador. Imagino que já tenha sido convidado para se mudar do Público, por que não o fez?

Digo-lhes muitas vezes que acho que no Observador seria uma espécie de coro grego na opinião, uns tenores, outros baixos, outros contraltos. Concordo a maior parte das vezes com o que escreve o José Manuel Fernandes, o Rui, mas acho que faço muito mais a diferença no Público. Acho que tenho um lugar privilegiado, o melhor lugar na imprensa que existe em Portugal para opinião, a última página do Público. Sempre me trataram muito bem e dá-me mais liberdade.

O 10 de Junho foi um ponto alto da sua carreira. Não teve receio que tivesse chegado demasiado cedo? 

Não, não estava à espera, “ah precisava do 10 de junho para isto ou para aquilo”. É um momento que fica, mas tenho tanta coisa que quero fazer. Quero pôr esta empresa a dar dinheiro e tenho toda uma ambição pessoal, familiar, que não passa por isso. Estou bem assim, não precisava de um 10 de junho para me completar. As coisas às vezes aparecem e aproveitas as oportunidades.

Mas aprendeu alguma coisa sobre si?

Que era capaz de fazer bons discursos. Já desconfiava, mas confirmei.