Jazz em Agosto. O jazz da resistência

Jazz em Agosto. O jazz da resistência


Porque aí vem já agosto, de regresso aos jardins da Gulbenkian está o Jazz em Agosto. Que à 36.ª edição toma como mote Songs of Resistance, o disco em torno do qual Marc Ribot dá amanhã o concerto de abertura.


Em setembro de 2011, quando se iniciaram nos Estados Unidos as manifestações dos 99% contra a desigualdade económica e social e o sistema financeiro norte-americano – no que daria o movimento Occupy Wall Street –, o guitarrista Marc Ribot começou a dar pela falta de canções de protesto que ecoassem o sentimento dessa nova geração revolucionária. Foi o tempo da Primavera Árabe, dos Indignados, em Espanha, da Geração à Rasca, em Portugal, em contestação às políticas de austeridade que também na Grécia deram origem a um conjunto de greves e violentos protestos, foi o tempo em que, por toda a parte, se levantou, de uma vez, um conjunto de movimentos exigindo uma nova ordem.

Em Nova Iorque, forçados a desocupar o Zuccotti Park, no bairro financeiro de Nova Iorque, em novembro desse mesmo ano, dois meses depois de o terem ocupado, os manifestantes voltaram-se para novos alvos: bancos, sedes de grandes empresas, campus universitários. Entretanto, com Trump já eleito, Marc Ribot, renomado guitarrista norte-americano que ao longo de uma carreira que tem vindo a percorrer vários estilos, não apenas o jazz, numa viagem que produziu já colaborações com nomes como Tom Waits, Elvis Costello, Vinicio Capossela ou John Zorn, decidiu oferecer-nos Songs of Resistance (2018). Um disco que teve como impulso inicial os protestos de 2011, aos quais aderiu, e no qual revisitou clássicos das revoluções passadas, com um pé nas revoluções futuras.

‘We Are Soldiers in the Army’, a faixa de abertura, recupera essa música do século XIX ainda feita hino da luta pelos direitos civis dos afro-americanos, seguida do hino da resistência italiana contra o fascismo, ‘Bella Ciao’, interpretado por Tom Waits. Já a faixa seguinte, com a participação de Steve Earle e Tift Merritt e intitulada ‘Srinivas’ – homenagem a Srinivas Kuchibhotla, o imigrante sikh assassinado no Kansas em 2017 –, vai direta a Donald Trump, que “carregou a arma” com que “um louco puxou o gatilho”.

É em torno do mote oferecido por esse disco – Songs of Resistance – que se faz a programação do Jazz em Agosto, a partir de amanhã de regresso aos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, com nem mais nem menos do que Marc Ribot como nome de abertura. Amanhã, às 21h30, no Anfiteatro ao Ar Livre, num concerto a partir desse disco, na companhia de Jay Rodriguez (saxofone tenor/faluta), Brad Jones (contrabaixo), Ches Smith (bateria) e Reinaldo de Jesus (percussão).

“Música para que tudo não fique na mesma. Para que a mudança aconteça”, lê-se no texto de apresentação desta que é já a 36.ª edição do Jazz em Agosto, vindo quase em forma de manifesto. E a reclamar para o território no qual se move Ribot neste disco também as propostas de Heroes Are Gang Leaders (2 de agosto), Burning Ghosts (3 de agosto, ambos às 21h30, no Anfiteatro ao Ar Livre), Nicole Mitchell (4 de agosto, às 21h30, no Grande Auditório, ao qual, com o Auditório 2, nos concertos à tarde, volta a estender-se parte da programação) e Ambrose Akinmusire (10 de agosto, às 21h30, no Anfiteatro ao Ar Livre).

“O jazz sempre teve na sua raiz a semente da contestação e da mudança, enquanto música movida pelo contexto social à sua volta e capaz de apontar o foco para todo o tipo de arbitrariedades que são frequentemente incómodas e que os olhares preferem tantas vezes ignorar”, lê-se nessa espécie de manifesto de abertura que recua a 1939, ao Café Society de Nova Iorque para o episódio que marca no jazz “o possível nascimento da contestação sob a forma de uma canção popular”: a interpretação de ‘Strange Fruit’ pela “voz sofrida” de Billie Holiday. E prossegue: “A música deve carregar consigo um sentido maior, deve ser veículo para a mais profunda expressão de tudo aquilo que nos faz humanos e apontar para uma existência mais digna. O jazz soube, em diversas ocasiões, canalizar e potenciar a contestação e a revolta de uma forma impossível de silenciar”.

Aos nomes já citados, juntam-se a compor o cartaz deste 36.º Jazz em Agosto ainda, entre outros, Mary Halvorson, Maja S. K. Ratkje, Abdul Moimême, Ingrid Laubrock & Tom Rainey, Joey Baron & Robin Schulkowsky, Julien Desprez, que à Gulbenkian regressa com o trio Abacaxi, e o quarteto Toscano, Pinheiro, Mira e Ferrandini, que, descrito como “um dos mais estimulantes encontros no jazz português dos últimos anos”, numa atuação marcada para as 18h30 deste domingo (Auditório 2) promete um “desfecho imprevisível”.