O recente episódio, a todos os títulos lamentável, de renúncia de uma juíza do Tribunal Constitucional constitui motivo justificado para analisarmos a forma profundamente errada como entre nós funciona o Tribunal Constitucional, que não deve ter paralelo com qualquer outro tribunal constitucional do mundo. Efectivamente, as pessoas costumam ser nomeadas para os tribunais constitucionais no fim da sua carreira, sendo essa nomeação vista como o coroar da mesma: nesses tribunais podem fazer jurisprudência com grande repercussão nos direitos dos cidadãos. Neste âmbito, o exemplo típico é o Supreme Court dos Estados Unidos da América, onde a nomeação de um juiz pode influenciar durante muito tempo as mais importantes questões jurídicas desse país. Precisamente por isso, seria inconcebível que um juiz do Supreme Court americano fosse exercer qualquer outra função em momento posterior.
Em Portugal, no entanto, os juízes são nomeados para o Tribunal Constitucional por acordos parlamentares, baseados na mera indicação de um partido, sendo frequente a imprensa referir qual foi o partido que indicou determinado juiz. Dependendo apenas dessa escolha partidária, chegam ao Tribunal Constitucional numa idade relativamente jovem, encarando-o assim apenas como mais um passo na sua carreira. Precisamente por isso, o Tribunal Constitucional transforma-se numa porta giratória, em que os juízes entram e saem à medida que lhes vão surgindo novas oportunidades de carreira e, inclusivamente, até futuros cargos políticos de nomeação ou eleição, vendo o Tribunal Constitucional como parte de uma carreira política. Houve um juiz do Tribunal Constitucional que renunciou ao cargo para assumir imediatamente o papel de cabeça-de-lista de um partido numa eleição. E houve outro juiz do Tribunal Constitucional que também renunciou ao cargo para assumir, também imediatamente, a função de ministro de um Governo. E houve juízes do Tribunal Constitucional que assumiram funções políticas de relevo, depois de terem terminado o seu mandato. Ora, esta proximidade entre os juízes do Tribunal Constitucional e os políticos não é nada saudável para o regime democrático e reduz muito a própria influência do tribunal.
Para a redução dessa influência tem também contribuído muito o actual Presidente da República que, como professor catedrático de Direito Constitucional, acha que fala de cátedra nessas matérias e, por isso, não envia um único diploma para o Tribunal Constitucional. Mas verifica-se que o Tribunal Constitucional não tem partilhado essa visão da sabedoria constitucional do Presidente e, por exemplo, preparava-se agora para declarar inconstitucional a lei dos metadados, apesar de a promulgação do Presidente se ter baseado no “consenso jurídico atingido” pelo diploma. Se esse diploma vier a ser efectivamente declarado inconstitucional, será uma situação extremamente grave, uma vez que os direitos constitucionais dos portugueses terão sido impunemente violados durante todo o período em que a lei esteve em vigor.
A recusa do Presidente em suscitar a fiscalização da constitucionalidade dos diplomas que lhe submetem é, assim, preocupante. E especialmente porque ela está a ser seguida por outros órgãos do Estado, a quem compete igualmente fiscalizar a constitucionalidade das leis e que também se têm coibido de o fazer, mesmo perante diplomas controversos, deixando os cidadãos desprotegidos contra leis inconstitucionais.
É preciso, por isso, voltar a assegurar uma efectiva fiscalização da constitucionalidade das leis, atribuindo essa função a outras instituições, como a Ordem dos Advogados. É necessário igualmente efectuar uma reforma profunda do Tribunal Constitucional, evitando que o mesmo continue a ser a porta giratória dos seus juízes para outras funções em que actualmente se transformou. É preciso de igual forma reduzir o brutal regime de custas no Tribunal Constitucional, que impede os cidadãos de a ele recorrer. E é preciso instituir de vez o recurso de amparo, permitindo a cada cidadão recorrer ao Tribunal Constitucional sempre que os seus direitos fundamentais sejam lesados. Se aqueles a quem compete fiscalizar a constitucionalidade das leis não o fazem, que ao menos os cidadãos cujos direitos fundamentais estejam a ser lesados possam defendê-los.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990