Início de setembro de 2019. Diana Fialho, filha adotiva de Amélia Fialho, a professora que desapareceu no primeiro dia de setembro, faz declarações aos jornalistas: “Como não demos conta se dormiu em casa ou não, torna mais difícil, porque a polícia disse que, se não sabemos se dormiu em casa, não sabemos se desapareceu no sábado, se desapareceu no domingo”. Dias depois, Diana Fialho é detida, suspeita de matar a mãe. No dia em que prestou estas declarações, enquanto diz a palavra “polícia”, Diana Fialho esboça um sorriso, mas rapidamente volta à face que expressava preocupação e, sobretudo, desconhecimento sobre o paradeiro da mãe.
Durante meio segundo houve um sorriso. Estaria aqui a primeira pista para resolver o caso de homicídio? Alguém reparou neste pormenor? “Os sinais estavam lá todos: um esboço de um microssorriso e depois recompõe-se. Ela diz que fica mais difícil para a polícia e, como fica difícil para a polícia, é bom para ela, e como é uma situação de prazer para ela, inconscientemente, o sorriso aparece”. A explicação é dada por Rui Mergulhão Mendes, especialista em deteção da mentira e fraude, que ensina advogados a decifrar os sinais que o corpo dá, mesmo antes de a pessoa começar a falar, para tentarem perceber se estão ou não perante uma mentira. E a verdade é que não estamos preparados para mentir. Inconscientemente, o nosso corpo vai dando sinais de que o que estamos a dizer não corresponde à verdade. Mas é preciso saber interpretar esses sinais.
No caso de Diana Fialho, as microexpressões faciais – expressões que ocorrem durante um terço ou um quinto de segundo – são cruciais para analisar o discurso. “A microexpressão é muito importante no processo da mentira porque, se nós temos uma expressão muito rápida e tentamos camuflá-la com outra, é porque não queremos dar a indicação daquilo que podemos estar a sentir, na realidade, naquele momento”, explica Rui Mergulhão Mendes.
A expressão está lá, mas esta análise não serve de prova em tribunal: “O meio de prova continua a ser facto substancial e continua a ter uma relevância grande”. Além disso, constituir como prova a análise da expressão, da fala, dos movimentos, do conteúdo do discurso “é arriscadíssimo”, explica o especialista, e a justificação é clara: “Prova para quem? Para o juiz que viu? É uma convicção. Para um perito? Nós sabemos lá qual é o nível que o perito vai ter para fazer uma coisa dessas, qual é o nível de seriedade”.
Com licenciatura em Gestão pela Universidade Lusíada, Rui Mergulhão Mendes tem ainda formação na área da expressão facial, linguagem corporal, microexpressões e neurolinguística pelo Instituto Paul Eckman, de Manchester, e pelo Body Language Institute, em Washington. Já em Portugal fez uma pós-graduação em Ciências Forenses, Profiling e Comportamento Desviante, no Instituto CRIAP.
Para o especialista, “à parte da prova, se os juízes e os advogados conseguirem ter estas competências e conseguirem daqui obter mais informação, então vão conseguir encaminhar e orientar as entrevistas e interrogatórios para o caminho que eles querem porque, muitas vezes, andam ali à deriva quando as coisas são tão evidentes – os sinais estão lá todos, eles é que não sabem interpretá-los”.
A mentira constrói-se no discurso indireto Não existe um dicionário único e específico para detetar a mentira, mas o especialista dá, no escritório da Emotional Business Academy – a sua empresa de consultoria e formação –, as competências necessárias para que os advogados, falando no caso da justiça, possam entender a linguagem. E sobretudo procura desmistificar alguns mitos: cruzar os braços não significa, necessariamente, que a pessoa está a mentir, pode ser a posição confortável, por exemplo. Mas, atenção, o objetivo nunca é ensinar a mentir. Aliás, Rui Mergulhão Mendes já deu formação a forças de segurança – inclusive no Brasil –, profissionais da área da justiça, da banca, da política, de empresas. Este verão esteve a dar formação à Sociedade de advogados Morais Leitão.
Rui Mergulhão Mendes fez a avaliação do testemunho e da credibilidade da entrevista feita pela procuradora a Rosa Grilo, acusada de matar o marido, no ano passado. Neste trabalho, a única informação que tinha era os áudios. “E daí dá para tirar muito. Não vamos dizer que vamos ser assertivos 100% naquilo que estamos a dizer, mas os processos de credibilidade podem ser definidos por aquilo que estamos a ouvir, porque há uma série de associações, dissociações, espontaneidades, registos temporais, registos de estados emocionais, ligações ao tempo, discursos indiretos e diálogos”.
Um mentiroso não produz discursos diretos, explica Rui Mergulhão Mendes: “Reproduz o conteúdo da informação sem reproduzir o diálogo”. “Se eu estiver a narrar um acontecimento que seja falso, vou dizer que, a uma dada altura, me disseram para eu ter cuidado que ali havia cães. Mas outra questão é dizer que me disseram, ‘Rui, tem cuidado quando passas ali, pode haver cães e isso pode ser perigoso para ti’ – isto é reproduzir o diálogo”.
Além da forma do discurso, “um mentiroso, por norma, não reproduz sensações”. Imagine-se o seguinte caso: alguém quer pedir uma indemnização à companhia de seguros por causa de umas calças rasgadas. “‘Saí do escritório, veio um cão ter comigo, deu-me um esticão, rasgou-me as calças, só tive tempo de fugir e pronto, como moro perto, fui para casa trocar de calças’. Aqui não há relato de emoção, mas se eu disser, ‘venho a sair do escritório, vi um cão, fiquei atemorizado, tremi todo, tenho um pavor de cães, quando o cão me pegou nas calças eu já transpirava todo, foi só o tempo de me conseguir libertar dele e de ir embora’, aqui reproduz-se o interno, as sensações”.
O que se baralha em Portugal Por cá, diz o especialista, ainda há muito trabalho mal feito dentro dos tribunais. O primeiro passo para perceber a mentira é analisar os sinais que o arguido ou a testemunha dão ao longo da entrevista ou do interrogatório. Saber fazer perguntas é essencial. Voltando ao exemplo da análise da entrevista a Rosa Grilo, o especialista garante que “os áudios da Rosa Grilo são tudo o que não se deve fazer durante uma entrevista: perguntas longas, não deixam a pessoa falar. Entrevistam e acusam ao mesmo tempo, fazem perguntas mas já estão a acusar”.
Primeiro, uma entrevista pressupõe que o entrevistado fale 95% do tempo, uma vez que o objetivo é recolher o máximo de informações, defende. Já um interrogatório é exatamente o contrário: a pessoa fala apenas 5% e limita-se a confirmar ou a negar os factos que estão a ser narrados. “Se eu interrompo a pessoa, nunca vou saber o que aquela pessoa ia encadear na pergunta, nem a pessoa, porque ela já tem um estímulo diferente e o cérebro dela já variou para outro caminho. Perguntar e responder é proibitivo: ‘ah, então foi por isso que’”, explica Rui Mergulhão Mendes. E é também no círculo da má condução das entrevistas que se podem criar, por exemplo, as falsas memórias.
Saber conduzir uma entrevista, saber falar com as testemunhas e arguidos, saber interpretar sinais é tudo o que é preciso para chegar à verdade e conseguir caçar a mentira, recomenda o especialista.