Tasca do Chico. “O Bernardo Silva canta bem o fado”

Tasca do Chico. “O Bernardo Silva canta bem o fado”


O fado vadio ainda é rei na Tasca do Chico, onde estrangeiros e portugueses se ajeitam como podem para ouvir o que vai na alma de fadistas amadores ou profissionais


Todos o conhecem por Chico, mas no bilhete de identidade o que consta é Francisco Gonçalves – o mesmo de um nome grande da viola portuguesa. A sua tasca no Bairro Alto há muito que se tornou uma espécie de catedral do fado vadio, onde muitos nomes consagrados gostam de fazer uma perninha, como Mariza, que até tem a sua mesa, Carminho, Raquel Tavares… 

Ninguém paga à porta e todos tentam ajeitar-se no espaço exíguo, onde impera o silêncio sempre que alguém começa a cantar o que lhe vai na alma. No dia em que o i por lá passou, além de Elizabeth, uma promissora fadista, cantaram também a filha de Ricardo Ribeiro e a sua mulher. Anthony Bourdain, que se fascinou pelo caldo verde, António Lobo Antunes, António Costa, Fernando Medina são alguns dos nomes que por lá passaram ou passam.

Chico nasceu em Amarante há 62 anos e chegou à capital com 16. Depressa se enamorou pelo bairro, onde não faltavam prostitutas, chulos e fadistas. E é sobre o passado e o presente que falou com o i, depois de a casa fechar, às duas da manhã.

O que o levou a deixar Amarante, em 1972?

Vim trabalhar para uma tasca, daquelas tascas antigas, que era de uns minhotos que eu conhecia. Estive na tasquita dois anos. Situava-se mesmo em frente à Adega Mesquita.

O que fazia na tasca?

Servia copos, lavava panelas que eram maiores que eu, pratos…Naquela altura não havia máquinas, era tudo à mão.

E trabalhava até que horas?

Desde as 19h30 até às três, quatro da manhã.

Como é que um miúdo de Amarante começa a lidar com este mundo?

O Bairro Alto, na altura, não tinha nada a ver com o que é hoje. 

Na altura havia casas de prostituição,

Casas de fado, prostitutas e restaurantes para as prostitutas e para aquela malta da noite. Mas era um bairro saudável. A grande diferença que existe para hoje é que há muitos estrangeiros. No bairro viviam muitas famílias de uma classe média e alta. 

Estamos a falar dos anos 70?

Anos 70, 80. Depois é que começaram a correr com as pessoas. Moradores mesmo do Bairro Alto, temos aqui meia dúzia deles.

E quando começaram a correr com as pessoas? Porquê?

Foi nos anos 90 e agora. O Bairro Alto começou a crescer, as casas de galegos começaram a fechar e é aí que nasce a Tasca do Chico, nos anos 90. As tascas antigas eram quase todas de galegos, mas tudo começou a mudar nos anos 80, 90. Começaram a transformar as tascas, onde os velhotes pegavam na guitarra, com o cigarro na boca e a beber um copo de vinho, onde estavam ali durante a tarde a tocar, em bares modernos. 

Consegue dar mais imagens do Bairro Alto nos anos 70?

Havia prostitutas, fadistas, ladrões, chulos e marinheiros. Mas havia as casas de fados a que vinham grandes autocarros com estrangeiros. Assistiam a uma das sessões, saíam e entravam outros.

Era um mundo muito diferente do de Amarante. 

Eu sabia lá o que era o Bairro Alto. Comecei a ver as miúdas com um palmo de saias. E pensei “aqui é que eu estou bem”. E comecei neste bairro a abrir os olhos e a crescer muito rápido. Estava sozinho, não tinha ninguém. Não tinha mesmo ninguém porque vim com uns amigos. Um deles, que ainda é vivo e continua a ser meu amigo, tinha um restaurante aqui no bairro, uma tasca que se chamava o Porco Sujo. E era mesmo. Tiravam o pastel de bacalhau e o carapau de escabeche e depois iam ao carvão com a mesma mão. Foi aí que comecei.

Começou também a fazer esse papel.

Sim, mas já não pegava no carvão com a mão. Depois iam renovar o dito Porco Sujo. Passados uns dias deram-me um martelo para eu partir parede nas obras de renovação. Respondi a esse meu amigo: “Você disse que eu ia trabalhar num restaurante em Lisboa. Não vim trabalhar para as obras, nas obras trabalho na minha terra”. Começaram a rir-se. Estive ali um ano, ano e pouco. Essa taberna era mesmo em frente à Adega Mesquita. Entretanto fui para a Adega Mesquita. Conheci os fundadores da adega, umas pessoas encantadoras. A senhora, a tia Adelina, foi das melhores cozinheiras que vi. O dr. Mário Soares chegava ali e decidia o que comer depois de escolher o vinho. Gostava de jaquinzinhos com um arrozinho de grelos que ela fazia deliciosamente. Era uma grande cozinheira, mas o tio Mesquita só gostava de touros, mulheres e copos. 

Ficou depois a trabalhar na Adega.

Isso já foi a seguir ao 25 de Abril. Depois ficou à frente uma senhora, Eduarda Maria, de que hoje ninguém fala. Cantava muito bem, a D. Amália adorava-a, a D. Celeste também… Também já não falam do Maurício. E eu habituei-me, ela adotou-me mesmo como filho. Gostava muito de mim, eu era humilde, queria aprender e encontrei pessoas que me ensinavam. 

O que lhe ensinaram?

Estive lá 17 anos e saí de lá com uma carteira profissional que não é como agora. Tínhamos de saber tudo.

Tinham de aprender o quê?

Como se servia o cliente, o vinho. Aprendíamos a pôr as mesas, servir o cliente, o vinho, quais eram os lados. Tínhamos de saber tudo ao pormenor. Como espinhar um peixe, que hoje quase ninguém faz. Essa aprendizagem demorava meio ano. Íamos para a escola de hotelaria que ficava no Rossio, onde é a Ginjinha. Isto há 50 anos, 40 e muitos.

Entretanto dá-se o 25 de Abril e o fado cai um pouco.

É verdade. Ainda havia prostitutas, mas foram acabando. Queriam transformar esses barzinhos em lugares modernos. 

E o fado?

O fado realmente começou a cair. Era associado ao fascismo. O Maurício, a D. Amália, o Faria, Carlos do Carmo, esses continuaram a trabalhar, só que as casas de fado levaram muita tareia. Muitas nem aguentaram. A Adega Mesquita, nessa altura, tinha altos e baixos. Começou a haver também menos turismo e a base das casas de fado era o turismo. Muitas foram à falência. E não foram mais porque o Lisboa à Noite do Romão Martins mantinha a chama acesa.

O que foi dirigente do Benfica e presidente da FPF?

Sim, tinha o Lisboa à Noite, que também foi uma das grandes casas. Havia ainda a Severa. A D. Amália, quando ia à Adega Mesquita, eu tinha de lhe tirar o casaquinho e pendurá-lo como deve ser.

Era simpática?

Quer que eu lhe diga a verdade? Era a D. Amália. Era a estrela.

As outras eram diferentes?

Sim. A D. Hermínia não tinha nada a ver com a D. Amália. A D. Amália, para os amigos e em casa dela, acho que era muito simpática. Não lidei muito com ela, era a estrela, e eu era um gamela, como se dizia na altura. Mas era a mulher mais linda do fado, linda.

Teve paixões por alguma fadista?

Por acaso, não. Gosto muito de uma que é a minha grande amiga Mariza, mas não tenho paixão por ela. Além de ser uma estrela, senta-se aí, canta quando quer, e a Ana Moura é igual.

Como é que abre a Tasca do Chico?

Antes disso, como estava um pouco farto do fado, saí da Adega Mesquita e fui trabalhar para um bar que entretanto abrira, o Souk. Nessa altura apareceram as drogas. 

Primeiro havia prostitutas e chulos, depois apareceu a droga. Como foi essa fase?

Exatamente. Acho que foi a pior fase do Bairro Alto, logo pós-25 de Abril, quando começam a aparecer as drogas. O Souk, antes de abrir com esse nome, tinha sido uma casa de shows de travestis. 

Nunca teve a tentação de cantar fado?

Não. Fiquei com o bichinho do fado, mas nunca cantei nem toquei nada. Ainda andei a ensaiar folclore e acho que tinha jeito, mas ganhava mais dinheiro a vender cigarros. Ganhava mais dinheiro a vender Marlboros.

Onde?

Na Adega Mesquita, aos estrangeiros. Na altura trabalhávamos muito com os estrangeiros, os hotéis e as agências de viagens. 

Mas como é que o miúdo que vem de Amarante começa a juntar dinheiro?

Eu trabalhava muito, cheguei a ter quatro empregos. Saía do Souk e ia para o Jamaica preparar as sandes que os empregados haveriam de comer. Recebia cervejas, coca-colas, e pagava tudo. Saía dali às 11h30 e ia trabalhar para um restaurante até às 15h00. Às quatro da manhã ia abrir a porta à senhora da limpeza, ia carregar os frigoríficos todos, comprava as sandes para os que vinham à noite. Onde eu ganhava mais dinheiro era no Souk. Depois ia para o Jamaica. Trabalhava também num restaurante e vendia aqueles cartõezinhos [jogo clandestino]. Era o mais fácil.

Mas como é que abre a Tasca do Chico?

O Bairro Alto estava a ser transformado, já não eram as mesmas pessoas. Saio desses trabalhos todos e comecei a ver a Tasca dos Canários, para onde íamos jogar à sueca, toda a tarde, beber umas minis, entre amigos. Num ano desapareceram quase todas essas casas castiças. E foi nessa altura que pensei em fazer uma tasca com fado vadio. E já havia uma aqui, famosa, que se chamava A Sabrina, mas que começou a cair. Por isso é que me lembrei de fazer a Tasca do Chico. 

E como descobriu o espaço?

Vinha aqui buscar azeitonas, queijo flamengo, presuntos – isto era um armazém que fornecia as casas de fado e restaurantes. Era um armazém, mas vendia para o bairro. Entretanto, isto fechou. E antes de ser um armazém havia camaratas onde viviam as prostitutas. Até que transformei o espaço em 1996. A minha abertura foi muito gira, parecia um filme. Toda a gente a dizer que eu era maluco, que estava a rumar contra a maré. Achavam que eu devia ter feito um bar moderno. O primeiro ano até custou um pouco, mas com os amigos que vinham aqui dava para aguentar a coisa. E ao fim de um ano ou dois, devagarinho, começou a subir, só com portugueses, não tinha estrangeiros. A polícia tinha de vir aqui tirar as pessoas que não se queriam ir embora. Entretanto, o Bairro Alto também começou a crescer e eu tinha fado à segunda e à quarta. 

E já tinha os petiscos?

Chouriços, sopas, bifanas. As pessoas queriam bifanas. Depois chegou aí a ASAE e disseram que eu não podia ter. Eu disse que ia ter uma tasca com fado vadio, pastéis de bacalhau, caldo verde, pataniscas. Andei de um lado para o outro para ter licença. Tive um azar dos diabos porque meti os documentos todos na Câmara Municipal de Lisboa, era o sr. João Soares presidente da Câmara. Mas o edifício onde estavam os documentos ardeu e lá se perdeu tudo. Comecei logo bem. Queria abrir isto, não tinha licença. Eu tinha uma filha. Cheguei ali à polícia, fui dar conhecimento que ia abrir. Quase como quem diz “eu vou fazer um assalto e estou a avisá-los”. Tenho de comer, tenho uma miúda a chorar. Disseram que eu era maluco, mas abri a porta. Ao segundo dia chegou aí um polícia e passou-me 17 multas. Mais uma vez, estou a começar bem. Em 2000, o projeto foi indeferido com o argumento de que o espaço não era culturalmente relevante para a preservação da memória do Bairro Alto. Nós, uma casa de fadistas amadores! Curiosamente, hoje, o António Costa é meu amigo e gosta de vir aqui. O Fernando Medina também é meu amigo.

Já tem as licenças?

[Risos] Já tenho há uns dez anos. 

Qual era e é o conceito da Tasca do Chico?

Uma casa de fado vadio onde todos podiam cantar e onde não recebiam por isso. Quase como ainda é hoje. 

Abre, tem fadistas que vêm cá cantar…

Agora pago a uma, mas não pagava. Aliás, pago a três. Há uma convidada todos os dias. E todos os dias vem uma diferente.

Houve fadistas que foram lançados aqui?

Os miúdos foram quase todos. O Júnior, viola da Carminho, começou aqui. O guitarrista da Raquel [Tavares] começou aqui. A própria Raquel andava nas coletividades e em miudinha começou aqui. A Carminho era filha de fadistas, mas era para aqui que ela vinha cantar. A Maura, filha do Aires. Tantos. 

Quem são os famosos que vêm cá cantar?

Todos. Mariza, Ana Moura, Matias Damásio. Pega na viola, senta-se aqui e começa a dar um concerto que as pessoas até se admiram.

Porque nunca mudou o menu?

Porque é só isto que eu posso vender. Mas eu não engano os estrangeiros. Os estrangeiros vêm comer e eu digo: “Não, aqui não se come bem. Aqui, o que é bom é o fado e o ambiente”. E é.

Mas se não pagam entrada, como é que rentabiliza o investimento?

Eles bebem, bebem e bebem. Desde que bebam… Se pagassem a entrada, se tivesse senhas, ia estragar. E eles pagavam, mas pagavam mesmo.

Porque não adota essa estratégia?

Porque ia estragar a tasca de fado vadio que eu criei. O que foi feito assim vai morrer assim. Toda a gente me diz que estou a perder. A pessoa vem ouvir fado, bebe um café e está a portar-se bem, não há problema. 

E quando as pessoas se portam mal?

Ninguém se porta mal, não há problema nenhum. E o mais giro é isso. Sentam-se aqui dois ingleses, dois espanhóis, dois italianos e dão-se todos às mil maravilhas. Eu meto as pessoas umas em cima das outras, costas com costas. 

E cabem todos?

Meto aí uma equipa de hóquei toda do Sporting. E de futebol. Meti aí o miúdo do Benfica, o Bernardo Silva, a cantar fado. E canta bem. A irmã dele vem cá cantar de vez em quando. E ele ouvia falar da tasca e veio cá. O Caneira foi dos primeiros a vir para aqui com a malta e gostava, de vez em quando trazia um leitão.

Quem é que faz a comida?

As miúdas. O caldo verde é a senhora da limpeza. A minha filha tem 24 anos. Ensinei-a a fazer o caldo verde e ela faz um caldo verde que é famoso na BBC.

E como aparece o Anthony Bourdain nesta história?

Veio cá para comer chouriço assado e ouvir o fado. Filmaram e tudo. Veio duas vezes: uma para filmar e outra só para ouvir o fado. E passados quatro ou cinco anos veio outro, que eu não sei o nome, da BBC que procurou logo pelo caldo verde. E às vezes chegam aqui ingleses e a miúda está aí e dizem logo que ela é famosa porque a viram a fazer caldo verde. Veio cá também o Lobo Antunes, está aí ao lado do Bourdain.

Não bebe?

Já bebi muito, mas agora bebo pouco, já bebi mais…

Antigamente fechava mais tarde.

Era até vir a polícia. Estava sempre tudo a fumar e a beber. Antes ficávamos nas casas de fados até às horas que calhava, a discutir o fado, outros com a viola, a tirar apontamentos. E a Câmara Municipal de Lisboa acabou com isso, isso está a matar o fado. Eu, com a porta fechada e estar aqui a falar, não estou a incomodar ninguém. Mas se a polícia vem aqui e bate à porta passa logo uma multa, temos de ir embora. 

O espaço já serviu para gravações de fadistas?

A Ana Moura gravou aqui os Búzios. A Cuca deve estar a gravar o último CD que foi gravado aqui. A Mariza também gravou aqui umas coisas.

Há outra Tasca do Chico?

Sim, em Alfama. Mas eu só gosto do Bairro Alto. 

Qual é o gozo da sua vida?

É isto. Mas é mesmo. É um orgulho, mesmo os meus amigos nunca acreditaram. Eu acreditei sempre. Continuo com as mesmas mesas. O meu dia-a-dia é este: estou cá sempre, mas levanto-me tarde. Lá para as 14h00 vou comprar as coisas porque às 19h00, quando abre, tenho de ter tudo orientado.