Jonathan Morris. “Tornou-se mais difícil levar o realismo social ao grande público”

Jonathan Morris. “Tornou-se mais difícil levar o realismo social ao grande público”


A história de Jonathan Morris é a história do miúdo que queria ser ator mas que, por acaso, se tornou montador, aos 17 anos. Para um dia, também por acaso, ser “alocado” a Ken Loach. O aclamado realizador de Eu, Daniel Blake de quem, 40 anos volvidos, não mais se separou. Durante o FEST, que…


Há quem diga que um filme se faz na montagem, mas há quem discorde. Qual é a sua opinião?

Um filme faz-se em todas as estapas. Na montagem, acabamos o filme. Não se pode dizer que estejamos a fazê-lo porque houve alguém que escreveu um argumento, e sem ele o filme não existiria,  houve alguém que escolheu o elenco, e não teríamos nada sem os atores, e houve também alguém que o filmou. Tudo isto é necessário e, na verdade, o que se faz na montagem, é simplesmente terminar o filme. É uma fase na qual adoro trabalhar porque vejo o filme completo. Odiaria ser operador de câmara. Odiaria filmar e ter de largar – sem, por vezes, voltar a ver as imagens até ao filme estrear. Não me importo de não estar quando o filme está a ser feito, mas gosto de estar quando está a ser terminado. 

Trabalhou como ator, em criança. Como foi parar à montagem?

Em criança queria ser ator. Aos 12 anos fazia teatro, aos 13 entrei num filme com a Judy Garland e o Dirk Bogarde [I Could Go on Singing, de Ronald Neame], e queria continuar, mas para isso teria de mudar de escola. Como estava numa boa escola, os meus pais não quiseram que mudasse, e desisti de ser ator. Mas quando tinha 17 anos, o meu irmão, que trabalhava num estúdio, falou-me de uma vaga para segundo assistente de montagem estagiário.

O que fazia o seu irmão?

Era o primeiro assistente do montador. Fiz isto numas férias de verão, e nunca mais voltei para a escola. Adorei, percebi que era aquilo que queria. E o que adorei foi justamente o facto de estar na fase final da produção de um filme. 

A tal coisa de poder vê-lo completo.

Sim. Foi um acaso, mas um acaso que me assentou mesmo bem. Rapidamente cheguei a segundo assistente, depois a primeiro. Trabalhei dez anos como assistente de montagem, o que parece muito tempo, mas não é quando se começa aos 17: aos 27, era montador. Resultou para mim. 

Sentiu falta de escola?

Não acho que hoje em dia isto fosse possível. Para mim, foi ótimo. Se tivesse ido para a universidade o meu percurso poderia ter sido diferente, não sei. Nunca sabemos qual teria sido o resultado se tivéssemos feito o caminho de forma diferente. Tudo se constrói de pequenas decisões. 

Portanto, aos 27, era montador. 

Sim. Aos 23 já tinha deixado de trabalhar como freelancer, consegui um lugar numa produtora televisiva, e quatro anos depois fui promovido a editor. O interesse em trabalhar em televisão veio da possibilidade de ter um salário certo – e de poder, com a aprendizagem, chegar a editor. 

Isto foi no início da década de 1970?

Em 1973.

Foi uma época interessante na televisão britânica, ou estou enganada? Havia muita produção de documentários televisivos. 

O dinheiro americano tinha desaparecido da indústria do cinema – essa também foi uma das razões que me levaram à televisão. Trabalhei numa série televisiva chamada The Saint, que contava com o Roger Moore, antes de se ter tornado no James Bond. Era uma boa série. Nada a que valha a pena voltar hoje em dia, mas, na época, era uma boa série. E era divertido.  

Depois disso ainda, numa viragem importantíssima para o seu percurso, começou a trabalhar com o Ken Loach – até hoje. Como é que isso aconteceu?

Ao fim de dois ou três anos a trabalhar sobretudo em documentários televisivos – foi uma época em que se fizeram bons documentários televisivos – o Ken Loach juntou-se à nossa produtora, como realizador freelancer, de documentários mas também de ficção. Naquela época não havia muito dinheiro para fazer filmes, por isso ele começou a trabalhar connosco. Deram-lhe um editor para trabalhar com ele, um editor bastante bom, com quem as coisas correram tão bem que se tornou produtor dele. Portanto, no filme seguinte, precisavam de um novo montador. Ele era obrigado a trabalhar com um montador da empresa, e a empresa escolheu-me a mim. Disseram-lhe: “É este.” Não foi a melhor das apresentações [risos] e ele era um bocado intimidador. Nessa altura era já bastante conhecido. Já tinha feito o Kes [1969] e o Cathy Come Home [1966]. Mas foi assim. Fui alocado ao Ken.

E era um documentário esse primeiro projeto em que trabalharam juntos. 

Um documentário televisivo semidramatizado. Chamava-se Auditions – Three Dancers in Search for a Job [1980]. Era sobre três jovens mulheres à procura de trabalho como bailarinas. Era um pequeno documentário, mas muito interessante. Pouco depois, deixei a empresa, e o primeiro trabalho que fiz depois disso foi uma pequena série documental com o Ken. Foi assim que começámos a trabalhar juntos, em 1980. 

Hoje, importância têm para si esses primeiros trabalhos?

Acho que aquele primeiro documentário que fiz com ele foi o meu melhor trabalho até hoje.

A sério? Porquê?

A sério. Era muito livre, não havia argumento, ele não andava muito por lá. Voltei a vê-lo há poucos anos, em Londres, num festival que mostrou todos os filmes do Ken, e é bastante bom. Bastante bom. 

O que é que o trabalho com Ken Loach, e o género que explora no seu cinema, trouxe ao seu trabalho?

Era super prestigiante trabalhar com o Ken, já na altura, mas não era apenas isso. Posso dar um pequeno exemplo do que é trabalhar com ele: se estivermos, na montagem, à procura de um plano e, ao fim de dois minutos, encontrarmos esse plano, com muitos realizadores é esse o plano que fica. Com o Ken, ele vai continuar, até ao fim, para se certificar de que não há um melhor do que aquele. É um bom exercício de disciplina trabalhar com o Ken. Ao fim de dois ou três filmes com o Ken percebi que queria mesmo continuar a trabalhar com ele. A forma que encontrei de continuar a fazê-lo foi a aceitar filmes pequenos entre os filmes dele, para nunca nos desligarmos. Recusei alguns projetos para não perder oportunidades de trabalhar com o Ken.

Gosta de trabalhar com ele pelo método de trabalho que foram criando juntos, ou sobretudo pelos filmes?

É mais do que isso. Os filmes que fazemos vão muito para lá de uma função de entretenimento. São filmes com um fundo político e, pode parecer pretensioso dizê-lo, mas são filmes que vale a pena fazer: não são descartáveis. São filmes que sobrevivem à passagem do tempo. 

Parece-lhe, de alguma forma, que os filmes de realismo social, que têm em Ken Loach uma importantíssima referência, se têm vindo a tornar mais necessários neste tempo em que vivemos uma vida cada vez mais…

Superficial? Talvez. Tornou-se mais difícil levá-los ao grande público, por muitas razões. Quando o Ken fez o Cathy Come Home, que era ostensivamente sobre os sem-abrigo, na década de 1960, para a televisão, havia dois canais televisivos. E era tudo. Portanto, meio país viu o filme. Nesse tempo, tinha-se uma audiência de 20 milhões de pessoas. Hoje é muito mais difícil. Há um número incontável de canais e, apesar de ser fácil fazer download de um filme, nunca será o o mesmo que meio país a assistir a um filme ao mesmo tempo – e a falar sobre ele no dia seguinte. De resto, acho que estes filmes são sempre necessários. Hoje em dia as pessoas estão é demasiado ocupadas a assistir a filmes como os Vingadores no cinema.

Essa imagem de um filme como o Cathy Come Home a estrear na televisão, e ser tema de conversa no dia seguinte, é de facto impressionante. 

Era de facto assim. Claro que nem toda a gente ficava em casa a ver televisão, havia pessoas que tinham saído, ido para o pub, mas havia essa partilha que vinha de muitas pessoas terem visto o mesmo programa, o mesmo filme, o mesmo documentário na noite anterior. Era maravilhoso.

Ver um filme deveria ser mais do que isso e essa discussão é realmente importante. E cada vez mais rara. 

O Eu, Daniel Blake [2016], teve um grande impacto, que não esperávamos sequer. Ficámos mesmo surpreendidos. Às vezes ainda é possível.