Na exacta altura em que comecei a escrever a minha crónica fui (pouco) surpreendido pela notícia de que Pedro Nuno Santos, antevendo a possibilidade de uma greve dos motoristas de transportes pesados de matérias perigosas, parece entender que “temos todos de nos preparar. O Governo está a fazer o seu trabalho [para evitar a greve], mas todos podíamos começar a precaver-nos, em vez de esperarmos pelo dia 12 [a paralisação], que não sabemos se vai acontecer. Era avisado podermo-nos abastecer para enfrentar com maior segurança o que vier a acontecer”.
Ou seja, depois de, na primeira vez, toda a questão da greve e suas notáveis – por preocupantes – consequências terem passado ao lado do sentido de previsão do ministro, que assistiu algo atónito à paralisação do país, tendo depois de correr atrás do prejuízo, desta vez, porventura conformado com a sua tácita inabilidade, o ministro já ofereceu aos portugueses a solução óbvia para o problema que lhe cumpre resolver, e que é darem como certo que o Governo nada conseguirá, ou fará, tendo a greve como garantida, e tomarem eles próprios as medidas necessárias para que o Estado não precise de fazer a sua função, protegendo-se dos efeitos da greve e também da incompetência do Estado.
Mal comparado, claro está, o sr. ministro segue a ortodoxa linha de actuação deste Governo, seguida por António Costa em variadíssimas intervenções: a culpa foi do Passos. Recordemos o caso da teimosia na manutenção em funções ad nauseam da anterior ministra da Administração Interna e as suas trágicas e dolorosas consequências, e relembremos que já então ardia o país de forma absolutamente descontrolada, com pessoas a sucumbir à impreparação geral do Estado (a que voltaremos nesta peça), e o nosso primeiro-ministro – depois das merecidas férias que se ofereceu enquanto o país ardeu – não encontrou nada melhor que chamar queixinhas aos abandonados cidadãos e repreendê-los professoralmente, dizendo-lhes que não podem contar com um bombeiro atrás de cada árvore e acrescentando paulatinamente, e à medida que a contagem de corpos queimados aumentava, que os portugueses têm de aprender a ser mais resilientes a esta tragédia dos fogos. Vá lá que não se lembrou de dizer que deveriam passar a ser também à prova de fogo.
É muito provavelmente a mesma lógica que Costa já tinha enunciado de que os serviços públicos não funcionam porque as pessoas os usam, como no caso das (maçadoras e inconvenientes) pessoas que fazem bicha para renovar cartões de cidadão caducados, ou dos doentes que teimam em ir aos hospitais públicos. Talvez alguma resiliência às respectivas doenças permitisse ao SNS recuperar algum fôlego.
Contemporaneamente, aliás, vejam-se as notáveis declarações de António Costa no que se refere aos incêndios de Mação! Depois dos episódios de Pedrógão e seus muitos mártires, corpos caídos sobre os quais Costa reclamou o direito a aprender com os erros da sua inépcia, incúria e incompetência, prometendo ir aplicar os ensinamentos dos relatórios dos peritos para futuro, que temos nós?
Dois anos passados sobre os massacres de 2017, o mundo rural – além de estar todo marcado e ainda muito cicatrizado dos violentíssimos incêndios de que por todo lado há ainda sinais visíveis – ainda é e permanece, estruturalmente, o mesmo, com as mesmas exactas fragilidades mas, porventura, mais pobre, porque parte da economia que ardeu ainda não foi reposta. E Costa, depois das palavras de mera circunstância e depois de tomar o amargo remédio que o ausente Marcelo lhe receitou, esqueceu o tema, embalado por um ano de 2018 benéfico para fazê-lo.
Agora, à primeira adversidade e sob o estranho silêncio de Marcelo, Costa, confrontado outra vez com mais do mesmo no que se refere ao sucesso dos seus dispositivos de prevenção e combate aos incêndios de verão e demais medidas, com aquela costumada acrimónia que tem para com o interior desertificado e envelhecido, descarta toda e qualquer responsabilidade sua e vem, em linha consigo mesmo, afirmar que “os autarcas são os primeiros responsáveis pela protecção civil em cada concelho”, lavando as suas mãos como Pilatos no credo e remetendo a responsabilidade para as populações, outra vez, como já havia feito em 2017.
Como a ignomínia não tem limites, em auxílio desta ideia gregária e segregadora do país esquecido do interior, que deve autodefender-se, apressou-se o prestável dr. Eduardo Cabrita a replicar a ideia do chefe, reforçando para mais a ideia de que a câmara não teria sido célere a activar os planos de emergência municipal.
Soube-se, entretanto, que o referido plano de emergência municipal que o ministro acusou o autarca de não acionar em tempo, afinal, nem sequer estava despachado pelo ministro e que a respectiva aprovação chegou por SMS quando o fogo já estava em fase de rescaldo.
Desconhece-se, até à presente data, qualquer retratação ou público pedido de desculpas do sr. ministro por tamanho dislate.
É a vergonha mínima para a incompetência máxima. O despudor, a impreparação e a perseguição cega, maquinal e sem qualquer verdadeira sindicância da sociedade civil e dos média deste projecto de poder que só a espaços (e normalmente por improvável coincidência) serve os interesse do país têm destas coisas: um país em chamas sem culpa do Governo; o SNS em colapso por culpa de haver doentes; serviços públicos em ruptura por terem de atender utentes; e transportes públicos lotados por afluência de passageiros apesar da supressão de 60% do material circulante.
Advogado na norma8advogados
pf@norma8.pt
Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990