Reforma dos centros de saúde não chegou ao interior

Reforma dos centros de saúde não chegou ao interior


Relatório anual do Observatório Português dos Sistemas de Saúde revela que há 138 concelhos que ainda não têm Unidades de Saúde Familiar. E faltam 1600 psicólogos.


Treze anos depois do pontapé de saída, metade dos concelhos do país ainda não viram chegar a reforma dos cuidados primários. São 138 os municípios que ainda não têm nenhuma Unidade de Saúde Familiar (USF) em funcionamento, o modelo de cuidados criado em 2006 para garantir maior proximidade à população e cobertura de médicos e enfermeiros para todas as famílias. A conclusão surge no Relatório da Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, publicação anual que traça o diagnóstico do SNS.

Este ano, os temas em análise são o atraso na reforma dos cuidados primários, o acesso à saúde mental, a resposta ao VIH e o acesso à medicação. Se, no ano passado, o relatório tinha alertado que, ao ritmo atual, só em 2030 estaria concluída a reforma dos centros de saúde, a nova publicação, que é apresentada esta quinta-feira em Lisboa, conclui que as USF que abriram nos últimos 13 anos vieram beneficiar sobretudo a população do litoral, enquanto a restante população, sobretudo o interior, continua a depender dos centros de saúde convencionais, onde existem doentes sem médico de família – atualmente 780 mil, a maioria na periferia da Região de Lisboa e Vale do Tejo – e as equipas não têm os mesmos incentivos, até financeiros, para melhorar o desempenho e as infraestruturas. Mais: “As USF abriram em concelhos com indicadores socioeconómicos mais favoráveis e com melhores resultados em saúde”, lê-se no relatório.

O documento refere uma “dupla penalização dos utentes sem equipa de saúde e a acentuação das desigualdades entre unidades funcionais, ao premiar sempre os melhores.” Para além de não terem um médico ou equipa que os acompanhe, “os utentes fora das listas dos médicos recorrem a unidades, tipicamente UCSP, que têm geralmente piores resultados nas métricas de desempenho e maiores limitações na obtenção de incentivos que poderiam contribuir para melhorias na prestação de cuidados, conduzindo a uma estagnação das unidades”, prossegue o documento, sublinhando o país a duas velocidades.

“Ao invés, as unidades com melhores resultados, na sua generalidade USF, tem recursos humanos que valorizam a melhoria do seu desempenho e têm maior autonomia e capacidade de se envolverem na mudança organizacional, sentindo-se reconhecidos. Além disso, através dos incentivos dispõem de recursos materiais para a qualificação das equipas e melhorar as unidades já bem apetrechadas, contribuindo para o alargamento do fosso com as restantes”.

Foi bom, mas para quem teve acesso

Rogério Gaspar, porta-voz da coordenação do relatório, considera preocupante o grau de assimetria encontrado, em linha com estudos anteriores, mas que mostra este ano a clivagem entre litoral e interior. “É a divisão clássica no país e diz-nos que em zonas mais desfavorecidas de infraestruturas houve menor progressão da reforma dos cuidados primários, o que é preocupante, porque estamos a falar de um direito básico de acesso à saúde”, disse ao i. “Implementarem-se modelos de maior proximidade é bom, mas é bom para os cidadãos que têm acesso a eles. A diferença entre aqueles que têm acesso a este modelo e os que estão menos protegidos agravou-se”.

Até ao final de 2018 tinham aberto 528 USF, concentradas então em 140 dos 278 concelhos de Portugal continental. No início da reforma, há 13 anos, estimou-se que seriam necessárias 820 a 850 para abranger toda a população.

Este ano, segundo os dados disponíveis no Portal do SNS, abriram apenas três. O estudo conclui, no entanto, que as comparações entre modelos não podem ser lineares, precisamente pelas diferenças na população abrangida, com uma proporção maior de idosos e de mortalidade geral e específica, um nível inferior de educação, rendimento e de poder de compra, tudo determinantes de saúde. Tendo este aspeto como pano de fundo, a equipa concluiu que a taxa de internamentos evitáveis por doenças como diabetes e dos aparelhos circulatório e respiratório tem vindo a aumentar gradualmente em todos os concelhos, mais nos que não têm USF. No caso por exemplo de infeções do trato urinário, o aumento é menor nos concelhos abrangidos pela reforma dos cuidados primários. Também as idas às urgências têm estado a aumentar nos últimos anos em todos os concelhos, mas o estudo conclui que os episódios de urgência são mais elevados nos concelhos sem USF.

“As atuais assimetrias no desempenho não podem ser atribuídas exclusivamente a ineficiências na organização ou da motivação das equipas das UCSP. Estas devem-se também, como vimos acima, às diferenças da população a que prestam cuidados, a par com outras limitações, como o desinvestimento neste modelo organizativo e as carências de recursos humanos, particularmente na periferia urbana e no sul do país”, conclui o relatório, que recomenda que seja garantido um novo impulso à reforma dos cuidados primários e que seja garantida autonomia financeira às unidades.

Adesão voluntária é suficiente?

Desde 2006 que a constituição de USF assenta na candidaturas de equipas de profissionais que têm de ser autorizadas pelo Governo, com a passagem para o modelo B em que são atribuídos incentivos financeiros aos elementos a depender de nova candidatura e autorização. Faz sentido manter-se a adesão voluntária?

Rogério Gaspar diz que as opiniões se dividem e que o observatório não tem uma posição, mas acredita que vale a pena refletir. “Se, voluntariamente, este modelo, por todas as assimetrias de base que existem no país e que não são específicas da saúde, é mais difícil de implementar nestas regiões, provavelmente é preciso desenvolver condições de estímulo para que possam surgir”, diz, defendendo o envolvimento de autarquias e dando o exemplo de incentivos para a fixação de profissionais, como já existem nalgumas câmaras. “Vendo que há zonas do país que estão a ficar a descoberto, é preciso pensar no que é preciso fazer para corrigir isto. Há outra alternativa, que é concluir que a reforma não produz resultados e alterar o modelo. Isso é legítimo; o que não é legítimo é manter-se esta situação”.

Défice de 1618 psicólogos

Outra área em que o relatório é taxativo é no atraso no campo da saúde mental, não obstante haver legislação e planos orientadores para reforço das respostas em comunidade.

O observatório refere que em 2015, os últimos dados a que teve acesso, existiam apenas 601 psicólogos no SNS, um rácio de 0,2 por 5 mil habitantes, quando a recomendação é de um profissional para cada 5 mil pessoas. Estimam assim um défice de 1618 psicólogos nos centros de saúde. Dos atuais, metade estão na zona de Lisboa e Vale do Tejo, 26% no Norte e os restantes no Centro, Alentejo e Algarve, mais uma distribuição “heterogénea”, conclui a equipa. “O investimento em mais psicólogos no SNS, especialmente nos cuidados de saúde primários, não só representa maior acessibilidade ao apoio psicológico por parte dos pacientes como possibilita a adoção de tratamentos mais custo-efetivos, a diminuição da prevalência de problemas de saúde mental, a poupança em cerca de 20% a 30% dos custos e diminuição das idas às urgências, das hospitalizações e do tempo de internamento”, lê-se no relatório. “Potencialmente, estamos a agravar os problemas de saúde mental”, conclui Rogério Gaspar.