Desconstruir


Teria sido mais honesto da parte do Público fazer das duas uma: ou recusar a publicação do artigo, ou dar uma ideia completa do espetro de reações que ele suscitou. Como é evidente, muita gente que leu o artigo concordou na íntegra ou em grande parte com o que ele exprime.


Vivemos rodeados de guerras culturais, das quais um bom exemplo é um recente artigo de Maria de Fátima Bonifácio, publicado no jornal Público, que deu origem a um editorial do mesmo jornal que diz “Indigno”. “Vergonhoso”. “Insultuoso”. Durante este sábado, muitos leitores fizeram questão de protestar contra a publicação do artigo da historiadora Maria de Fátima Bonifácio com o título “Podemos? Não, não podemos”. (…) O Público orgulha-se da sua tradição de estar na linha da frente do combate ao racismo ou a qualquer tipo de discriminação baseada na cor da pele, na sexualidade ou no género. Torna-se por isso imperativo explicar o processo e as razões que levaram à publicação. E dar conta das consequências que esta opção tem de merecer para o futuro.

O texto em causa está, no mínimo, nos limites do discurso de ódio, faz generalizações que põem em causa o combate à discriminação racial, usa linguagem insultuosa para diferentes minorias e coloca ênfase numa radical oposição civilizacional entre os ‘nós’ europeus e os ‘outros’, africanos ou ‘nómadas’. Estão, por isso, em causa ideias, apologias e valores (…)”.

Teria sido mais honesto da parte do Público fazer das duas uma: ou recusar a publicação do artigo, ou dar uma ideia completa do espetro de reações que ele suscitou. Como é evidente, muita gente que leu o artigo concordou na íntegra ou em grande parte com o que ele exprime.

Mas há por aí muito ideólogo assanhado que gostaria de poder recusar a quem pensa diferentemente a possibilidade de se exprimir. O simples facto de a direção do Público se ter sentido na obrigação de explicar a sua “cedência” à publicação do artigo, como que a pedir desculpa, é sintomático da ditadura do politicamente correto em que vivemos.

Mais sintomático ainda é o facto de o artigo ter “desaparecido” do site do jornal e da internet, como se não tivesse sido escrito, e apenas as reações negativas existissem…

Uma das coisas mais extraordinárias dos tempos que correm é o facto de a esquerda ter conseguido instalar na praça pública a ideia de que existe um standard de pensamento obrigatório e que quem pense diferentemente está, na melhor das hipóteses, “nos limites do discurso de ódio, faz generalizações que põem em causa o combate à discriminação racial, usa linguagem insultuosa para diferentes minorias e coloca ênfase numa radical oposição civilizacional entre os ‘nós’ europeus e os ‘outros’”.

Há outra guerra cultural em curso que devia fazer-nos refletir um pouco mais: em meados dos anos 70, a Câmara Municipal de Viana do Castelo decidiu vender em hasta pública um terreno, em frente a um jardim, onde estava instalado o mercado municipal. O terreno foi arrematado por um tal Coutinho, que licenciou e construiu um prédio chamado Edifício Jardim, mais conhecido por Prédio Coutinho. No seu apogeu, o dito cujo albergou cerca de 200 famílias que compraram e ocuparam apartamentos no prédio, onde fizeram a sua vida por décadas.

No Governo Guterres, um tal José Sócrates, secretário de Estado do Ambiente, lançou um programa Polis que se destinava a requalificar áreas citadinas degradadas. Em Viana do Castelo, a câmara socialista obtemperou e, para agrado do senhor secretário de Estado, propôs a demolição do Prédio Coutinho.

Não que o edifício fosse ilegal. Não era, tinha sido licenciado dentro de toda a legalidade. A questão é que era feio. Feio! Um mamarracho! Neste país cuja arquitetura moderna é toda ela uma obra de arte, o Prédio Coutinho destoava por ser feio. Daí que fosse necessário demoli-lo por razões imperativas de estética. E, já agora, porque tinha boa vista…

O caso andou para lá e para cá em tribunal, ao sabor de maiorias políticas, até que o extraordinário personagem que dá pelo nome de Matos Fernandes e está ministro do Ambiente decidiu, na sua alta sabedoria, “mandar abaixo” o mamarracho.

Vivem no prédio uns quantos “fascistas” que reclamam o seu direito ao usufruto e gozo da propriedade que com esforço adquiriram. Erro deles: se fossem arrendatários, estavam protegidos pelas leis do Governo de que o sr. Matos Fernandes é ministro. A tentativa de os expulsar das suas casas seria até crime de “assédio de inquilino”; acontece que cometeram o crime de serem proprietários e as Mortáguas que cá mandam não gostam de “quem mais acumula” – e, por isso, rua, que é a sala dos cães!

O dito Fernandes, fazendo um esforço para parecer ainda mais um soba africano (lá está, discurso de ódio…) ameaçou os proprietários com as duras penas da justiça acusando-os de estarem a obstruir a prossecução do bem público, que é acabar com o feio.

E, no entretanto, atuou com decisão e severidade e ordenou o corte de água, luz e demais serviços básicos ao prédio, iniciando, segundo os jornais como o Público, a “desconstrução” do mesmo.

Noutras circunstâncias, chamar-se-ia a isto violência de Estado. Nestas, os jornais adotaram uma expressão da “novilíngua”, uma excrescência estalinista tão conforme aos tempos do politicamente correto: DESCONSTRUÇÃO.

Desconstruir não é demolir, é preparar o futuro radioso! É acabar com o feio! Não posso deixar de me lembrar do maravilhoso poema de Vinicius de Moraes “O operário em construção” e adapto-o a esta história com o título “O proprietário em desconstrução”, da seguinte forma: “Era ele que comprava casas onde antes só havia chão./ Como um pássaro sem asas/ Ele subia com as casas/ Que lhe brotavam da mão./ Mas tudo desconhecia/ De sua grande missão:/ Não sabia, por exemplo/ Que a casa de um homem é um templo …”. O Estado tentou dobrá-lo e expulsá-lo do seu templo (lá dizem os ingleses que a casa de um homem é o seu castelo), tentando-o: “Sentindo que a violência/ Não dobraria o proprietário/ Um dia tentou o Estado/ Dobrá-lo de modo vário./ De sorte que o foi levando/ Ao alto da construção/ E num momento de tempo/ Mostrou-lhe toda a região (o que no caso é fácil, porque a vista do prédio é maravilhosa)/ E apontando-a ao proprietário/ Fez-lhe esta declaração:/ – Dar-te-ei todo esse poder/ E a sua satisfação/ Porque a mim me foi entregue/ E dou-o a quem bem quiser.” (e, em boa verdade, não lhe custa nada, porque o dinheiro é do erário público).

Mas o proprietário não cedeu. “E o proprietário disse: Não!/ E o proprietário fez-se forte/ Na sua resolução”. E o que fez o Estado? “O Estado não queria/ Nenhuma preocupação/ – ‘Convençam-no’ do contrário/ – Disse ele sobre o proprietário/ E ao dizer isso sorria./ Dia seguinte, o proprietário/ Ao sair da construção/ Viu-se súbito cercado/ Dos homens da opressão/ E sofreu, por destinado/ Sua primeira agressão./ Teve seu rosto cuspido/ Teve seu braço quebrado/ Mas quando foi perguntado/ O proprietário disse: Não!/ Em vão sofrera o proprietário/ Sua primeira agressão/ Muitas outras se seguiram/ Muitas outras seguirão”.

“Loucura! – gritou o Estado,/ Não vês o que te dou eu?/ – Mentira! – disse o proprietário,/ Não podes dar-me o que é meu”.

Em suma: não sabemos como esta história acabará, sabemos que é mais um tijolo na desconstrução dos nossos direitos de cidadãos, na desconstrução da qualidade da nossa democracia, mais um reforço da prepotência do Estado que temos.

Que ninguém reaja para além dos “Proprietários em desconstrução” é que me choca!

 

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”


Desconstruir


Teria sido mais honesto da parte do Público fazer das duas uma: ou recusar a publicação do artigo, ou dar uma ideia completa do espetro de reações que ele suscitou. Como é evidente, muita gente que leu o artigo concordou na íntegra ou em grande parte com o que ele exprime.


Vivemos rodeados de guerras culturais, das quais um bom exemplo é um recente artigo de Maria de Fátima Bonifácio, publicado no jornal Público, que deu origem a um editorial do mesmo jornal que diz “Indigno”. “Vergonhoso”. “Insultuoso”. Durante este sábado, muitos leitores fizeram questão de protestar contra a publicação do artigo da historiadora Maria de Fátima Bonifácio com o título “Podemos? Não, não podemos”. (…) O Público orgulha-se da sua tradição de estar na linha da frente do combate ao racismo ou a qualquer tipo de discriminação baseada na cor da pele, na sexualidade ou no género. Torna-se por isso imperativo explicar o processo e as razões que levaram à publicação. E dar conta das consequências que esta opção tem de merecer para o futuro.

O texto em causa está, no mínimo, nos limites do discurso de ódio, faz generalizações que põem em causa o combate à discriminação racial, usa linguagem insultuosa para diferentes minorias e coloca ênfase numa radical oposição civilizacional entre os ‘nós’ europeus e os ‘outros’, africanos ou ‘nómadas’. Estão, por isso, em causa ideias, apologias e valores (…)”.

Teria sido mais honesto da parte do Público fazer das duas uma: ou recusar a publicação do artigo, ou dar uma ideia completa do espetro de reações que ele suscitou. Como é evidente, muita gente que leu o artigo concordou na íntegra ou em grande parte com o que ele exprime.

Mas há por aí muito ideólogo assanhado que gostaria de poder recusar a quem pensa diferentemente a possibilidade de se exprimir. O simples facto de a direção do Público se ter sentido na obrigação de explicar a sua “cedência” à publicação do artigo, como que a pedir desculpa, é sintomático da ditadura do politicamente correto em que vivemos.

Mais sintomático ainda é o facto de o artigo ter “desaparecido” do site do jornal e da internet, como se não tivesse sido escrito, e apenas as reações negativas existissem…

Uma das coisas mais extraordinárias dos tempos que correm é o facto de a esquerda ter conseguido instalar na praça pública a ideia de que existe um standard de pensamento obrigatório e que quem pense diferentemente está, na melhor das hipóteses, “nos limites do discurso de ódio, faz generalizações que põem em causa o combate à discriminação racial, usa linguagem insultuosa para diferentes minorias e coloca ênfase numa radical oposição civilizacional entre os ‘nós’ europeus e os ‘outros’”.

Há outra guerra cultural em curso que devia fazer-nos refletir um pouco mais: em meados dos anos 70, a Câmara Municipal de Viana do Castelo decidiu vender em hasta pública um terreno, em frente a um jardim, onde estava instalado o mercado municipal. O terreno foi arrematado por um tal Coutinho, que licenciou e construiu um prédio chamado Edifício Jardim, mais conhecido por Prédio Coutinho. No seu apogeu, o dito cujo albergou cerca de 200 famílias que compraram e ocuparam apartamentos no prédio, onde fizeram a sua vida por décadas.

No Governo Guterres, um tal José Sócrates, secretário de Estado do Ambiente, lançou um programa Polis que se destinava a requalificar áreas citadinas degradadas. Em Viana do Castelo, a câmara socialista obtemperou e, para agrado do senhor secretário de Estado, propôs a demolição do Prédio Coutinho.

Não que o edifício fosse ilegal. Não era, tinha sido licenciado dentro de toda a legalidade. A questão é que era feio. Feio! Um mamarracho! Neste país cuja arquitetura moderna é toda ela uma obra de arte, o Prédio Coutinho destoava por ser feio. Daí que fosse necessário demoli-lo por razões imperativas de estética. E, já agora, porque tinha boa vista…

O caso andou para lá e para cá em tribunal, ao sabor de maiorias políticas, até que o extraordinário personagem que dá pelo nome de Matos Fernandes e está ministro do Ambiente decidiu, na sua alta sabedoria, “mandar abaixo” o mamarracho.

Vivem no prédio uns quantos “fascistas” que reclamam o seu direito ao usufruto e gozo da propriedade que com esforço adquiriram. Erro deles: se fossem arrendatários, estavam protegidos pelas leis do Governo de que o sr. Matos Fernandes é ministro. A tentativa de os expulsar das suas casas seria até crime de “assédio de inquilino”; acontece que cometeram o crime de serem proprietários e as Mortáguas que cá mandam não gostam de “quem mais acumula” – e, por isso, rua, que é a sala dos cães!

O dito Fernandes, fazendo um esforço para parecer ainda mais um soba africano (lá está, discurso de ódio…) ameaçou os proprietários com as duras penas da justiça acusando-os de estarem a obstruir a prossecução do bem público, que é acabar com o feio.

E, no entretanto, atuou com decisão e severidade e ordenou o corte de água, luz e demais serviços básicos ao prédio, iniciando, segundo os jornais como o Público, a “desconstrução” do mesmo.

Noutras circunstâncias, chamar-se-ia a isto violência de Estado. Nestas, os jornais adotaram uma expressão da “novilíngua”, uma excrescência estalinista tão conforme aos tempos do politicamente correto: DESCONSTRUÇÃO.

Desconstruir não é demolir, é preparar o futuro radioso! É acabar com o feio! Não posso deixar de me lembrar do maravilhoso poema de Vinicius de Moraes “O operário em construção” e adapto-o a esta história com o título “O proprietário em desconstrução”, da seguinte forma: “Era ele que comprava casas onde antes só havia chão./ Como um pássaro sem asas/ Ele subia com as casas/ Que lhe brotavam da mão./ Mas tudo desconhecia/ De sua grande missão:/ Não sabia, por exemplo/ Que a casa de um homem é um templo …”. O Estado tentou dobrá-lo e expulsá-lo do seu templo (lá dizem os ingleses que a casa de um homem é o seu castelo), tentando-o: “Sentindo que a violência/ Não dobraria o proprietário/ Um dia tentou o Estado/ Dobrá-lo de modo vário./ De sorte que o foi levando/ Ao alto da construção/ E num momento de tempo/ Mostrou-lhe toda a região (o que no caso é fácil, porque a vista do prédio é maravilhosa)/ E apontando-a ao proprietário/ Fez-lhe esta declaração:/ – Dar-te-ei todo esse poder/ E a sua satisfação/ Porque a mim me foi entregue/ E dou-o a quem bem quiser.” (e, em boa verdade, não lhe custa nada, porque o dinheiro é do erário público).

Mas o proprietário não cedeu. “E o proprietário disse: Não!/ E o proprietário fez-se forte/ Na sua resolução”. E o que fez o Estado? “O Estado não queria/ Nenhuma preocupação/ – ‘Convençam-no’ do contrário/ – Disse ele sobre o proprietário/ E ao dizer isso sorria./ Dia seguinte, o proprietário/ Ao sair da construção/ Viu-se súbito cercado/ Dos homens da opressão/ E sofreu, por destinado/ Sua primeira agressão./ Teve seu rosto cuspido/ Teve seu braço quebrado/ Mas quando foi perguntado/ O proprietário disse: Não!/ Em vão sofrera o proprietário/ Sua primeira agressão/ Muitas outras se seguiram/ Muitas outras seguirão”.

“Loucura! – gritou o Estado,/ Não vês o que te dou eu?/ – Mentira! – disse o proprietário,/ Não podes dar-me o que é meu”.

Em suma: não sabemos como esta história acabará, sabemos que é mais um tijolo na desconstrução dos nossos direitos de cidadãos, na desconstrução da qualidade da nossa democracia, mais um reforço da prepotência do Estado que temos.

Que ninguém reaja para além dos “Proprietários em desconstrução” é que me choca!

 

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”