“Tenho imensas coisas com etiqueta ainda que nunca sequer utilizei”, confessa Inês (nome fictício), de 26 anos. “Comprar coisas, chegar a casa e ter igual, e nem me lembrar que as tinha”, é algo que também lhe acontece. “Ando a tentar controlar-me, o que às vezes é difícil”, afirma.
“Tenho mais de 40 batons. Para que preciso de tanto batom?”, perguntou-se a si própria Daniela (nome fictício), de 22 anos. “Tenho de parar”.
Que vício é este? A oniomania descreve a incapacidade de comprar de maneira moderada. Foi descrita pela primeira vez em 1924 pelo psiquiatra alemão Emil Kraepelin, a quem é atribuída a primeira referência clínica aos maníacos por compras. É, de acordo com a coordenadora da Unidade de Psiquiatria e Psicologia do Hospital Lusíadas de Lisboa, Ana Peixinho, uma perturbação psiquiátrica crónica e prevalente que se caracteriza por um comportamento crónico e repetitivo que é difícil de ser interrompido e tem consequências prejudiciais. “Tive uma paciente que vendeu um apartamento para pagar as dívidas. Um ano depois já tinha dívidas de 40 mil a 50 mil euros só em compras”, conta ao i um psicólogo para quem o fenómeno das compras compulsivas também não é estranho. Comprar sem motivo, acumular objetos e créditos são os riscos, que podem esconder problemas mais profundos.
Quando as compras são “uma compensação de algo”, há um problema, principalmente quando “começa a ser prejudicial a outros níveis, como o nível financeiro”, exemplifica a psicóloga Susana Nascimento. Quando se deixa de conseguir controlar os impulsos, os casos passam a ser preocupantes e encaixam na definição de dependência, explica.
Entre os casos que chegam aos consultórios, alguns são de pessoas que percebem que algo de errado se passa na sua vida. O vício leva a dívidas, sentimentos de culpa e ataques de pânico. “Ao longo do tempo fazem mais compras, gastam mais dinheiro”. E se não conseguem fazê-lo “quase que ressacam”, explicou um psicólogo ouvido pelo i.
Entre o pior que pode acontecer está a perda total de património, como a perda de uma casa. Mas os efeitos psicológicos não são menores.
Estima-se que 80% das pessoas que têm a patologia são mulheres, mas a condição afeta ambos os sexos. Jovens que atingiram a sua independência económica também podem ceder aos impulsos de compra mas, aí, é a incapacidade de poupança que se evidencia. Personalidades narcisistas também parecem mais vulneráveis. E é ainda muito natural pacientes que “deixam um comportamento aditivo, um jogo ou drogas” compensarem-se com compras. “É um mecanismo de substituição”, explicou o mesmo psicólogo.
Objetivo: comprar Ao contrário de um consumidor “normal, o compulsivo foca-se no processo de compra, e não no produto que quer comprar. A motivação principal é a elevação do statu quo e a camuflagem de emoções negativas e até depressões. Se, por um lado, gosta muito de exibir o que compra, por outro esconde os objetos para não ser alvo de críticas.
A psicóloga Susana Nascimento acrescenta que o facto de vivermos numa sociedade consumista influencia “bastante” este tipo de transtorno. Já de acordo com o diretor clínico da Universidade Psiquiátrica Privada de Coimbra, Joaquim Cerejeira, há uma tendência para que os casos de oniomania aumentem. A principal razão são as campanhas promocionais hoje disseminadas. As compras na internet também não ajudam, porque nela “a noção de dinheiro é mais volátil”, comenta o psicólogo, que segue casos de vícios.
É frequente os viciados não admitirem que o são porque há uma “difícil aceitação da realidade”, explicou a especialista em bem-estar. “A mentira é um mecanismo de defesa, da nossa integridade e do nosso eu”, e é por isso que muitos a usam. Aceitar seria “doloroso”. Mas, ao mesmo tempo, não assumir é inconsciente porque as pessoas “não estão a esconder de propósito”.
Os especialistas notam ainda que é preciso diferenciar a satisfação de fazer compras do vício, já que ir às compras moderadamente e ver nisso um motivo de felicidade é normal. Caso o vício se verifique, a “ajuda de um profissional é muitas vezes valiosa”, diz Susana Nascimento.
As estratégias para lidar com cada caso podem incluir técnicas como a hipnoterapia cognitiva. Além do mais, acrescenta, “quando as pessoas já têm na sua personalidade um traço de comportamento obsessivo-compulsivo, é mais complicado, é preciso mais ajuda e mais tempo.” A prática de atividade física como substituto é aconselhada, bem como medidas diretas como o cancelamento dos cartões de crédito.
À procura da fronteira É normal ter prazer em comprar? Sim. Comprar algo de que se gosta liberta endorfinas, que causam uma sensação de bem-estar, tal como comer algum alimento que se adore ou ter relações sexuais. Aliás, as compras feitas com moderação têm benefícios como a conexão social, o auxílio à criatividade, relaxar e espairecer e ter capacidade de transição.
Susana Nascimento explica que fazer compras pode ser “um miminho de quem tem consciência de si próprio, de quem tem amor-próprio, e aí é por valorização”, ou seja, é algo positivo. “É claro que é positivo as pessoas mimarem-se desde que não ultrapassem determinados limites”, acrescenta. Na sua opinião, vive-se uma época em que, “a nível emocional, as pessoas são desligadas de si próprias” e deve pensar-se que “primeiro [estamos] nós” – portanto, não há mal nenhum haver mimos.
A relação com as compras “Nunca fiz compras por impulso”, partilha Leonor (nome fictício), de 24 anos. “Sinto-me feliz porque já passei por épocas complicadas e é uma questão de conquista conseguir ir às compras minimamente em condições. Costuma ser sempre assim, mas se for para ir comprar alguma coisa que não estava no plano mensal custa-me horrores”.
Luísa (nome fictício), de 22 anos, também tem orçamentos fixos e reduzidos. Admite comprar algo todas as semanas. “Para mim, ir às compras é como uma terapia”, contou.
E há quem se identifique com os dois lados da moeda, o da felicidade e o da frustração. Diogo (nome fictício), de 25 anos, divide as compras que faz em planeadas e não planeadas, e são as primeiras que o deixam mais feliz. Nas compras planeadas, explica, “houve todo um processo de sentir a necessidade de comprar algo, imaginar-me a utilizar o que quero e os supostos benefícios que vou ter com isso”. Basta, descreve, “chegar ao local onde vendem o produto, estar disponível e adquiri-lo sem que o gasto me prejudique as finanças”. Mas, continua, “se um destes fatores falhar, começa a frustração. O pior é criar a expetativa de comprar algo, ter condições para tal, chegar ao local e não haver”. Quanto às compras não planeadas, essas são, a seu ver, as “mais perigosas” em termos financeiros e psicológicos.
Comprar quantidades enormes de roupa, sapatos e malas é o mais comum nas mulheres viciadas em compras. Estima-se que, nos EUA, 5,5% da população sofre de oniomania ao longo da vida. Em Portugal não há muitos casos reportados, mas é uma realidade que não surpreende os psicólogos.
Os relatos são comuns, assim como os conselhos. Para evitar compras compulsivas, faça listas, analise o futuro do que compra, evite lojas com música alta, que incentiva o consumo, e evite olhar para os itens perto das caixas de pagamento. São fáceis de levar à última hora e, por norma, pouco úteis.