Agora que a tormenta passou – depois de artigos e observações de comentadores, reconhecidos na praça, revelando a mais profunda ignorância ou, pior, mesmo que associada, a mais descarada demagogia – importa analisar com alguma serenidade e sentido crítico o que releva da discussão do Estatuto do Ministério Público (EMP).
Para o fazer convém, contudo, notar que a discussão do EMP deve ser alcançada em coerência com a do sistema processual penal português.
No conselho superior do MP (CSMP) há cinco membros designados pela AR e dois pelo Governo, que aí é suposto exercerem o controlo que aqueles órgãos de soberania lhes cometem.
Os magistrados eleitos pelos pares são-no em listas diferentes e representam – até agora –, eles próprios, sensibilidades diferentes.
O PGR, que até pode nem ser um magistrado, é designado pelo PR sob proposta do Governo e responde ante eles, que podem acordar na sua demissão a qualquer momento.
O sistema de ação penal é orientado pelo “princípio da legalidade”: obrigatoriedade de abrir inquérito perante uma queixa ou conhecimento de um ato ilícito.
Noutros países, o MP rege-se pelo “princípio da oportunidade” e pode nem sequer abrir inquérito quando crê que é inútil fazê-lo ou quando recebe instruções políticas ou hierárquicas para isso.
No Código de Processo Penal estabelece-se que qualquer cidadão se pode queixar e constituir “assistente” nos autos, mesmo em crimes que não têm vítima particular.
Isto significa que qualquer cidadão pode avançar com uma queixa que determina obrigatoriamente a abertura de um inquérito e que, se o MP o arquivar, ele é notificado e pode pedir ao juiz de instrução – uma autoridade independente e diferenciada do MP – para convalidar ou infirmar o arquivamento do MP.
Há, pois, mecanismos institucionais que acomodam diversos controlos – políticos, judiciais e disciplinares – que não podem ser condicionados pelos magistrados do MP.
O nosso sistema é, porventura, o mais controlado de todos e a todos os níveis.
Dito isto, quer-se significar que nada deve mudar e que o sistema é intocável?
Não o creio e sempre preconizei mudanças no sentido de o tornar mais transparente e eficaz.
Só que qualquer mudança no sistema deve ser precedida de uma discussão séria sobre o que verdadeiramente se pretende, e não com base em preconceitos fundados na ignorância mais bacoca ou na demagogia mais populista, interesseira e, muitas vezes, interessada.
Ora, foi precisamente isso que – fruto de se ter privilegiado a intervenção mediática – aconteceu no nosso país.
O estilo de muitos comentadores dos jornais e da televisão – entre o jocoso, o ressabiado e o simplesmente ignorante – é confrangedor e apenas contribui para adensar a confusão e a desconfiança nas instituições constitucionais da democracia.
Exemplo dessa ignorância as descabidas e repetidas citações sobre os modelos francês e alemão, absolutamente distintos entre si e cujos contornos históricos, políticos e sistémicos, obviamente, tais comentadores desconhecem.
Poder-se-á argumentar que algum discurso associativo não ajudou e que inclusive ajudou a excitar os demónios dos comentários populistas.
É verdade, e daí devem ser retiradas lições e consequências.
É que o veneno populista, depois de largado, expande-se, permanece e dura muito mais do que os processos legislativos que o justificam.
A proposta do Governo tinha todas as condições para proporcionar uma discussão de qualidade sobre a organização do MP, os seus mecanismos de controlo e os de representação das diferentes jurisdições onde intervém.
Podia, pois, concordar-se ou discordar-se de alguns – e importantes – dos seus pontos, mesmo no que respeita a aspetos relacionados com o CSMP.
O que parece injusto é terem-na massacrado violenta e demagogicamente, sem propósito, quando tal proposta representa um avanço enorme para a eficiência da justiça em Portugal.
Escreve à terça-feira