A violência sexual é uma realidade mais conhecida no sexo feminino do que no masculino. Mas a verdade é que muitos homens sofrem este tipo de violência, que é também uma realidade no sexo masculino, ainda que mais escondida. O problema é que, sendo homens, não têm tanto à-vontade para pedir ajuda e contar o horror pelo qual passaram.
Quem o confirma é o psicólogo clínico Américo Baptista. “Para o sexo masculino é sempre muito difícil reconhecer que se é vítima de algum tipo de violência. Nomeadamente a violência sexual, que é ainda mais complicada”, garante. E explica: “Tanto os homens como os rapazes têm mais dificuldades em assumir este tipo de coisas. Depois há outro aspeto que está relacionado com o papel sexual masculino. Eu, por ser vítima de algum tipo de violência sexual, fico com a minha masculinidade afetada e, por isso, tenho muito mais dificuldade em falar sobre isso”.
Esta opinião do psicólogo foi confirmada por um estudo da Universidade da Colúmbia Britânica que revela que, embora os traumas de um abuso sexual sejam tão graves para os homens como para as mulheres, no caso do sexo masculino, a dificuldade em lidar com os traumas e as consequências do ato é maior.
E é exatamente a falta de denúncia que faz com que os casos de violência sexual nos homens não sejam tão conhecidos, sendo muito escassas as estatísticas no que diz respeito a este assunto.
No site da Quebrar o Silêncio – a única associação portuguesa só para homens vítimas de violência sexual –, os testemunhos são muitos e relatam infâncias infelizes, marcadas por medos e memórias que não se apagam. É o caso de J. que, aos 46 anos, garante não ter tido uma infância normal. “É não gostar de si, mas viver com um sorriso, porque ninguém pode saber”, relata.
Também F., de 27 anos, descreve uma infância difícil, de culpa. “Culpa porque eu sentia que gostava e cresci com a certeza de que eu era um monstro também”.
Traumas que custam a passar O primeiro passo para ajudar a superar os traumas é querer ser ajudado. Mas, antes disso, “o prognóstico é muito negativo”, diz ao i Américo Baptista. “O facto de ser vítima de abuso sexual vai provocar uma grande vulnerabilidade na pessoa, que vai sentir-se incapaz de enfrentar a maior parte das situações”, explica o psicólogo, acrescentando que, do ponto de vista psicopatológico, as pessoas vítimas de abuso desenvolvem perturbação pós-traumática do stresse, “que é uma perturbação típica dos prisioneiros de guerra”.
Garante ainda que os efeitos não são apenas psicológicos, uma vez que “quando as crianças ou qualquer outra pessoa são vítimas de abuso, há uma ativação tal que se produzem substâncias no corpo – que se designam por cortisol – e, habitualmente, isso tem um efeito destruidor no cérebro”.
Em muitos casos, é frequente que a vítima – que pode também desenvolver depressões – possa sofrer complicações cerebrais muito grandes e, quando o abuso é precoce, “fica com limitações muito grandes, podendo nunca mais voltar a ser a mesma pessoa”.
Américo Baptista explica ainda que é natural que as vítimas, numa tentativa de se sentirem melhor, procurem apoio no álcool, tabaco ou drogas. Só que “estas experiências provocam ainda mais mal-estar”.
Abusos por familiares Américo Baptista explica que “os abusos estão quase sempre associados a uma relação de intimidade”, o que faz com que a família seja, neste caso, um fator de risco e “um fator ainda mais traumatizante”. “O abuso por um desconhecido é terrível mas, quando é perpetrado por alguém com quem se tem intimidade, vai ser ainda mais complicado porque as crianças, para se desenvolverem, precisam de uma base segura”, que é a família.
Ereção é motivo de culpa Em muitos casos, os rapazes ou homens que sofrem violência sexual podem ter ereções, o que faz com que se sintam culpados, achando que têm prazer por algo que, na verdade, não querem. Américo Baptista tem uma explicação. “Chama-se a isso ereções espontâneas e estão relacionadas com o medo. Em determinadas circunstâncias, por exemplo, em situações de ameaça de morte, pode acontecer”, revela. E por isso defende que não se pode chamar a esse acontecimento ereção sexual. “Este fator pode ser interpretado como sinal de excitação sexual, confundindo a pessoa”, explica.
Sete novos casos por mês À Quebrar o Silêncio têm chegado vários novos casos de homens vítimas de violência sexual, cujos abusos são perpetrados tanto por homens como por mulheres. Desde a sua criação, em 2017, já foram recebidos 369 pedidos de apoio. Feitas as contas, a associação recebe uma média de sete novos pedidos por mês. “A maioria destes casos são de homens que foram vítimas de violência sexual e que procuram apoio pela primeira vez. São sobreviventes que passaram anos a sofrer em silêncio e que agora encontram na Quebrar o Silêncio um porto seguro para falar das suas histórias e recuperar do trauma”, refere Ângelo Fernandes, presidente da associação.
Este também sobrevivente de abuso sexual explica que “a partilha de que um homem foi vítima de abuso sexual não é propriamente algo de que as famílias estejam à espera. Por isso ficam surpreendidas e, muitas vezes, ficam mesmo sem saber o que dizer ou fazer”.