João Gilberto. Morreu o mestre da nuance em música, o pai da bossa nova

João Gilberto. Morreu o mestre da nuance em música, o pai da bossa nova


Entre a delicadeza e o silêncio, João Gilberto apurou um estilo pessoalíssimo que o mundo inteiro quis copiar. Depois de deixar um legado breve e precioso, procurou sair do tempo e escapar ao mundo, coisa que este não lhe perdoou.


Era a festa de um só, e durava há 88 anos. Este sábado, a morte achou que estava na hora de pôr fim à coisa. E se João Gilberto a viu, talvez nem haja esboçado o menor gesto de resistência. Depois de uma vida tão teimosamente dedicada à delicadeza, pra quê discutir com madame? Alguém o ouviu dizer, certa vez: “Não se pode machucar o silêncio, que é sagrado”. Mas é natural que os muitos que, de fora, foram acompanhando o seu equilíbrio andando sempre sobre o fio sintam a notícia como uma desilusão. Afinal, secretamente todos esperamos que um dia alguém desafie de forma o mais literal possível essa barreira da mortalidade. E quem melhor do que João Gilberto para se ir eternizando, ficar de pijama nalgum canto, barricado, sem incomodar demasiado, e metido lá, como dizia Ruy Castro, nessa sua “missão, por definição, maluca e impossível – aperfeiçoar a perfeição”.

Parece ter sido Caetano Veloso quem mais rejeitou a naturalidade deste desaparecimento. Vincando que, mesmo se foi aos 88 anos, e com aspeto de quem não viveria mais muito tempo, “João morrer é acontecimento assustador”. E porquê? Diz Caetano que não é só um corpo que desce à terra, mas um elo que se perde. E lembra como ele segurava em linha outros fantasmas, vultos da música brasileira como Orlando Silva, Ciro Monteiro, Jackson do Pandeiro, Ary, Caymmi, Wilson Batista e Geraldo Pereira, que “não teriam sido o que são não fosse por João Gilberto”. E Ruy Castro reforça que se ele inventou a batida do violão que serviu de ímpeto a uma brisa musical que correu o mundo, isso “foi só a senha, o passaporte para crescer com ele tudo o que tinha acumulado de conhecimento de música brasileira”. Autor da biografia do movimento, sublinha que “João Gilberto não foi apenas o inventor da bossa nova, foi o grande portador de uma herança cultural brasileira”, e acrescenta que “ele conhecia tudo o que se tinha feito dos anos 30 aos anos 60”. Assim, o seu génio estava na síntese, numa lição incansável que aproveita o balanço do que veio antes e como se já suspeitasse o que virá depois. Compreende-se, por isso, o receio de Caetano, pois quando um astro desta dimensão se apaga, parece que é o céu que despenca.

“Viver é defender uma forma”, escreveu Hölderlin, e poucos terão insistido a vida inteira ao ponto de tornar mais expressivo este ideal. E custa até a perceber para quem não percebe assim tanto de música como um ser tão retirado possa ter tido um tão grande impacto. Caetano diz que “com sua voz e seu violão, ele refez a função da fala e a história do instrumento”. Não se tratou, portanto, apenas de ter apanhado a batida do tamborim com os três dedos da mão direita, mais a do surdo com o polegar, desacelerando o samba. Houve ali uma operação decisiva. Se manteve a cadência, quase como um mantra, para aplicar sobre ela uma divisão rítmica matemática, como explicava Carlos Galilea, lembrando que isto lhe permitia cantar “adiantando-se ou atrasando-se em relação ao violão”, deixando os aspetos técnicos, talvez o crítico musical e amigo pessoal do cantor Zuza Homem de Mello tenha sido mais claro ao afirmar que a imagem que guarda dele “é a de um Quixote que luta por afinar um universo inevitavelmente desafinado”.

João Gilberto fica para a história como o pai da bossa nova, mas sendo um mestre da nuance é natural que só um poeta, que fez algo parecido com as palavras, tenha sido capaz de traduzir aquilo que João Gilberto fez na música. No longo poema “A Palo Seco”, que João Cabral de Melo Neto lhe dedica, regista esse avanço de perceção que deixa cair todo o ornamento: “não o de aceitar o seco/ por resignadamente,/ mas de empregar o seco/ porque é mais contundente”.

João Gilberto Prado Pereira de Oliveira nasceu a 10 de junho de 1931 em Juazeiro, no estado brasileiro da Baía. Ainda adolescente, resguardava-se do “calor dantesco” que fazia na cidade debaixo de um gigantesco tamarineiro na praça da Matriz, e ali, como conta Ruy Castro em Chega de Saudade (ed. Tinta da China), na companhia de outros que refaziam de ouvido as suas almas a partir dos sucessos que iam chegando pela rádio, formou o seu primeiro grupo de violão e entregou-se a uma paixão que o fez desistir dos estudos. O grupo gozou de uma certa celebridade regional com o seu espetáculo ao vivo, o qual se tornou uma atração numa Juazeiro que não tinha uma vida noturna propriamente estimulante. João Gilberto viria a trocar a cidade natal por Salvador, e, aos 19 anos, quando já cantava na Rádio Sociedade da Bahia, mudou-se para o Rio de Janeiro, aceitando o convite para substituir o vocalista dos Garotos da Lua, Jonas Silva, porque este “cantava baixinho”. Em 1952 gravou um primeiro disco, que saiu e mal foi tocado pelas rádios antes de cair no esquecimento. Embora ninguém esperasse grande coisa, João Gilberto sentiu-o como um grande fracasso mas, como lembra Ruy Castro, essa gravação é crucial para se perceber que, muito jovem, estava ali um cantor tecnicamente irrepreensível: “Sua tranquila superioridade ao cantar lembrava Orlando Silva na grande fase, quando nem uma mosca no estúdio parecia perturbar o ‘Cantor das multidões’”. Os anos que se seguiram e que antecederam a gravação de Chega de Saudade, a 10 de julho de 1958, essa canção com letra de Vinicius de Moraes e música de Tom Jobim e que teve um impacto de tal ordem que “dividiu a cultura brasileira em antes e depois”, foram dos piores na vida do cantor. Ruy Castro conta que “no início de 1955, João Gilberto havia chegado ao seu fundo do poço no Rio. Estava sem dinheiro, sem trabalho e quase sem amigos. O orgulho flechado por todos os lados fizera sua auto-estima despencar a zero. (…) Zanzava pela noite de Copacabana, nas cercanias das boates, mas não entrava em nenhuma. Nem era convidado a entrar pelos porteiros que o conheciam. E, pelos que não o conheciam, muito menos. Ficava ali pela calçada, em silêncio, mas seu aspecto quase miserável não ajudava muito: cabelo caindo sobre os ombros – numa época em que isto era considerado meio insano –, barba de vários dias e roupa amarfanhada, como se estivesse dormindo com ela há uma semana – e estava mesmo. Mais de uma vez fora visto falando sozinho nos bancos da praça defronte à Biblioteca Nacional, no Centro, ou na Av. Atlântica”.

João Gilberto raspou até ao fundo isso de se ser ninguém, um nada, e a lição foi-lhe de tal modo útil que viria a emergir como esse “João de Nada” que, como o poeta Augusto de Campos notou, veio a ser “tudo na moderna música popular brasileira. O começo e o fim. O sim e o não”… E o dono deste prodigioso etcétera.

João Gilberto fora obrigado a deixar o Rio, recolhendo à casa de uma irmã mais velha, em Diamantina, e foi ali que tomou o gosto da reclusão, fechou-se na casa de banho, dia e noite, forçando o violão àquele modo de gaguejo, a exigir a perfeição de cada nota enquanto recebia dos azulejos um troco qualquer. E então congeminou esse estilo que vive de um mínimo de voz e de um máximo de precisão, como resumiu Nelson Motta, jornalista e crítico musical, e um amigo de sempre. No seu livro de crónicas sobre os bastidores da música brasileira – Noites Tropicais –, Motta esclareceu ainda que não houve cá influências estrangeiras, e que se João Gilberto era adorado pelos jazzistas, “ele não ligava muito para jazz”. “Sua música era brasileiríssima e nela não havia espaço para improvisações. Pelo contrário, exigia uma constante elaboração e lapidação, extremo rigor e precisão na busca da sua simplicidade absoluta. (…) Seu domínio do ritmo e das divisões, seu suingue sincopado, seu fraseado seco e preciso, a sincronicidade entre voz e violão, tudo em João levava ao rigor e à disciplina, ao fundo do Brasil. E ao génio”.

Numa das raras entrevistas que deu, ele explica como atravessou a loucura para alcançar aquela disciplina obsessiva: “Quando eu canto, penso num espaço claro e aberto onde vou colocar meus sons. É como se eu estivesse escrevendo num pedaço de papel em branco: se existem outros sons à minha volta, essas vibrações interferem e prejudicam o desenho limpo da música”.

Por aqui já começa a perceber-se a razão por que, nos últimos anos, ganhou a fama de excêntrico, alguém que podia sempre mudar de ideias à última hora, falhar compromissos e até abandonar um concerto a meio se as condições não fossem ideais. E o seu perfeccionismo ia ao ponto de reclamar do público, como se dissesse: este não serve, veio azedo, como o leite do outro. Mas em vez de chamar o gerente, levantava-se e deixava a coisa por ali. Era difícil para o público perceber como o seu estilo, sendo uma conquista tão minuciosa, podia ser posto em causa por coisas de nada, por bagatelas. Augusto de Campos citava, a propósito, o compositor austríaco Arnold Schönberg: “Considerem quanta moderação é necessária para que alguém se exprima com tanta brevidade. Pode-se expandir todos os olhares num poema, todos os suspiros num romance. Mas exprimir um romance num simples gesto, uma alegria num suspiro — uma tal concentração só pode estar presente em proporção a uma ausência de autopiedade”.

A relação degradou-se a tal ponto que, para lá de reduzirem o génio de João Gilberto às suas excentricidades, nos últimos anos, a ênfase ia toda para esses aspetos que espevitam a curiosidade mais tacanha, e, assim, sentia-se um tom de condescendência para com esse homem que vivia trancafiado num apartamento alugado no bairro do Leblon, na zona sul carioca, isto depois de ter passado mais de dez anos num aparthotel. O eremita que não dava entrevistas e que mal saía de casa, que dormia de dia e vivia de noite; que passava horas ao telefone com pessoas comuns tal como com os amigos, mas que, além de uns poucos familiares, não recebia visitas; que durante anos encomendava sempre o mesmo bife numa churrascaria ali perto, abrindo a porta apenas o suficiente para receber o embrulho. E depois, no ano passado, quando aos 87 anos foi obrigado a deixar o apartamento no Leblon por pagamentos em atraso nas rendas, os cabeçalhos na imprensa brasileira pareciam regozijar-se com “a longa e lenta agonia do inventor da bossa nova”, e dizia-se que a vida de excentricidades tinha vindo “acertar contas” com João Gilberto. Na verdade, quem aproveitava para acertar contas era toda a máquina do espetáculo e um público que não conseguiam engolir a rejeição desse artista que, como assinalou Ruy Castro, se manteve fiel até ao fim “a um estilo e um repertório que levou anos construindo e [que], com razão, não queria malbaratar”.

“O artista nunca faz o que os outros acham bonito, faz apenas o que ele acha necessário” – aí está outra frase de Schönberg que se aplica na perfeição a João Gilberto. E vale a pena relembrar nas próprias palavras do cantor porque ele ficou sem escolha perante um mundo que, contrariamente a ele, seguia pelo caminho do ruído, da redundância nauseante, que pegava no génio e o diluía a ponto de a sua proposta não ter já nenhum aproveitamento crítico: “Apenas procuro cantar sem prejudicar o sentido poético e musical das composições. É assim como tirar excessos, seguir o curso natural das coisas, dar as notas de um jeito tal que não prejudique o sentido da poesia, frisar aquelas palavras que têm a força poética. (…) Procuro que a voz saia idêntica à nota musical, brandamente, com naturalidade, sem esforço artificial”.

Assim, em 1964, quando João Gilberto recebeu o seu primeiro Grammy pelo disco Getz/Gilberto (com ele, o saxofonista norte-americano Stan Getz e Tom Jobim), como lembrava Nuno Pacheco no Público, atirou-o para um canto da casa, entendendo que “não era a sua arte que homenageavam, mas o que dela o mercado retirara”. E o mercado retirou bons dividendos da sua busca pela perfeição. Como Ruy Castro lembra na crónica que publicou na Folha de S. Paulo reagindo à notícia da sua morte, o LP lançado em 1964 é, até hoje, o álbum de jazz mais vendido da história – “o que é surpreendente, por ser, na verdade, um disco de bossa nova e cantado em português!”. O biógrafo do movimento adianta que se João Gilberto houvesse recebido uma ínfima fração de um dólar de cada vez que alguém emulou ou emula seu estilo, teria ficado bilionário. Mas não só não recebeu nada como viveu os últimos anos na penúria, e depois de ser despejado acabou a residir num apartamento emprestado, na Gávea.

Pior do que isso, este homem tão cioso da sua vida privada viu a sua intimidade exposta, as suas relações amorosas tema de mexericos, e os herdeiros, entretanto, engalfinharam-se numa luta pelo controlo do seu património. Em março, o Tribunal do Rio de Janeiro deu-lhe razão no longo processo que o opõe à editora dos seus primeiros álbuns – Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961) – e a quem exigia o pagamento de direitos de autor que rondam os 39,2 milhões de euros. No final de 2017, a sua filha da relação com Miúcha, Bebel, conseguiu a sua interdição judicial devido aos muitos problemas financeiros que enfrentava. Depois de meses em que João Gilberto se recusou sempre a abrir a porta de casa e a submeter-se a uma perícia médica para determinar o seu estado de saúde, Bebel conseguiu a autorização da justiça para arrombar a casa do músico e levá-lo a fazer exames médicos.

Assim, mesmo se João Gilberto há muito havia escolhido esconder-se numa dobra do tempo e esperar pelo momento de partir definitivamente, como disse o jornalista Luis Nassif, mesmo se do mundo lhe chegavam as quatro paredes de um apartamento, este arranjou maneira de perturbá-lo, de o sacudir daquela dobra. A morte parece assim ter surgido como o único refúgio inviolável, e se a sua lenda se construiu desse esforço para sustentar a vida toda num sopro, numa frase longa, arredondando as vogais, amolecendo as consoantes, com o cuidado extremo de não deixá-la cair, talvez se o enterrarem com um violão, ele acabe convertendo a eternidade àquele jeito gago de se espantar com coisas de nada.