Foi logo depois do anúncio da programação completa para o 27.º Curtas Vila do Conde, que arranca neste sábado com Bacurau, o novo filme de Kleber Mendonça Filho, que no Instagram de Carlos Conceição começou a ser atualizado com fotografias de mais uma rodagem. Com Joana Ribeiro e João Arrais, o ator a que, desde Versailles, vem regressando sempre. Entre essas duas semanas e o início do festival, houve ainda tempo para uma conversa, em Lisboa. Sobre Serpentário, a sua primeira longa-metragem, estreada este ano em Berlim e que terá em Vila do Conde a sua estreia nacional, sobre as curtas que o antecederam, algumas das quais o festival regressa no foco que dedica ao realizador que diz sentir uma “satisfação punk” quando, por causa de um filme, alguém o chama de “estúpido”.
No catálogo desta edição do Curtas Vila do Conde o foco que o festival te dedica aparece com o título “Em Busca do Tempo Perdido”. Isto está relacionado com o Serpentário, a tua primeira longa-metragem, que terá em Vila do Conde a sua estreia nacional? Que tempo perdido é este?
Não sou uma pessoa nada nostálgica – acima de tudo, não sou nada a favor do saudosismo – e acho perigoso que se faça do meu filme Serpentário [2019] uma leitura saudosista, que não é de todo o que ali está. Pelo contrário, é um filme futurista.
Mas a viagem deste personagem interpretado pelo João Arrais é também uma viagem ao passado, uma tentativa de resgate da memória da mãe, naquele futuro distópico pós-catástrofe.
Gostava de pensar que esse tempo perdido é o tempo que perdi durante muitos anos, em particular na escola de cinema e a seguir, até ao momento em que comecei a querer fazer os meus filmes. Há quem diga que sou prolífico – coisa na qual não acredito porque demoro cinco anos a fazer um filme.
Mas trabalhas em vários em simultâneo.
Começá-los é mais fácil do que terminá-los, por isso acabam por ser paralelos uns aos outros. A vontade de os estrear pode ser uma busca do tempo perdido, uma espécie de compensação do tempo útil que se perdeu.
Já me falaste várias vezes nisso – no tempo que levaste a encontrar o teu caminho.
Saí da escola numa altura em que não havia muitas oportunidades de trabalho. Fui fazendo vários trabalhos, mas nada que fosse promissor de uma carreira, até que em 2009 tive uma ideia para um filme, que foi o Carne. Aí senti que encontrei um sistema, uma forma de trabalhar e um grupo com quem trabalhar. Não foi logo o Carne que me abriu as portas, porque infelizmente, apesar de ter estreado no IndieLisboa e de ganhar o prémio Novo Talento FNAC, na verdade não teve um percurso muito grande na altura. O filme seguinte, O Inferno [2011], não foi um filme muito consensual, também não foi por aí, portanto a coisa demorou um bocadinho. Depois, acho que o Boa Noite Cinderela [2014] só teve a resposta crítica que teve no estrangeiro porque, como as pessoas não falam português, não percebem.
Como assim?
Aquilo que tentei fazer por ironia foi um exercício dentro de um determinado estilo de cinema português de uma determinada altura. Mas, lá está, justamente o género de cinema português com que o público cá tem uma má relação. E a nossa intenção de ironia nem sempre sobrevive – e já reparei que nos meus filmes a maioria das pessoas não faz esse exercício de ler a ironia, de perceber que há ali uma crítica, uma sátira, um lado jocoso. A partir do momento em que um espectador, por mais informado que seja, não vê isso, não vai perceber ou assimilar, muito menos gostar, do filme. Conheço profissionais do cinema que não são capazes de perceber a ironia.
Falavas sobre a diferença na forma como o filme foi recebido em Portugal e no estrangeiro. Esse é um problema com que te deparas sobretudo aqui?
Sim.
Achas que tem a ver com uma relação cultural estranha com o humor?
Acho que tem a ver com uma relação estranha com o cinema. E com a relação estranha que os profissionais do cinema têm uns com os outros: uma relação de profunda intolerância.
A sessão em que são exibidas três das tuas curtas-metragens é acompanhada de uma conversa com o João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, de quem és amigo e com quem foste trabalhando ao longo dos anos.
Ainda estava na escola de cinema quando fui estagiar no Odete [2005], a segunda longa do João Pedro Rodrigues, que foi a primeira experiência de rodagem profissional que tive. Houve uma altura em que li, seguidas, umas três ou quatro críticas que comparavam os meus filmes aos do João Pedro e achei que isso era uma falácia. Uma má leitura tanto dos meus filmes quanto dos dele. E sobretudo uma comparação superficial: não é por o João Rui fazer a direção artística do Coelho Mau…
Que se torna parecido.
As pessoas têm sempre de dizer qualquer coisa e a crítica mais fácil é a comparação, sempre. “Uns laivos de Orson Welles”, “uns laivos de Fassbinder” e é isso. Já me disseram que vou beber muito a fulano de tal, um realizador que nem sequer conheço, cuja obra nem sequer vi. O que é que posso dizer em relação a isso? Que não conheço. Acho que a má crítica está muitas vezes associada a uma arrogância, mas acima de tudo a uma grande preguiça. As pessoas às vezes nem sequer se lembram de que estão a falar com o autor do filme, com a pessoa que teve aquela ideia, e estão a informar a pessoa que teve a ideia sobre o que é que a ideia da pessoa quer dizer. É das coisas mais kafkianas desta profissão.
Como quando te dizem como deverias ter feito um filme – outra coisa que também te irrita muito.
Exato: “Não precisavas daquele plano.” [Risos] Acho essa muito boa.
Percebe-se a intenção com que é dito. Mas não deixa de vir da experiência particular dessa pessoa com o filme, da forma como se relacionou com ele e como o apreendeu.
A questão é que todas as pessoas apreendem de forma diferente. E que eu, quando faço um filme, não estou só a contar uma história – estou a transmitir muitas outras coisas, espero – e, sobretudo, não a estou a contar com os padrões que as pessoas escolhem ou que querem que eu use. O que é que a pessoa sabe de mim para me dizer que não preciso daquele plano? Ou que a montagem poderia ser mais rápida? Uma pessoa que não precisa de um determinado plano para contar uma história é uma pessoa que está a cumprir uma função prática, narrativa. Isso poderia até ser feito num só plano. Para todos os efeitos, o filme escusava de existir, sequer.
Um filme não tem sequer que contar uma história, não é um critério a que tenha que obedecer para ser um filme.
Contar uma história, ou contá-la de uma determinada maneira, não é uma obrigação que temos para com os outros. As pessoas que se disponibilizam para se sentar a ver é que têm a obrigação de tentar entender de onde é que aquilo vem e como é que está a ser dito. Não é comportarem-se como catedráticos e dizer: “Não, isto aqui, não. Vi o filme do Yann Gonzalez e isto não é assim que se faz. Isto faz-se de outra maneira, não é assim” [risos]. Percebes?
Ainda bem que falas no Yann Gonzalez. Como é que te relacionas com o trabalho dele?
É um dos meus realizadores europeus preferidos. Não apenas pelo resultado dos filmes dele, mas também pela destreza com que ele arrisca numa época em que estamos tão preocupados com o naturalismo – nem sequer é o realismo, é o naturalismo. Na forma como as coisas são expressas no ecrã e numa quase obrigação social de abordar certas coisas. O Yann não tem medo de trabalhar com ideias retro de cinema que são fascinantes por serem retro. Quando o Tarantino apareceu era o que fazia também, mas hoje em dia isso é muito perigoso. Se fazes um filme sobre uma personagem misógina o que vão dizer é que na verdade estás a defender uma ideia misógina, não percebem que a tua personagem representa uma crítica. Tenho sido um bocadinho vítima de fazer escolhas próximas disso, sem o para-sol da unanimidade da crítica para me proteger. Gosto dele como pessoa também, somos amigos, ele ajudou-me muito a conseguir um tema musical dos M83 para a minha longa-metragem.
Para qual delas?
A segunda, que se chamava Flores para Godzilla e que agora se vai chamar Totem e Tabu, a partir de um livro do Freud. Está agora em montagem.
A propósito disso de que acabas de falar, ainda em Berlim, na estreia do Serpentário, alguém que assistia ao filme se insurgiu no final da sessão com uma questão do género dessas, não foi?
Naquele primeiro cinema, não foi? Isso também tem a ver com a necessidade de falar – e falar antes de pensar. Vivemos numa época em que a opinião é mais importante do que o tema.
O síndrome do opinador de Facebook.
A opinião não pode ser mais importante do que o tema, como é óbvio, senão acaba o tema. O que esse senhor dizia era que, na sequência da tribo, a tribo era retratada como sendo inferior. É exatamente o oposto: nessa sequência, a figura ridícula é o colonialista, a comer uma banana com aquela gola que parece um repolho. E eles estão a dizer exatamente o que está nos livros de História: que quando chegaram os colonizadores brancos à foz do Rio Congo, e à costa africana em geral, foram interpretados como sendo deuses porque não havia conhecimento científico por parte dessas tribos de que a terra fosse redonda. Eles não tinham consciência de que o horizonte não representava o fim do mundo, mas sim uma curva. Portanto, quando aparecia uma caravela, surgia do horizonte, na vertical, carregada de pessoas que tinham a mesma cor de pele que os deuses africanos. Aquele diálogo é absolutamente isto: “Surgiu do fundo do mar numa galinha de asas brancas.” Isto foi uma espécie de tela sobre a qual se pintou o colonialismo. Foram interpretados como deuses, como criaturas todas-poderosas, vinham carregados de mercadorias interessantes para fazer trocas. Parecia que a caminha estava toda feita para que África fosse ocupada daquela maneira. Agora, o meu filme é uma crítica, uma sátira, justamente, ao processo de colonização, tanto geográfico quanto psicológico. Mas gosto de criar esse género de discussões, admito. Sempre gostei.
VERSAILLES teaser Locarno1 from Blackmaria on Vimeo.
Exato. Do Carne ao Serpentário, continuas a fazer o mesmo. Numa lógica de “tanto bate até que…”?
Lembro-me de me chamarem uma vez “estúpido” no Musicbox. Fiz uma curta muito singela chamada Duas Aranhas [2008], em que uma mulher dava o tiro na cabeça de outra mulher, grávida, com quem tinha tido um relacionamento amoroso, como vingança por a ter abandonado. Isso foi projetado no Musicbox e houve uma senhora que se voltou para mim, disse “estúpido!”, e foi-se embora. Há uma satisfação punk dentro de mim quando essas coisas acontecem. Não é uma satisfação irresponsável, tem a ver com os meus credos políticos serem quase todos de esquerda mas, em natureza, serem anarquistas. Sinto que certos abrires de olho podem muitas vezes ser feitos através de uns bons safanões.
É como se estivesses sempre a colocar-nos fora do sítio – ou às personagens, pelo menos.
As personagens do Carne e do Boa Noite Cinderela [2014], por exemplo, são personagens que identificas como arquétipos. Conheces as histórias sobre Jesus Cristo, olhas para uma freira e, de repente, é esperado das freiras que sejam todas iguais – o que não é verdade, nem é suposto ser. O mesmo com a história da Cinderela, que conhecemos desde que nascemos: uma história terrível, de uma rapariga que só consegue ser feliz e emancipar-se se se casar. Isto é absolutamente desprezível. É de um nojo atroz, acho que está próximo do Marquês de Sade. Quando resolvi fazer o filme era isso que queria fazer. E há quem não perceba [risos], há quem pense: “Que horror, este príncipe que só quer o sapato”. O mesmo em relação ao Inferno, que é um filme sobre a sexualidade infantil, que existe. Existe e é forte e é violenta e é formadora. As vontades das crianças muitas vezes não têm travões.
Se quisermos encontrar um chapéu para o que fazes, é isso: esta confrontação com o que até está lá mas não queremos ver. E volto à ideia de há pouco, com uma pergunta que deixei por fazer: o que é que estás a fazer quando fazes um filme?
Interessa-me a natureza da ideia e de que maneira é que a posso trabalhar. E escolho sempre o caminho que me parece mais complexo, mesmo sabendo que muitas vezes não tenho nem tempo nem estrutura intelectual para descortinar completamente essa ideia. O que acho que é interessante no cinema contemporâneo é não oferecer as respostas todas ao espectador, mas convidá-lo a fazer as perguntas mais importantes.
Mesmo sabendo que podes não ter estrutura intelectual para descortinar completamente a ideia em que estás a mergulhar. Fala-me mais sobre isso.
Sou uma pessoa igual às outras, não tenho pretensões de ter a resposta em relação àquilo que estou a fazer. Interessa-me mais fazer as perguntas, convidar as pessoas a pensar sobre as perguntas. Às vezes os filmes têm um desfecho que pode parecer uma conclusão, mas isso não é necessariamente a minha opinião: a maior parte das vezes é a possibilidade mais rebuscada dentro da história. Também penso, formalmente, no que é que pode ser mais diferente, no que é que ainda não vi. Mesmo trabalhando muitas vezes com uma linguagem clássica, penso sempre de que maneira é que um plano corta para outro de uma forma nova e no que é que isso consegue acrescentar à ideia. Mas, mais importante do que contar uma história, é colocar as pessoas na posição de fazerem questões.
E achas que é aí que está o gap.
Acho que as pessoas querem as respostas. Não querem necessariamente histórias, querem que um filme lhes dê a pergunta e a resposta. E querem que a resposta seja eticamente satisfatória para a sua formação humana, a formação humana que elas já tiveram. Se não for (eticamente satisfatória), então fulano de tal que fez o filme é automaticamente persona non grata. Às vezes sinto que a necessidade de contar histórias tem a ver com uma parte infantil que nunca chegámos a ultrapassar: uma necessidade de brincar às casinhas, de criar um mundo paralelo em que podemos brincar. “Esta é a minha personagem, ela é a Mariana, é uma querida que vai namorar aqui com o Jonathan. A Mariana e o Jonathan vão fazer um ménage à trois com o Thierry.” E parece que estamos a brincar aos deuses neste jogo de xadrez arraçado com brincar aos médicos.
É o lugar em que vamos dar aos tais filmes que hão de parecer sempre o mesmo.
A ficção é uma exclusividade do ser humano. Para mim, é frustrante quando fica pela rama, quando fica por essa brincadeira. Na maioria das vezes começo por pensar numa questão política, depois surgem-me as personagens, ou uma situação que seja interessante de dramatizar mas que seja basicamente um reflexo dessa preocupação sociológica, ética, antropológica, histórica, que a precede. As personagens e as narrativas surgem disso, desta forma, e depois ganham vida própria. Aí começa a parte divertida, que é, de repente, entrarmos em ideias de cinema de género: “isto aqui parece uma ideia de sci-fi”; “isto aqui parece um slasher”. Mas tudo começa com uma ideia que vai estar sempre lá como pano de fundo. Ficção pueril interessa-me pouco, interessa-me que a ficção sirva para dizer algo sobre o tempo que eu vivo ou sobre o tempo que passou. E, quando falamos sobre o futuro e colocamos as personagens no futuro e pensamos em distopias ou em ficção científica, na verdade o que acho interessante é que isso nos fale sobre o tempo presente, que essa visão do futuro nos diga coisas que no presente não conseguimos ver.
O Serpentário constrói-se justamente ao longo de uma viagem ao passado a partir de uma realidade distópica, que imaginamos no futuro.
Têm-me feito muitas perguntas sobre o lado autobiográfico do Serpentário. Acho que tem a ver com o facto de dizer na minha bio online (e que vai para os festivais) que nasci em Angola e que a minha mãe ainda vive lá. E com o facto de o filme começar com um cartão a dizer que há uns tempos a minha mãe quis adotar uma arara e que me perguntou se me comprometeria…
A tomar conta dela. E há uma referência a isso no filme, no diálogo com a arara.
Isso é a parte que é verdade.
Isso e a tua ligação a Angola.
Não é necessariamente Angola, lá está.
Verdade.
Nenhum daqueles lugares tem nome. É um filme de ficção científica sobre uma personagem que vai para um território que espero que possa ser o mais universal possível, porque é essa a maneira de todas as pessoas que virem o filme poderem ter uma posição e uma opinião sobre aquilo, independentemente de terem passado por um processo de colonização e descolonização. É lógico que aquela personagem, como todas as que escrevi até hoje, vem de mim, de certa forma. É uma personagem que está a tentar descobrir quem é, encontrando os destroços da sociedade que a mãe escolheu, preterindo-o a ele. A questão é como é que aquelas pessoas foram ali parar. Toda essa ideia de começar o flashback com os Descobrimentos e depois passar pelas ocupações das cidades, com os cowboys, etc. – não havia cowboys em Angola, não foi assim que aconteceu – tem a ver com a relação que a memória e o cinema criam um com o outro. E com a maneira como consegues ter a chamada pós-memória através do cinema.