António Hespanha (1945-2019). O estudante eterno

António Hespanha (1945-2019). O estudante eterno


O historiador que soprou o pó que assenta nos livros e serviu o passado através de uma mecânica caleidoscópica, entra pela morte como quem nasce do lado da História.


Como historiador e não só, levava a imensa vantagem de não emprenhar pelos ouvidos nem se vergar a argumentos de autoridade. António Manuel Hespanha valia-se da ciência simples de se partir de trás, e levantar no mais amplo rasto da História as pistas que a recompõem e também a resgatam aos entendimentos que, mesmo coxos, se impõem porque ninguém se dá ao trabalhar de ir confirmar. Era não só o historiador português mais citado internacionalmente, como era reconhecido pelos seus pares enquanto figura crucial da historigrafia portuguesa nas últimas décadas. Hespanha morreu na tarde de segunda-feira, na Fundação Champalimaud, em Lisboa, vítima de um cancro do cólon. Tinha 74 anos. O seu nome começa agora a mover-se na própria matéria tumultuosa que tanto estudou, e segundo o professor de Direito e seu amigo, José Manuel Correia Pinto, a sua obra irá perdurar como um marco incontornável da Teoria, da Filosofia e da História do Direito português.

António Manuel Botelho Hespanha nasceu a 23 de fevereiro de 1945, em Coimbra, e depois da militância católica na juventude, viria  a ingressar no curso de Direito a contragosto, licenciando-se em 1967. Neto de um juiz do Supremo Tribunal Militar, como destacava Cristiana Martins numa entrevista que lhe fez há uns anos, «Hespanha sempre foi um corpo estranho entre os juristas. Queria ir para Arquitetura, mas o pai não o permitiu. Tentou ir para Histórico-Filosóficas, e foi-lhe vedado. Abraçou então as leis para conhecê-las, mais na teoria do que na prática».

Sempre ligado à Esquerda, Hespanha foi militante do PCP até 1988, e depois de ter leccionado Direito Romano na Universidade de Coimbra, após o 25 de Abril veio para Lisboa, aceitando um convite do então ministro Vitorino Magalhães Godinho para assumir um cargo de director-geral no Ministério da Educação, tendo-lhe posteriormente sido assacadas responsabilidades nos tantos casos de «saneamento político» que ocorreram no período do PREC. Até 1978 manteve funções no ministério, e depois voltou à academia, desta vez como assistente, na Faculdade de Direito de Lisboa. Alguns anos mais tarde, foi impedido de apresentar a sua tese de doutoramento nesta instituição, a qual conseguiu insular-se, preservando o velho sistema de privilégios na mão de figuras ligadas ao Estado Novo. Assim, a convite do historiador Joel Serrão, no Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,  acabou por se doutorar em História, com a tese As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político em Portugal no século XVIII (Almedina), sobre o sistema de poderes das monarquias europeias na época da estruturação do Estado moderno, e na qual contraria a ideia de que este estava centralizado na figura do rei.

Alargando a sua pesquisa a documentação político-administrativa e tratados jurídicos pouco trabalhados, em muitos dos casos por terem sido escritos em latim, Hespanha conseguiu demonstrar que o poder dos reis portugueses era limitado até meados do século XVIII. Como explicou ao Público o historiador Pedro Cardim, Hespanha soube articular uma muito mais vasta rede de forças com poder normativo, como a moral, o costume, ou os estatutos locais das cidades e das vilas. «Ele revelou um panorama das fontes do Direito muito mais complexo e plural, e demonstrou que no mundo do Antigo Regime a lei era um instrumento entre muitos outros instrumentos de regulação das relações comunitárias.» Seu aluno e discípulo, para exemplificar a importância do contributo de Hespanha, Cardim refere que, a partir desta tese, caiu por terra a ideia de que a centralização teria prevalecido desde a Idade Média, e ficou claro que «as normas da igreja tinham muito mais força para obrigar as pessoas a comportarem-se de determinada forma do que a própria lei régia».

Assumindo também o peso que a investigação de Hespanha teve na sua obra, o historiador Rui Bebiano homenageou-o lembrando que integra um restrito lote de figuras que, «chegados de outras áreas do saber – no caso, do Direito –, ofereceram à História das Ideias e das Instituições um campo de abertura e de inovação que muitos historiadores de raiz foram e são incapazes de trilhar». Mas se o seu prestígio científico atravessou fronteiras, além de ter assinado cerca de 150 artigos e 30 livros, Hespanha deixou uma marca indelével em tantos dos seus alunos, e é tão extenso quanto distinto o rol daqueles que se consideram seus discípulos, não só pela exemplaridade da sua devoção, ao ponto de andar às turras com os velhos e infelizes mitos que agrilhoam a História e a sua compreensão, mas também pela própria energia com que ensinava e partilhava as suas descobertas, apreensões e dúvidas, aliando vigor ao rigor.

Assim, Rui Tavares recordava no Público da impressão com que ficou do professor ao chegar atrasado à primeira aula com ele, encontrando a sua turma, ao contrário do habitual, rindo «a bandeiras despregadas». Diz ele que, com «cerca de quarenta e cinco anos, gestos vivos, voz amena e uns olhos que piscavam muito rapidamente, tão rapidamente como se estivessem a processar as ideias que lhe iam pelo cérebro», Hespanha «tinha a turma na mão». É uma descrição proveitosa e que nos mostra esse outro professor que faz da sua disciplina um ângulo para uma descoberta insaciável do mundo. E isto seja de trás para a frente ou apenas no modo de girar a cabeça e espiar as coisas com um olhar que se deixa transformar, seguido de um espírito fino e da coragem intelectual capaz defender as suas descobertas. Tavares vinca que «mais do que qualquer tema em particular, o que aprendíamos com Hespanha era a treinar o olhar: olhar de novo para o que pensávamos já conhecer, olhar para aquilo que outros desconsideraram, olhar de longe, olhar de perto, olhar de outra maneira. E depois levar os documentos a sério, ser rigoroso na análise, ser imaginativo nas linhas de pesquisa.»

E se Pedro Cardim admitia que a sua principal lacuna teria sido a pouca importância dada aos subalternos, ou seja, «à massa de população que, no fundo, era a destinatária dessas medidas de controlo», no seu derradeiro livro – publicado já este ano, com o título Filhos da Terra. Identidades Mestiças nos Confins da Expansão Portuguesa (Tinta da China) –, Hespanha foi capaz ainda de um poderoso último fôlego, e Vítor Serrão resumiu-o notando que aí, sim, foca «justamente a massa de gente anónima que nos séculos XVI e XVII contribuiu para ‘fazer o chamado Império português’, seguindo uma pertinaz visão micro-histórica atenta a um ‘olhar social sobre os subalternos’, esses sectores da população que melhor vivenciaram os mecanismos do poder (ainda que muitas vezes esses dispositivos fossem subvertidos)».