Empreita.  Da serra algarvia ao universo de Louboutin

Empreita. Da serra algarvia ao universo de Louboutin


Maria João Gomes tinha um sonho: levar uma das mais importantes tradições do Algarve para o mundo da moda. Deu o primeiro passo em 2016, com a participação na “Retrospetiva” de Filipe Faísca na Moda Lisboa, e hoje é um nome incontornável na alta-costura de Paris ou Madrid.


Já ouviu falar, caro leitor, de um tal Christian Louboutin? Trata-se de um designer francês de artigos de luxo, nomeadamente calçado – aquele dos sapatos de sola vermelha, já está a ver? Pois bem: na nova coleção de Louboutin, a conhecer a luz do dia no verão de 2020, uma peça única terá assinatura portuguesa.

“Estive dois dias em Paris com a sua equipa e criei para eles um novo entrançado que não existia, que registei mas que não posso mostrar. É uma peça feita em duas partes: faço aqui uma e a outra em casa, não pode mesmo ser vista por ninguém”. As palavras são de Maria João Gomes, a criadora do tal entrançado único que irá constar da nova coleção de um dos designers de maior sucesso na alta-costura mundial.

O “aqui” a que a artesã se refere na conversa com o i é o ateliê que ocupa há pouco mais de um ano no Museu do Traje, em São Brás de Alportel. É ali que dia após dia se dedica a transformar a empreita da palma da serra algarvia em arte pura, que depois divulga via redes sociais, através da página “Palmas Douradas” – precisamente o nome da marca que registou quando percebeu que podia transformar um hobby numa profissão real.

Filha de emigrantes, Maria João Gomes fez um verdadeiro périplo pelo mundo antes de assentar arraiais em Portugal. “Vivi em Paris muitos anos, vivi 12 anos em Madrid, um ano em Inglaterra, Estados Unidos…”, recorda. As memórias de infância, porém, nunca se perderam. “Quando vinha de férias para a casa da minha avó, num monte chamado Aceifão (serra de Santa Catarina, concelho de Tavira), via-a fazer a empreita, para as gorpelhas [espécie de cestos que se colocavam em cima dos burros para carregar os alimentos], e ajudava-a a apanhar as palmas. Mas não aprendi realmente com ela. Aprendi, sim, quando voltei para cá de vez, em 2010, com a dona Cremilde, de Salir – e cito-a sempre porque as pessoas não gostam de ensinar, têm aquela coisa de guardar segredo, e ela ensinou e incentivou-me sempre”, lembra a artesã, salientando ainda assim que não descansou até aprender todas as técnicas.

“A dona Cremilde ensinou-me uma técnica e gostei tanto que fui chatear as pessoas todas da serra para aprender as outras todas! As pessoas conhecem uma ou duas técnicas, mas nunca compartilharam esse saber. Acho que sou das únicas que conhecem todas as técnicas, porque me dei ao trabalho de as aprender e seduzir as pessoas para me ensinarem. Voltava lá quatro, cinco vezes a pedir, só não me punham na rua porque não calhava (risos)!”, graceja.

a “velhinha da empreita” A roda-viva de conhecimento decorria ao mesmo tempo do “verdadeiro” trabalho, num centro de fotodepilação em São Brás de Alportel. Foi aí, de resto, que começou a mostrar a sua arte. “Comecei a fazer mandalas em palma e usava as minhas peças para decorar a loja. As pessoas gostavam e começaram a encomendar-me malas, achavam bonitas e modernas. Percebi aí que o meu design tinha sucesso. Depois começaram a convidar-me para fazer workshops em hotéis ou museus, e tinha sempre de passar faturas, porque gosto de fazer tudo de forma certinha. Então resolvi fechar o outro negócio e dedicar-me só a este”, rememora.

Foi assim que em 2015 surgiu então a marca “Palmas Douradas”. “Estava tudo a dar ideias em inglês e pensei: ‘Vou fazer uma coisa tão antiga, tão bonita e que é nossa, e vou pôr um nome em inglês? Não pode ser’. Como ex-emigrante, defendo muito tudo o que é nacional, e as palmas algarvias, quando secam, ficam douradas, bonitas. Quando vou secar palmas, digo que vou dourar as palmas, e assim ficou: ‘Palmas Douradas’. Até os ingleses conseguem pronunciar bem (risos)!”

Na relação de Maria João Gomes com a arte da empreita há um antes e um depois muito bem definidos. “Quando comecei, as pessoas gozavam um bocadinho comigo, era a velhinha da empreita, porque era considerada uma coisa antiga. Mas depois de participar na Moda Lisboa, em 2016, em que fiz malas e chapéus para a ‘Retrospetiva’ do Filipe Faísca… aí passou a ser outra coisa. A empreita deixou de ser vista como algo menor, que é só para a feira, e começou a entrar no mundo da moda, que era o que eu queria. Sempre tive essa meta, foi por isso que registei a marca: para levar a empreita para onde ela merece. Porque se podem fazer coisas tão bonitas…”, realça a artista. “Depois desse desfile comecei a dar entrevistas, como esta, e isso levou a palavra para todo o lado. Comecei a ter mais sucesso, já me levavam mais a sério. Evoluí muitíssimo no meu trabalho desde então, e a partir daí pus-me nisto a 100 por cento. Antes, pediam-me uma peça, eu fazia e dava. E depois pensei: ‘Não posso passar 20 horas numa peça e depois dá-la!’ Não que não gostasse de dar, porque sou generosa, mas…”.

 

preços altos? Não, justos Após a Moda Lisboa, os convites começaram a surgir com cada vez mais frequência. “Trabalhei com a Raquel Prates, com a arquiteta do programa Querido, Mudei a Casa! – fiz a decoração de uma suíte de um hotel em Alte [freguesia do concelho de Loulé] – e, depois, as lojas começaram a vir adquirir os meus produtos para vender. Trabalhei com marcas de roupa portuguesas como, por exemplo, a Sahoco: o novo catálogo deles é feito com chapéus e malas minhas E entretanto participei num programa de televisão da RTP1, O Artesão, que deve estrear-se em breve. São dez episódios com cinco artesãos que se dedicam a saberes já esquecidos em Portugal, e eu represento o Algarve com a empreita da palma”, revela.

Apesar da indissociável ligação ao Algarve, a verdade é que Maria João Gomes não vê as suas criações como destinadas ao público da região “porque têm preços mais adequados às horas de trabalho”. “Tenho malas até 300 e tal euros, vendi um chapéu por 360 euros, as mandalas podem ir até dois, três mil euros. Faço toda a definição, os detalhes… Levo 40 horas só depois de começar a entrançar, com a outra fase eram 80!”, dispara. “Fico muito orgulhosa que as pessoas gostem do que faço, mas aqui [Algarve] não têm o mesmo gosto. Tenho um chapéu que aqui gozavam com ele, chamavam-lhe o espantalho, e é amado em Paris ou em Lisboa. Já começava a sentir-me um bicho raro aqui, mas agora já levam o meu trabalho mais a sério. É bom para a alma”, assume.

Os preços, confessa, são ocasionalmente motivo para uma ou outra crítica, mas a artesã justifica-os com a necessidade de valorizar o seu trabalho. “As pessoas não entendem que a única forma de valorizar o nosso artesanato passa por dar o preço mais justo à peça. Se não for assim, como é que vão compreender que a peça tem valor?”, questiona, completando: “Eu, para dar um preço, calculo primeiro o tempo que levou a fazer; depois vem o design e o meu trabalho. O chapéu com cauda que levei ao programa da Cristina Ferreira [em junho] foi vendido por 360 euros. As minhas peças têm muito sucesso em Lisboa, Porto, Paris ou Madrid. Nas feiras… já é outra coisa”.

“Gosto de ir à feira da serra para mostrar o meu trabalho na minha aldeia, mas desvaloriza muito o meu trabalho. A empreita é considerada na feira como de menor valor, é graças a mim que a palma está mais valorizada. Quando vejo um artesão dizer ‘Ah, isto não vale nada, é coisa pouca, eu faço isto para me entreter, vendo por dez eurinhos’, eu digo logo: ‘Não diga isso, está a desvalorizar o seu trabalho!’ E eles respondem: ‘As pessoas não querem dar mais’. Não querem dar mais porque está a vender o produto de forma errada! Todo o artesanato tem o seu valor”, realça, completando a ideia: “Se eu fizesse bijuteria, um brinco ou uma pulseira, e os vendesse a dez euros, era super bem vendida, porque levava três minutos a fazer isso. Mas eu trabalho muitíssimo. Disseram-me no Facebook que fui ao [programa do Manuel Luís] Goucha por cunha. Fiquei um bocadinho triste, porque eu passo o tempo todo a trabalhar. As pessoas querem o que eu tenho, mas não querem fazer o que eu faço”.

 

tudo ao natural Todo o processo de criação é feito pelas mãos de Maria João Gomes, sem artifícios ou maquinaria, desde a apanha das palmas até ao entrançar, passando pela separação das folhas. “Adoro todas as fases do meu trabalho. Às vezes tenho de pôr as mãos em água fria porque já não respondem, isto é duro! Adoro o que faço, não me custa trabalhar, mas cansa, cansa muito, venho cheia de picos, às vezes caio de rabo em cima das pitas… Mas gosto de ir às palmas, gosto de as ver, nenhuma é igual à outra. Estou a apanhar uma palma, vejo a cor, vêm-me logo ideias: tenho um livro onde tenho tantos desenhos… Não tenho é tempo de concretizar tudo”, confessa a artesã, que chegou a realizar exposições de pintura quando residia em Madrid.

“As minhas ferramentas são uma agulha de cobre e as manitas, é tudo feito de raiz. Nunca coso com sisal nem com fio de algodão, coso com tamissa, com fio de palma, como se fazia antigamente. Nunca acelero o processo. Seco as palmas, dou-lhes a volta todas as meias horas para ter a cor que me interessa. Depois, só a arranjar a palma são duas horas. É impossível passar 20 a 30 horas a fazer um chapéu e depois vendê-lo por 15 euros. Muitos fazem-no depois do ‘verdadeiro’ trabalho, é como um hobby remunerado. Se fizessem isso a nível profissional, para comer, morriam à fome!”, salienta, mostrando-se pouco preocupada com eventuais competidores: “Por enquanto, acho que não tenho concorrência e, mesmo quando surgir, as minhas ideias serão sempre as minhas ideias. Há lugar para toda a gente no comércio, a concorrência só nos faz melhorar. Se têm inveja do meu sucesso? Sim, mas é normal. Se o meu vizinho ganhasse o Totoloto amanhã, eu ia ter inveja! Faz parte da natureza humana. A quem mandou a boca do Goucha, respondi: ‘A única cunha é o meu trabalho’. Porque é verdade, eu sou a única a trabalhar a este nível, de forma profissional, com a palma algarvia. Tenho concorrência, sim, porque todo o artesão é concorrente; mas na empreita, não. Destaco-me pelo design, não tenho ninguém a desenhar para mim, sai tudo da minha cabeça”.

Um dos grandes flagelos que assolam o artesanato, explica Maria João, é a fraude. “A maior parte das peças são feitas com folhas de palma importadas de Marrocos, ou mesmo toda a empreita, e depois são vendidas como se fossem algarvias. Põem uma senhora idosa com lencinho preto na cabeça a fazer uma trancinha e vendem como se fosse português e, muitas vezes, as pessoas não sabem ver a diferença da palma e pensam que é tudo igual. É verdade que feito à máquina é mais bonito, porque está tudo perfeitinho, mas o charme de uma peça feita à mão são aqueles defeitos que fazem a sua perfeição, isso é que é lindo. As cores das nossas palmas, o cheiro… Eu sempre defendi o nosso produto, a palma algarvia”, lembra.

Foi precisamente essa autenticidade e genuinidade que levou a arte de Maria João Gomes para o universo de Louboutin. “Na primeira vez que me contactaram, pensei que era piada! Então eu estou aqui no meio de São Brás de Alportel, no meio do nada, e telefonam-me a dizer que é do Christian Louboutin… Eu vivi em Paris e esse nome tem uma grande importância para mim, é luxo, como os sapatos do Manolo Blahnik ou do Jimmy Choo. São aquelas coisas que sabemos que existem, mas que nunca vamos tocar. Eu disse “’Tá bem, ok, adeus”, porque foi uma agência portuguesa que me contactou, pensei que estavam a gozar comigo. Mas depois fui pesquisar e vi, ‘Olha lá, se calhar é mesmo verdade…’”.

Do choque inicial até ao processo de criação foi um instante. ”Eles entraram em Portugal porque estavam a preparar o saco Portugaba e ele queria fazer outra coisa só comigo, só com a palma. Vieram cá à sede, ao meu ateliê, ver se era tudo autêntico, se não havia fraude nas palmas. Gostaram muito, levaram montes de peças, depois fiz mais, criei de raiz, e depois, sem querer, porque tinha outra coisa em mente, criei o novo entrançado que eles adoraram – as grandes coisas, às vezes, saem mesmo sem querer…”, assume de forma desconcertante.

A verdade é que, apesar de se poder dar a luxos como o de ter um par de Louboutin nos pés por via das colaborações que vai fazendo – “Tiveram a gentileza de me dar um par e outro à minha filha [a única modelo da marca]. São sapatos de mil euros para cima que eu não posso comprar. Agora vou à palma com Louboutin nos pés, é fixe!”, atira –, Maria João Gomes não se pode permitir uma vida desafogada. “Sim, vivo disto, mas tenho três filhos, uma neta e um carro, por isso tenho de ter muito cuidado. Ainda não me dá para ir de férias para Aruba ou para Miami! (risos) A vida em Portugal não é tão barata como se pensa. Às vezes fico com pena quando vendo uma peça, fico dividida entre o orgulho de a vender e o sentimento, porque meto muito de mim numa peça. Mas depois tenho a eletricidade para pagar e penso: ‘Está bem vendido, deixa estar”. (risos) O dinheiro desaparece”, refere, considerando que é um caso quase isolado porque “não se consegue ganhar muito dinheiro” com a empreita: “Não quero parecer arrogante, mas o meu sucesso deve-se ao design. Há muitos anos que a empreita existe, mas só se veem as peças típicas. O que eu vim fazer foi trazer frescura e revolucionar a empreita com um design superatual. Estou sempre a pesquisar, a ver o que aparece em todo o lado. Não considero isto um trabalho, mas um prazer, e gosto das fases todas”.

 

da praia para todo o lado Um dos preconceitos inerentes à empreita da palma prende-se também com a finalidade das peças: durante muitos anos estavam destinadas ao uso na agricultura ou também para a praia, no caso das malas e chapéus. Hoje, diz Maria João Gomes, essa é uma visão completamente ultrapassada. “Isso acabou. Há pessoas que casam com peças minhas, um chapéu dos meus está feito para ir a qualquer evento. O meu design presta-se a qualquer ocasião. Tenho peças que podem ir facilmente para a capa da Vogue, tenho malas em Paris, a Portfolio, dos aeroportos da ANA, vende malas minhas a 400 e tal euros – eu recebo cento e tal, mas vendem-se muito bem por preços que valorizam o trabalho. A minha empreita é antiga, gosto de misturar o rústico com o sofisticado. Uso três, quatro palmas, os chapéus ou as malas ficam superfortes. As peças duram uma vida inteira, como antigamente. A ideia é essa: fazer exatamente como se fazia antes, mas com um design novo”, realça, ao mesmo tempo que garante nunca ter recebido uma reclamação: “O design, o cheiro, o material… gostam de tudo. Ponho sempre uma nota em cinco línguas a dizer ‘cheira-me’! (risos) É a verdade, isto cheira a alegria! A felicidade, às minhas férias quando vinha em criança, a humidade quando chove, quando nos levantamos de manhã. Como emigrante que era, sou muito sensível aos cheiros. Cada sítio tem o seu cheiro, e este, para mim, é o da felicidade”.

Mesmo mergulhada em trabalho, a que junta ainda algum tempo passado nas redes sociais – “É isso que permite que vejam o meu trabalho na Austrália, na Coreia, em qualquer lado”, assume –, Maria João Gomes ainda arranja tempo para fazer trabalhos de beneficência com crianças e idosos. “Sempre de forma gratuita, nunca ganhei nada – e digo isto para ninguém do IRS me vir cá pedir faturas! (risos) Fizemos este inverno com mais de 300 meninos dos agrupamentos de Faro a maior trança já feita por crianças. Não faço mais nas escolas porque não estão ainda abertos a isso e é uma pena, porque as crianças gostam tanto. Antigamente tínhamos trabalhos manuais, eu aprendi a coser e a bordar, e acho que essa vertente falta nas escolas, seja a palma, a cana… É importante. É como aprender a tocar um instrumento musical. Mas vai mudar, eu não me canso! (risos) Já me disponibilizei para ir às escolas ensinar”, revela a artesã de 52 anos, incansável na promoção do que é, na verdade, uma arte ancestral de Portugal.