Uma rápida pesquisa deve colocar-nos logo de sobreaviso. À raridade de textos críticos – o único digno de relevo, de facto, foi um texto na Colóquio-Letras, escrito por Rita Taborda Duarte – contrapõe-se uma quantidade um tanto ou quanto obscena de entrevistas de Filipa Leal, vídeos de Filipa Leal, acontecimentos com Filipa Leal, eventos onde Filipa Leal está presente e toda essa parafernália que atualmente acompanha o carnaval sem graça em que se transformou a literatura – e que muitos, ajeitando a gravata, tentam convencer-nos que tem de ser escrita com maiúscula, como se fosse a coisa muito digna que nunca foi. E antes de acusarmos o torpor crítico da imprensa portuguesa, a morte, o definhamento e toda essa ciência necrófaga que sobrevoa o discurso sobre a crítica há já muito tempo, talvez devamos começar por sublinhar o óbvio: estas frases em forma de verso que Filipa Leal escreve, e que parecem emanar diretamente de uma “poesia-de-facebook” que tem feito o seu caminho, são absolutamente incriticáveis.
Quem sobre elas tente escrever o que quer que seja que vá além do mais barato cliché que se possa pensar, vai encontrar um bloco maciço impenetrável e intransponível: o poético. Se este livro (Fósforos e Metal sobre Imitação de Ser Humano) parece ter muito pouco de poesia, por um lado, por outro ele encontra-se de tal forma cheio do poético que este transborda de todos os lados e em todas as direções, está de tal forma imbuído da sua sentimentalidade obtusa que momento algum parece escapar. Mas o que é o poético? É aquela qualidade que, a qualquer momento, se pode agarrar a todo e qualquer objeto e transformá-lo num exemplo de afetação imediata. Uma esfregona, um frango (figura que surge logo no segundo poema do livro), um mendigo (que aparece num dos últimos poemas), problemas políticos atuais, tudo, mesmo os materiais mais pobres que se possam imaginar, é transfigurado de forma a que qualquer incauto possa exclamar, imbuído de sentimentalismo: “que bonito”. Não anda distante, de facto, de uma Joana Vasconcelos, que consegue “provar” que um tampão já contém um candelabro em potência e que muitos tampões fazem uma obra bonitinha que todos gostam de ver. Um exemplo claro desta inundação do poético nestas frases é “Queixas das Jovens Almas Assustadas” que tem por subtítulo “com uma espécie de coro grego no refrão”. Escrito em forma de diálogo, as jovens almas vão dando informações de ordem política (“Quarenta anos desde o 25 de Abril”, “O desemprego está a 15%”, “A coisa está preta no Médio Oriente”, entre outros). A isto, a “Espécie de coro grego” contrapõe sempre a mesma frase: “E tu não telefonas”. Vale a pena citar o final, que vai em crescendo até a apoteose final.
“JOVENS ALMAS
A liberdade é referendável.
ESPÉCIE DE CORO GREGO
E tu não telefonas
JOVENS ALMAS
O mundo está quase a acabar
ESPÉCIE DE CORO GREGO
E tu não telefonas.”
O grande mistério aqui não reside tanto nesta referência à tragédia clássica (completamente ao lado, evidentemente, ao ponto de os tragediógrafos já se terem arrependido do que escreveram há mais de dois mil anos), mas na absoluta falta de pudor deste lirismo serôdio, que seria perfeito para uma página de facebook e que consegue mostrar que até o fim do mundo se pode tornar num momento de sentimentalismo para fazer corar meninas com os nervos à flor da pele. Até poderia ter algum interesse se houvesse aqui uma fina ironia que servisse para desconstruir todo esse sentimentalismo lírico que é atirado à cara de quem lê, mas, como facilmente se percebe, o objetivo destas frases em forma de verso é transfigurar tudo e mais alguma coisa em poesia, em poético – e, pelo caminho, fazer com que alguém chore, ou fique triste, ou melancólico, ou ache que o mundo se reconfigura na beleza sem alegria de quem come chocolates.
E, de facto, é este o grande objetivo destes versos. Numa entrevista concedida ao Expresso, Filipa Leal dá conta de uma notícia saída anos antes no mesmo jornal em que o jornalista relata aquilo que chama de “poder dramático da poesia”. Vale a pena citar a passagem em que Luís Faria conta um episódio paradigmático desta lógica discursiva.
“A leitura, com ficção e timing impecáveis, foi em crescendo emocional. A certa altura vimos uma jovem começar a chorar na plateia. Era um choro convulsivo, imparável, que a obrigou a sair da sala para se acalmar. Quando regressou, esperou algum tempo até pedir, em tom quase de desculpa, que não lessem mais poemas de Filipa Leal”.
Facilmente se percebe que tudo quando figura neste livro se reconduz sempre a esta cena originária em que alguém chora, se sente triste, ou melancólico, ou um desses afetos em pacote que nos vendem constantemente, porque a imediatez, o efeito poético, inundam tudo e mais alguma coisa e nada consegue escapar. É uma espécie de comédia romântica, tão ao gosto de Hollywood, em que nos sentimos tristes, alegres, vagamente melancólicos, em que choramos, rimos, inclinamos a cabeça a dizer “ohhh”, mais todos esses sentimentos fáceis, profundíssimos, que atiram à cara de quem quer que tenha o azar de ligar a televisão. E para que não restem dúvidas, basta citar uma longa prosa, de tal forma poética que, mérito sem dúvida de Filipa Leal, a uma segunda leitura só se consegue rir – e citar tudo, porque ao incriticável basta dar a vê-lo para ele se desfazer à nossa frente. Aqui fica, então, “O Minuto Certo”, um dos momentos inultrapassáveis de lirismo de pacote.
“Dizia-te do minuto certo. Do minuto certo do amor. Dizia-te que queria olhar para os teus olhos e ter a certeza de que pensavas em mim. Que me pensavas por dentro. Que eu era a tua fantasia, o teu banco de trás. O teu desconforto de calças caídas, de pernas caídas, da rua que não estava fechada porque nenhuma rua se fecha para o amor. Na cidade do meu sono, havia palmeiras onde alguns repetiam charros e putas e atiravam pedras ao rio. Mas eu nunca gostei de clichés. Nem de quartos de hotel. Nem de camas que não conheço. Eu nunca abri as pernas no liceu. Nunca abri as pernas aos dezassete anos, de cigarro na mão. Eu nunca me comovi com o sonho de ser tua. Eu nunca quis que ficasses, entendes? Que viesses. Queria que quisesses de mim esse minuto certo, essa rua húmida de ser norte. Queria que me quisesses certa, exacta, como o minuto onde me pudesses encontrar. Eu nunca quis de ti uma continuidade mas um alívio, uma noção de ser gente, entendes? Eu nunca quis de ti o sonho do sono ou da viagem. Nunca te pedi o pequeno-almoço, a ternura. Nunca disse que me abraçasses por trás, que adormecesses. Eu nunca quis que me desses casa e filhos e lógica. Que me convidasses para dançar. Queria os teus olhos a fecharem-se comigo por dentro e tu por dentro de mim.// Queria de ti um minuto. Um minuto”.
Não há um único lugar-comum do lirismo que não esteja aqui presente de forma despudorada. Mas não nos enganemos: o lirismo, aqui, é arregimentado para a produção de efeitos sentimentais, para a ligeira comoção e a lágrima fácil. Na realidade, isto tem tudo para se transformar em texto de facebook, partilhado sem fim por meninas sentimentais (e atenção: isto são versos feitos por uma mulher e para mulheres; mas com uma concepção de feminino por trás que envergonha qualquer um).
Uma última palavra para a editora, a prestigiada Assírio. Já há muito que se tinha percebido, com os volumes feitos para os gestores de empresas mostrarem aos amigos que são cultos e que gostam de poesia, que a casa estava em acentuado declínio. Mas quem decidiu juntar Filipa Leal a Cesariny, Ruy Belo, Franco Alexandre, Cinatti ou Daniel Faria, merece um prémio semelhante aos dos gestores da TAP. Não é comum ver uma editora a parodiar-se a si mesma.