Em 1974, no Mundial da Alemanha Ocidental, ainda havia o eco de um samba inesquecível… Alguns de nós recordavam o Brasil irretocável e perfeito do México numa televisão qualquer, riscas descendo pelo meio das fintas de Rivelino e dos arranques de Jairzinho e da arte impossível de Pelé e de Tostão. A música avançava para lá da estática: “Do meio do gramado/ Vem a bola pr’á Tostão/ Tostão pr’á Rivelino/ Está formada a contorção/ Rivelino pr’á Pelé/ Olha aí, olhó negão…”
Nunca houvera nada assim. Nunca mais haverá nada assim.
Por isso, em 1974, sentávamo-nos em frente ao aparelho e a frustração crescia por dentro de cada vez que jogava um não-Brasil cheio de um não-samba. É verdade que ainda havia Rivelino. E Jairzinho. Mas algo se quebrara com a vulnerabilidade de um pucarinho de Estremoz. Hoje, 35 anos depois, sei o que foi. Foi a confiança: aquela coisa que demora tanto a chegar mas, quando parte, é para sempre. A gente queria o samba sambado e não nos davam mais do que abana-rabo, do que nha-nha-nha de cuíca sem pandeiro. E nós ficávamos tristes como se o arco-íris tivesse perdido uma das suas cores.
Na Europa, o Brasil quis ser europeu. Zagallo, o treinador que construíra a equipa dos cinco números dez – Pelé, no Santos; Rivelino, no Fluminense; Tostão, no Cruzeiro; Jairzinho, no Botafogo; e Gerson, no São Paulo, jogavam todos com o 10 nos seus clubes –, arregaçou as mangas e recuou o time. E todo o mundo dava porrada!
Laranja assassina Rapidamente outra música substituiu a contorção: “Desculpe seu Zagallo/ Puseram uma palhinha na sua fogueira/ E se não fosse a força desse pau pereira/ Comiam um frango assado lá na jaula do leão/ Mas não tem nada não!”
A eliminação frente à Holanda de Cruyff foi como a passagem do testemunho do futebol-arte. Em 20 minutos, a laranja mecânica trucidou os canarinhos que perderam o pio.
O encontro entre as duas seleções teve laivos de homérico. O leão da jaula era Leão, do Palmeiras, o pereira do pau era Luís Pereira, central também do Palmeiras que seguiria para o Atlético de Madrid, e depois havia os dois Marinhos, Marinho Chagas, de longos cabelos loiros, garoto do Botafogo, e Marinho Peres, do Santos, um calmeirão com 27 anos, todo ele caráter e grito, nomeado capitão, que viria a ser contratado pelo Barcelona, onde só esteve um ano porque, devido aos seus antepassados espanhóis, Franco, o caudilho, fez questão de que ele cumprisse o serviço militar.
Rebelde como era, Marinho não cumpriu coisa nenhuma e voltou para o Santos amaldiçoando o generalíssimo com a mesma gana com que amaldiçoou Cruyff quando o viu marcar o 2-0 aos 65 minutos. Ainda se jogava naquele sistema chato de dois grupos consecutivos. Brasil e Holanda batiam-se por um lugar na final de Munique. O jogo descambou em pancadaria. Diz-se que por causa do mau perder dos brasileiros, furibundos com as firulas holandesas que, nesse dia, davam direito aos Países Baixos de gritar aos quatro ventos: “Afinal, o Brasil somos nós!” Acusação com bastante de injusto. A laranja também não tirou os olhos das canelas adversárias.
Lembro-me de Marinho Peres, o monstro desgrenhado, procurando organizar um grupo destroçado, acorrendo a todos os buracos que se abriam na sua defesa, perseguindo Neeskens à patada como se este fosse uma ratazana. Marinho Chagas parecia num concurso de cuspo à distância, tendo os adversários como alvo, Zé Maria agarrava Cruyff pelas pernas quando os dribles deste o deixavam de rojo no chão. Do outro lado, Rivelino foi escolhido como vítima. Entradas assassinas sobre o canhoto-maravilha e este, desesperado, tentando revidar.
Os golos de Neeskens e Cruyff apuraram a melhor equipa. O Brasil sem samba regressou a casa preso na gaiola dos seus equívocos. Marinho Peres, de camisola azul-escura, braçadeira de capitão alva no braço esquerdo, parecia um gladiador observando a desolação em seu redor. O cabelo pingava-lhe de suor e ele era como que se adivinhasse que nunca teria outra hipótese de jogar a final de um campeonato do Mundo. Abriu um sorriso escarninho. E, em Dortmund, como num eco, ouviu-se muito ao longe: “Desculpe seu Zagallo/ A crítica que faço é pura brincadeira/ Espírito de humor, torcida brasileira/ A turma está sorrindo para não chorar/ Tá devagar…”